segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

De moradora a visitante

Estou sem televisão há dias, e não tenho sentido a menor falta. Culpa da mudança para a casa sem antena. Somos bons em plugar tudo aquilo que está pronto para ser plugado. Se falta um dos extremos é um problema. Esperamos que o buraco dos pinos seja o suficiente para funcionar o que precisamos.

O maior medo de viver sem a televisão não é ausência de barulho. O barulho oferece conforto, mas é facilmente substituído pelo rádio. Hoje, aparelho sonoro que se preze vem com dispositivo USB, o que gera certos percalços. O pendrive pifa, é fácil de perder e não é lido se houver arquivos que não são de música. Isso não é problema para quem gosta de viver com trilha sonora. Afinal, poucos gigas de música tocam por um bom tempo.

Ficar alienado aos acontecimentos do mundo é o maior medo de viver sem a televisão. Como participar de conversas informais sem saber qual a tragédia da vez? Não seria o caso de assistir o jornal e ver como anda a economia? Seria, se as manchetes fossem menos repetitivas.

Quem quer ver as compras de última hora na rua com nome de data? Dar uma espiada no movimento no litoral ou acompanhar a conta dos acidentes nas principais rodovias? Que tal assistir um especial de ano novo gravado logo depois do carnaval? Sem contar as reprises que enchem a programação com os melhores (onde?) momentos do ano.

O dia que a televisão puder deixar de ser uma moradora, a casa se tornará mais espaçosa e confortável, o que não impede que ela faça algumas visitas. A vida passa enquanto estamos diante dela.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Camadas de Tinta


Camadas de tinta recobriam toda a porta e o batente, de modo que a porta não fechava e sobrava alguma fresta. Uma camada de látex e sabe-se lá quantas de tinta a óleo. Dispostas sucessivamente com a displicência grosseira de emperrar a fechadura. Uma camada de tinta protege, um monte delas sufoca. Dois corpos não ocupam o mesmo lugar, e não seriam as camadas de tinta as primeiras capazes de tal façanha.

Como será que uma porta se sente impossibilitada de sê-la? Ela está lá para, no mínimo, fechar. Quando não para trancar. De repente ela não fecha, não tranca e está engessada por um monte de camadas de tinta.

Foi preciso olho clínico para encontrar os pontos de atrito. Os lugares que o excesso de tinta impedia o fechamento. É como uma relação e seus conflitos. No abrir e fechar da porta eles pegam, machucam, deixam marcas na tinta.

Encontradas as marcas, foi preciso uma lixa para remover a tinta acumulada. Uma tarefa nada fácil, a lixa produz atrito e esquenta. Incomoda! Cada camada vai sendo removida até chegar à madeira. Só é possível descobrir se lixou o suficiente com o teste se a porta fecha. Nestes testes, é preciso ter cuidado. Se for insuficiente ainda produz atrito. Mas o pior é se a porta emperra! Um sufoco!

Por vezes porta e batente precisam ser lixados. Então, quando feito, a porta volta a se fechar e trancar. Aqueles pontos lixados agora são como cicatrizes...

A.A.N.

27.12.2009

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Carta de Despedida

Meu bem,

Tenho documentado meus pensamentos desde o princípio do nosso relacionamento, e por isso lhe escrevo, um final precisa deixar claro alguns sentimentos. Sinto-me sufocado pela sua presença ausente dos últimos meses, que agora se tornou ausência presente. Como não recordar aqueles momentos em que tudo parava no mundo para que nosso encontro acontecesse? E veja como nos incomodamos hoje...

Incrível ver o rumo que as coisas tomaram, como seria se tivéssemos aceitado aquela proposta de trabalho na Costa Rica? Será que seríamos um pouco mais felizes, mesmo que tudo acabasse como agora? Estou me sentindo como se não fosse dono de minha história. Quando foi que o que era firme se tornou essa casa de ribanceira em dia de chuva?

O fato é que você me fez relembrar como me sentia bem sozinho. Você sabe que a liberdade no tempo me deixa mais produtivo. E nestes últimos tempos sempre fez questão de se agendar de forma a minar minha criatividade. Lembro-me do que diz o Fernando: “todo relacionamento deveria durar seis meses menos do que a data em que definitivamente terminou”.

Não importa. Desses nove anos devo levar boas lembranças, os verões na praia, os invernos no interior. A Luiza será feliz crescendo comigo. Fica melhor assim.

Com carinho,

Lu.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Traidor

Quão intrigante é a figura do traidor, cujo comportamento promove inúmeros efeitos sobre o traído. Até aqui não se falou em infidelidade, mas o leitor provavelmente levou-se ao relacionamento conjugal. Está aí uma característica injustamente atribuída ao traidor: é tido como infiel. E se a fidelidade é para consigo mesmo?

Esta não seria a hora de discutir ética e moral (onde a resposta a pergunta acima certamente iria desaguar), mas de discutir comportamento. O traído, cuja posição só vem a ser ocupada caso tenha conhecimento do fato, é ambíguo: fica em dúvida se carrega o fardo da insuficiência ou da ingenuidade, mas tem o poder de levantar a bandeira contra a leviandade do traidor.

Partindo desta confusão, o traído cai na besteira de investigar qual o pivô. E se depara com a questão “porque ele/a?”. Nada é mais deplorável do que a comparação entre si mesmo e o pivô. A resposta para o motivo da traição não se encontra aí, ou pelo menos, não só aí. Daí a razão para o traído de hoje ser o traidor de amanhã. Continuará na busca da resposta, agora do outro lado.

Passemos para a posição do traidor. Este, por mais que se esforce em disfarçar, sempre sai por cima. Sua posição de agente tem o álibi do “impulso”, além de levar os louros em meio à competitividade de seu grupo. Chato mesmo é o momento, sempre existente, do inquérito de justificativa. O traído faz questão. Não importa a justificativa.

O número de especulações despertadas no traído é o maior efeito gerado pelo traidor: Será que...? Qual o motivo? E se eu tivesse...? E se não...? Mas como...? Parecia que... Talvez seja...

Então, o interesse soa como culpa, a saudade vira raiva, palavras como armas, a lembrança como tolice e a história não tem mais sentido. Sonhos que continuarão nesta mesma categoria. E perguntas seguem não respondidas, a serem respondidas. Em nome do que age o traidor?

A.A.N.

20.12.2009

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

PRESENTE COMPRADO

- Sabe o que é Doutor, estou com um problema! Estou estranhando o que vem acontecendo...

- Conte-me o que está acontecendo.

- Eu gosto muito de presentear as pessoas que fazem parte da minha vida. Sempre que me deparava com uma coisa que era a cara da pessoa, levava e a presenteava. E meus presentes sempre agradavam. Nos aniversários ou amigos secretos, havia uma curiosidade maior, uma expectativa na hora de abrir o que eu havia dado. Algumas amigas comentavam: “nossa, como você é criativa!”. Por que às vezes o presente que eu dava era simples, mas fazia muito sentido para aquela pessoa ou tinha uma utilidade interessante para a vida dela.

- Entendo – diz enquanto assente com a cabeça.

- Mas de um tempo pra cá não tenho conseguido presentear. Quando as datas especiais se aproximavam, já matutava o que iria dar, planejava onde comprar... Mas agora eu não consigo mais fazer isso. A data vai chegando, eu até recordo da necessidade de comprar o presente, porém permaneço sem saber o que dar. Outro dia me obriguei a entrar na loja para escolher um presente de casamento, fiquei três horas naquela loja imensa e saí de mãos abanando...

- O que você sentiu na loja?

- Uma insegurança muito grande! Qualquer escolha do presente parecia ser inadequada...

- Por qual razão?

- Talvez os noivos já tivessem ganhado um daqueles... Ou o achariam inútil e não o usariam... Quem sabe até dessem pra outra pessoa...

- Qual seu maior medo em relação ao que vem acontecendo? – explora.

- Como não consegui dar nada, que pensem que sou sovina, mão de vaca, mal educada, indelicada. E se acharem que queria aproveitar a festa sem dar presente?

- Acredita que seus amigos a veriam desta forma?

- Você sabe como são as pessoas, Doutor, sempre comentam, maldizem, julgam...

- Dar o presente então tinha a função de evitar julgamentos e comentários, além de agradar e fazer o presenteado se sentir bem?

A.A.N.

Dezembro/2009

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Pegadoras

As mulheres chegam a 2010 ocupando um espaço diferente na sociedade daquele ocupado nos últimos séculos, não há dúvida. É dito à exaustão que sua participação no mercado de trabalho só vem aumentando, e mais, muitos ousam dizer que elas cumprem seus deveres de forma mais eficiente do que os businessmen. A comparação facilmente pode ser deixada de lado, mas a constatação do que vem acontecendo não.

“Durante o século XXI, a mulher emancipou-se” – diz-se inclusive na psicologia. Emancipar-se, segundo o dicionário Houaiss, é tornar-se independente, libertar-se, eximir-se de pátrio poder. Tenho cá minhas dúvidas desta tal emancipação. Calejadas com a espera do príncipe no cavalo branco, quase sempre frustrada, elas resolveram agir à galope. As mulheres estão “pegadoras” e andam se orgulhando disso. Nada possível se ela estivesse sozinha, e é aí que entram as amigas, para reforçar socialmente suas “novas” atitudes e encobrir algum comportamento sempre que for necessário. Essa mudança de comportamento seria a tal liberdade que não existia no tempo passado? Uma independência do machismo ou um feminismo machista?

Afinal, agora é a vez delas de não ligar ou sequer atender o telefone no dia seguinte de uma noite lasciva e pretensa. Descobriram que também tem o que bater na mesa para dizer quem manda. E sem truculência alguma. Com a sutileza de uma folha que cai da árvore. Aquela típica cruzada de pernas é coisa do passado, elas vão muito além.

Em nome de poder estudar, votar, igualizar os seus direitos, trabalhar, pensar, decidir o seu destino, gostar, gozar da sua sexualidade, julgar e tomar decisões sobre a sua vida e o seu ambiente elas parecem ter perdido a medida. Testam seu poder sobre os homens em situações das mais diversas. Na tentativa de estabelecer uma maior independência e autonomia, houve uma perda da feminilidade, ou melhor, o estabelecimento de uma feminilidade padrão, expressa gritantemente na aparência física de quem compra a fachada de bem suscedida.

O discurso feminista anti-pátrio-poder levantou o ataque ao machismo e acabou por elevar o feminismo ao mesmo status. A admiração a mulher multiprofissional que é capaz de lidar com diferentes demandas com sucesso é a conseqüência de tal discurso.

Analisemos uma máxima deste movimento: “A mulher assumiu poder, em casa, no trabalho, na política, na sociedade com o compromisso, a carga e a exigência que isso implica. Estas mudanças em um dos dois pilares da espécie exigiram reajustamentos em seu companheiro, o homem, ele, teve de se adaptar à concorrência em espaços que ele ocupava por ‘direito’”.

Volto a questionar: será que as mulheres sabem mesmo qual a carga e as exigências do lugar que ocupam hoje na sociedade? Penso que não. É a pretensão de quem profere tal discurso, que faz minha tataravó parecer uma fracassada e sem papel no mundo, o que me incomoda, por implicitamente considerar o pioneirismo feminino como se ocorresse apenas na atualidade. As matriarcas sempre souberam fazer valer sua opinião de forma indireta via persuasão, e isto é constatado inclusive em diferentes culturas.

A segunda afirmação toca na repercussão das mudanças para o homem. Não vejo no discurso deles indícios de medo de ultrapassagem ou necessidade de brigar por espaço, já que aprenderam os benefícios de exercitar a sensibilidade, mesmo que com limites, e a participar de forma mais ativa da vida familiar. A crise masculina se dá mais com a rotina do que com relação ao papel ocupado pela mulher na sociedade e na família.

Hoje em dia, a sensação de que no estádio da vida as cadeiras não são numeradas ou cativas independe do gênero. A dificuldade com as mudanças rápidas e com as incertezas do panorama mundial repercutiu na diminuição da função integradora feminina. O poder da soma parece ter sido esquecido pelas mulheres. É aguardar as cenas do próximo capítulo, cuja tendência é sair dos extremos e encontrar um equilíbrio.

A.A.N.

Dezembro/2009

-oOo-

A arte é uma peça publicitária da marca Diesel, cujo slogan é live fast ("viva depressa") .

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Figura de Linguagem

Jogar conversa fora,

E levar ao pé da letra.

Pensar alto, e dizer sem meias palavras.

Sussurrar ao pé do ouvido para dizer por alto,

O jogo de palavras ao mergulhar num livro,

A frase sem pé nem cabeça. Falando grego.

Da cabeça da matéria à nota de rodapé,

Entre aspas, com sentido figurado.

Subentendido nas entrelinhas...

Em termos de escrita, a figura de linguagem segue metáfora afora.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Pára de me analisar, Doutor!

Não sei por que entro naquela padaria toda semana no intervalo entre a terapia e a aula que dou na faculdade. Eles tiram um café da máquina, colocam o leite frio e esquentam no microondas. Qualquer apreciador de café acharia isso um tanto controverso. Quem inventou tal procedimento deveria ganhar o prêmio criatividade em soluções. O lugar até que favorece, é bem no meio do caminho entre um compromisso e o outro. Um dia resolvi comer um sanduíche natural, mas quando foi pegar na vitrine, a atendente disse que havia sido feito outro dia e que não estava bom. Qual a razão para o sanduíche estar exposto?

Só sei que vou lá, talvez por precisar desta pausa após a sessão de terapia. Bom, do atendimento não posso reclamar. O Jonas manda bem, atencioso e bem humorado. Na última vez que fui lá, semana passada, aguardava o pedido (o tal leite com café) enquanto folheava o jornal. Ao lado chegou uma mulher e começou a conversar com o Jonas. Sem que ela fizesse o pedido, ele chegou com uma cerveja. “Outro dia comi o misto de sempre feito por aquela funcionária e tava bem gostoso, você tá perdendo pra ela, Jonas” – disse ela. No alto de seus dezoito anos ele responde: “Você perguntou quem ensinou pra ela? O aluno não faz melhor que o professor!” – e vai em direção a um cliente que chega. “Às vezes faz!” – pensei alto, o que fez com que ela me olhasse.

Bati o olho no seu uniforme e continuei: “Às vezes o aluno faz melhor que o professor. Você é professora?” (a idade aparente de 35 anos e o uniforme me pareceram indícios). “Não, sou aluna, mas às vezes o aluno pode fazer melhor.” Ela relatou que faz um curso noturno ali perto, que está terminando, e que passa por lá com freqüência. Disse que era professor e fui indagado sobre qual área. “Sou psicólogo” - respondi.

Imediatamente ela faz cara de espanto e lança um “você não vai ficar me analisando, vai?”. O Jonas achou a profissão interessante e acrescentou um “Doutor” no grupo dos pronomes referentes a este que vos escreve. Aliás, essas são as duas mais ouvidas no exercício das minhas ocupações. Sou o leitor de mentes, quando não o manipulador. Minhas habilidades seriam suficientes para fazer análises profundas de uma mulher que toma duas cervejas e come um misto quente com alface e avisa o Jonas que as aulas estão acabando (leia-se: não irá freqüentar a padaria em breve). Costumo responder que não trabalho em hora de lazer, ou seja, que desligo o botão de análises quando não estou trabalhando.

Sobre o “Doutor”, desisti de explicar que não tenho essa titulação, sobretudo após perceber que o tratamento é uma forma de respeito, e porque não, de afeto. Depois, é com atitudes que poderei demonstrar o outro lado do “Doutor”, dizendo de outra forma, nada que rachar a marmita no refeitório não diminua a distância gerada pelo termo. As reações iniciais de espanto passam. Não tenho esse medo danado da intimidade, não sofro com a possibilidade de me retirarem de um status privilegiado e me considerarem uma pessoa comum. Tão comum que insisto nessa padaria.

Continuamos o papo, demos risada de uma situação, discutimos uma notícia do jornal. Quando me despedia, a mulher disse “obrigado pela conversa” e o Jonas “até semana que vem, Doutor!”.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Sobre o tempo, o espaço e as relações humanas

O tempo é uma questão que sempre intrigou a humanidade. O debate sobre este conceito mobilizou filósofos e cientistas durante os últimos séculos e ainda é tema de discussões até hoje.

Immanuel Kant, em seu escrito Crítica da Razão Pura1 afirma que "o tempo nada mais é que a forma da nossa intuição interna" (p. 54). Para outros filósofos, o tempo é mais do que isso, algo que é o que é independentemente de nós humanos (ou seres dotados de consciência) e da nossa "intuição interna". O filósofo McTaggart argumenta que o tempo não tem característica alguma por ser irreal. Em seu artigo A Irrealidade do Tempo discorda de Kant afirmando que o tempo não existe, embora tenhamos a ilusão de tempo.

Filosofia do tempo à parte, é possível encontrar discussões do conceito em outras áreas do conhecimento, por exemplo, o tempo na física. O professor Henrique Fleming2 aborda as contribuições da física para a natureza do tempo e de outros conceitos científicos fundamentais em um artigo publicado na Revista USP3. São três questionamentos e, porque não, problemas encontrados.

Para o autor, o tempo flui em um sentido bem definido, cuja manifestação mais dramática é o nosso envelhecimento biológico. Surpreendentemente, a inclusão deste dado da realidade (a "flecha do tempo") no ideário da física teórica constituiu um dos grandes problemas dos últimos cem anos. O primeiro problema dos três consiste em digerir esse surpreendente resultado, cabendo aos físicos recuperar, dentro do seu formalismo, a naturalidade das concepções intuitivas de passado e futuro. É uma tarefa muito técnica da qual se pode mencionar: só para sistemas com um grande número de constituintes existe, nítido (mas probabilístico), o sentido do tempo. Para sistemas constituídos por um pequeno número de elementos, perde-se a sua flecha. Foi Ludwig Boltzmann, numa das maiores realizações da história da física, mostrou que a flecha do tempo é um fenômeno estatístico. A probabilidade de o ancião rejuvenescer é essencialmente zero, enquanto que a de um jovem envelhecer é essencialmente 1.

O segundo problema, de acordo com Fleming (1989), diz respeito à individualidade (e objetividade) do conceito de tempo. Em 1908, após ter estudado a teoria da relatividade, o grande matemático Hermann Minkowski iniciou sua célebre conferência dizendo: "As visões do espaço e do tempo que eu desejo expor diante dos senhores brotaram do solo da física experimental, e aí está a sua forca. São radicais. De agora em diante o espaço em si mesmo, e o tempo em si mesmo, estão designados a dissolver-se em meras sombras, e somente em uma espécie de união dos dois subsistirá uma realidade independente". Esta união é o espaço-tempo, e aprendemos com a teoria da relatividade que a sua decomposição em espaço e tempo separados depende do observador, isto é, é subjetiva.

Mais surpreendente ainda é o terceiro, fruto da relatividade geral, lançada por Einstein em 1916. Aqui aprenderemos que é possível agir sobre o espaço-tempo, e, portanto, sobre o tempo. Deixa o espaço-tempo seu papel passivo de palco dos acontecimentos para tornar-se, ele mesmo, um sistema físico, e atinge-se, finalmente, a possibilidade de estudar o sistema físico por excelência: o Universo como um todo. A história do Universo é a história do tempo, como bem a designou S. W. Hawking, grande físico teórico inglês contemporâneo (Fleming, 1989).

A noção do tempo na física, assim como na filosofia, teve implicações diretas para a psicologia. Tomando por base o legado de B. F. Skinner, o conceito de espaço-tempo está intrinsecamente ligado a sua proposta de comportamento operante. Segundo Skinner, este caráter ativo e probabilístico do comportamento humano deveria ser o objeto de estudo da psicologia. O espaço-tempo é considerado sem extrapolações subjetivas ou “intuitivas”. Skinner criou metodologias de registro acumulado de comportamentos para estudar os organismos, atribuindo o status devido ao conceito em uma psicologia experimental. Outros pesquisadores operantes apontaram a influência dos prazos e de seu anúncio para o comportamento humano e os efeitos de diferentes intervalos de tempo na ocorrência de comportamentos.

Para as relações humanas, interpessoais ou individuais, o tempo se apresenta como uma variável crítica. Embora nosso comportamento sobre o mundo seja ativo e o sistema espaço-tempo não tenha um papel passivo, a análise que se faz das relações humanas nem sempre considera tais características. As relações humanas podem se alteradas de forma biunívoca pelo sistema espaço-tempo. O próprio debate criado em torno do tempo na história da humanidade nas diferentes áreas do conhecimento, este diálogo algumas vezes espicaçante entre autores (relação humana), está circunscrito pelo espaço-tempo.

_____________________

1. Kant, I. (1983) Crítica da Razão Pura. Os Pensadores: Kant, trad. Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural.

2. Professor do Instituto de Física da USP, no departamento de Física Matemática. Site: hfleming.com.

3. Fleming, H. (1989) “O Tempo na Física”. Dossiê Tempo, n. 2, pp. 3-6. São Paulo: CCS-USP.

-oOo-

Dedico este ensaio ao meu irmão Caio, pelo apoio que me deu em São Paulo na última vez que lá estive e também pela sua breve mais importante passagem pela Física da Unicamp.


segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Dias de "(a)cão"

Tem dias que o inusitado parece a ordem. Ou tem dias que a desordem prevalece. Seja lá como for, não esperamos passar por determinadas situações. O dia ia indo bem, até que fui sacar um dinheiro no caixa do banco. E não é que o eletrônico recusou-se a me dar. Ironicamente o cheque do salário depositado no quinto dia útil não poderia ser sacado.

Um contratempo que não precisaria acontecer no dia do depósito da dissertação pra qualificação. Como sairia do apartamento e iria à Cidade Universitária sem dinheiro da passagem? Todos os telefones do banco insistiam na musiquinha até o ocupado. Já que entender o problema não parecia possível, arrumar alguém para emprestar o dinheiro seria a solução. Quando consegui quatro reais com um amigo, achei que não ia dar pé. Passei na casa do meu irmão e não o encontrei, liguei pro celular e pedi seu carro, assim chegaria com menor atraso e almoçaria com o empréstimo mais um e sessenta das moedas.

Chego na universidade e algumas decisões importantes, correções e impressões. Tudo parecia indo bem até que percebi que tinha de encadernar as seis cópias a três reais cada. Mais dois amigos me emprestam vinte reais. Corrida contra o tempo, documentos e assinaturas. Era rodízio do carro, estar na garagem antes das dezessete horas. Reservo a sala para a argüição da banca qualificação. Entrego as cópias e documentos, que são protocolados. Dever cumprido, depósito feito. Devolvi o carro no prazo.

Meses atrás, ia dirigindo o carro do meu avô com ele no banco do passageiro. Íamos a São José do Rio Pardo. Ele para uma consulta oftalmológica e eu para uma reunião de trabalho. Deixei-o no ambulatório, fui à reunião e retornei quando terminada. No guichê do centro médico onde o deixara a enfermeira explicou que aquele não era o local da consulta e que ele havia pego um táxi para o local correto. Com as coordenadas, cheguei ao prédio e o encontrei. Disse-me que esquecera a carteira no carro, não tinha dinheiro para o taxi, então, pediu à secretária dez reais e foi ao destino correto. Enquanto contava a proeza, os demais da sala achavam graça da iniciativa para a resolução do problema. Ele pediu que eu descesse no carro para pegar a carteira, passou o cartão da consulta e voltamos ao centro médico para devolver os dez reais à enfermeira.

Lidar com o contratempo. Aceitar que não temos controle e agir com o que dá pra controlar.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Recomeço

Às vezes nos sentimos mais ou menos donos de nossa trajetória na vida, independentemente da idade. É muito comum ouvir pessoas que não se sentem bem com os rumos que sua vida e suas relações tomaram. Tal incomodo vem aliado, muitas vezes, a algum acontecimento relevante que deixou tal estranhamento como resquício. Não é raro sentir que uma avalanche de problemas chegou e nos pegou de surpresa. Entretanto, algumas palavras estão sendo muito usadas no âmbito da Psicologia: aceitação e enfrentamento. A Aceitação implica no envolvimento ativo e consciente dos eventos pessoais sem tentativas desnecessárias de mudar sua freqüência ou forma (afinal, estes eventos permanecerão existindo de qualquer maneira!). Já o enfrentamento trata-se de criar estratégias, considerando o sujeito e as demandas ambientais, incluindo as características dos outros indivíduos, para tomada de decisão. Ao que parece, o recomeço constante é algo com o qual nos deveríamos nos acostumar.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Mãe Preta

Festa de Casamento. Balcão de drinks. Defronte à pista de dança, vazia enquanto os convidados comiam à mesa. Peço uma caipirinha e observo três mulheres. Uma mais velha, uma mais nova e uma criança. A mais nova e a criança dançavam. A mais velha, com semblante de felicidade, se aproxima do balcão com passos de dança. Sorrio como quem também estava contente com o evento. Ela então aproveita a deixa e pergunta:

- Você é irmão da noiva?

- Não, sou primo dela.

- É que eu vi você de padrinho na cerimônia – realizada há pouco no gramado do jardim.

- Eu sou a mãe preta do noivo – diz ela com orgulho.

- Ah, muito prazer! Quer dizer que a senhora cuidou dele desde pequeno?

- Sim, nós moramos no sítio da família há muitos anos. Os meninos iam lá desde criança e vão até hoje. Nós gostamos muito da sua prima, que menina boa, doce, meiga.

- Ela é mesmo, eu estou muito feliz com essa festa hoje, pois todos nós gostamos do noivo também. Cuide bem dela quando ela estiver por lá com vocês.

- Pode deixar!

- Foi um prazer lhe conhecer!

Foi ao me despedir dela que me lembrei da Cida, que cuidou dos meus irmãos e de mim quando crianças. Muitas e muitas vezes dormíamos na casa dela, era tudo uma aventura. Seu afeto era tanto, que vivia a pensar em nós, mesmo quando longe. Sua filha é alguns anos mais velha do que eu, que sou o mais velho dos meus irmãos. Certo dia de nossa infância, numa discussão de mãe e filha, a última disse: “Você só fala nesses filhos brancos, tudo é pra eles!”.

E era assim que ela se referia a nós. O carinho ainda é muito grande, de chorar quando se depara com nossos feitos profissionais ou simplesmente quando nos vê adultos. Felizes dos filhos brancos de mães pretas.

A.A.N.

Outubro de 2009

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Quem não se comporta não pode ser reforçado.

Quem trabalha com educação já deve ter refletido sobre seu papel no processo de aprendizagem do indivíduo. Quais comportamentos do educador são mais eficientes para que haja aprendizagem específica, que atinja o objetivo programado. Do ponto de vista técnico, um recurso didático amplamente usado é o levantamento do conhecimento dos alunos para identificar diferentes formas de definição do termo. Então, o educador estabelece uma ligação entre a definição de senso comum oferecida pelos alunos e o conceito teórico a ser trabalhado. Funcionalmente falando, a técnica é denominada modelagem de comportamento verbal. As primeiras perguntas do professor funcionam como estímulos discriminativos verbais para as respostas dos alunos.

Se pergunto: O que é um comportamento vocal? As respostas dos alunos: “É a comunicação falada”; “Que usa a voz”; “É a linguagem que não é escrita ou gestual”. Da primeira resposta, é possível apontar que o produto do comportamento vocal é acústico. Da segunda, que são as complexas respostas musculares que produzem o comportamento vocal. Da terceira, a diferenciação entre comportamento verbal e comportamento vocal. Escrever, digitar, copiar e expressões faciais e gestuais são comportamentos verbais, mas não vocais. Portanto, todo comportamento vocal é verbal, mas nem todo comportamento verbal é, necessariamente, um comportamento vocal.

O comportamento do professor também é modelado pelo efeito que seus comportamentos têm sobre os alunos. Várias são as dimensões destes comportamentos que retroagem sobre o comportamento do professor: a atenção dos ouvintes durante sua fala, o interesse pelas atividades propostas e, inclusive os comentários dentro e fora de sala de aula. Para que os alunos se exponham é preciso receber suas falas como uma audiência não punitiva. Para a aprendizagem com compreensão, é preciso que os alunos se exponham, ou seja, se comportem, para que sua participação seja reforçada socialmente pelo professor e pelos próprios alunos. De acordo com os princípios da Análise do Comportamento quem não se comporta não pode ser reforçado. Portanto, se exponha!

domingo, 20 de setembro de 2009

Pra bom Analista de Comportamento meia Contingência basta.

O movimento filosófico denominado Behaviorismo Radical, através das práticas da Análise Experimental do Comportamento e da Análise do Comportamento Aplicada, defende que o comportamento humano pode ser compreendido em uma contingência tríplice. Diante de um estímulo ocorre um determinado comportamento, que por sua vez produz uma conseqüência. Estabelece-se um controle de estímulos sobre o comportamento, assim como um controle pela conseqüência, a depender das contingências em vigor durante a ocorrência do comportamento. Isto significa que a contingência é como se chama a interação organismo – ambiente. Há uma sensibilidade a mudanças ambientais. Como bem definiu Maria Amélia Matos (2001) “a prática do analista de comportamento é estudar contingências em seu efeito cumulativo sobre o desempenho dos organismos”.

A ciência do comportamento constituiu uma história voltada à previsão, controle e interpretação do comportamento. Estes três pilares justificam a nomenclatura Radical que acompanha o nome Behaviorismo, pois denota a busca pelas raízes do comportamento e de suas variáveis de controle. A multiplicidade de controles exercidos pelas variáveis sobre o mais simples comportamento é parte do engodo encontrado pelo Analista de Comportamento na sua prática. As pesquisas produzidas trazem conhecimentos úteis e de significado prático, permitindo o uso dos conceitos no cotidiano. Nem sempre as variáveis estão acessíveis e permitem uma “leitura” tríplice do comportamento de um indivíduo, mas podemos supor, diante de uma conseqüência produzida, qual comportamento tem maior ou menor probabilidade de ser emitido no futuro. Da mesma forma, observando contextos, condições e dimensões ambientais que alguns comportamentos são mais prováveis diante destes estímulos. Pode-se concluir, portanto, que: pra bom Analista de Comportamento, meia Contingência basta.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Sensação e Percepção

Despertador. Trabalhar!
Carro. Sol na cara.
Vejo aquela pessoa. O que será que ela vai me falar?
Estou com fome. O que eu comi hoje?
Cai a cadeira. Susto!
Deu a hora. Saio Correndo...
Penso. Não posso esquecer!
Anoto. Onde vou guardar?
Suspiro. Estou cansado.
Chego. Começo a falar.
Perguntam. Presto Atenção.
Respondo. Fui claro?
Fazem a piada. Todos dão risada.
Chove forte. A luz acaba.
Escuro. Luz de Emergência.
Apagão. Dispensa!
Dirijo. Vou devagar.
Termino. Jantar?
Banho. Relaxar!
Roupa no cesto. Checagem do bolso.
Lembrete. Esqueci!
Corro. Cadê o telefone?

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Complementar[idade]

João não gostava de bagunça. Apesar de seus sete anos, não permitia nada fora do seu respectivo lugar. Janete bem que sabia disso, afinal, era empregada doméstica ali desde antes de seu nascimento. Naquela época era diferente, era tudo comum. O serviço de um casal, rotina sem graça. Agora, temia as broncas do menino sobre como arrumava a cama ou limpava a cozinha. João não admitia que ela colocasse qualquer louça dentro da pia, pois o ralo é um local cheio de micróbios e bactérias. E quando iria lavar a louça, tinha de ser com água quente. Sem contar os passos que deveria cumprir na limpeza, sempre correndo para que tudo estivesse em ordem quando ele chegasse da escola. Janete só não entendia o motivo de tudo aquilo, mas seguia fazendo sem questionar. João era filho único, de pai Engenheiro e mãe Advogada. Ambos chegavam em casa e eram obrigados a tirar os calçados antes de abrir a porta, indo direto a lavar a mão. A mãe era indiferente a João, queria ter tido uma filha. O pai era o cuidador desde os primeiros dias. Era ele quem acordava durante as noites quando João chorava, mas sempre achou que nunca fizera o suficiente para suprir a displicência da mãe. Ela, por sua vez, no pouco que agia para com João, se incomodava com suas manias, queixando-se para o marido. Ele compreendia a insatisfação dela, mas não conseguia deixar de cumprir as vontades do filho. E não seria Janete quem ousaria contrariar qualquer um deles.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Antes Tarde

- Moço, eu quero falar com o gerente.

- Ele fica naquele prédio, contorna aquele jardim, na entrada que tem por trás.

Caminha até lá.

- Pois não – diz ele.

- Oi moço, meu nome é Josy, e eu queria saber se você pode me ajudar. É que eu tive aqui no ano passado, mais ou menos no mês de Agosto, num evento que teve a noite. Aí, eu conheci um cara, nós saímos e depois de dois meses eu descobri que estava grávida.

- Espera – diz ele surpreso. Mas você conheceu ele naquela noite?

- Sim, sabe como é, né?

- Não, não sei, você tinha bebido muito?

- Ah, acho que sim...

- E quantas vezes vocês saíram? – questiona.

- Só aquele dia.

- Espera. Eu não sei como eu posso ajudar você...

- Sabe o que é, eu queria saber se tem como você ver quem entrou aqui naquele dia.

- Bom, mas você precisa provar que ele esteve neste evento?

- Não, eu preciso achar ele.

- Mas você não manteve contato com ele?

- Não, foi só aquele dia.

- Qual é o nome dele?

- Não sei – disse ela – eu sei que ele é moreno, cabelo e olhos pretos.

- E qual foi o dia?

- Não sei, mas acho que foi numa sexta-feira em agosto do ano passado.

- Não sei se conseguirei te ajudar. Eu posso levantar a lista de pessoas que entraram nesses dias, mas sem um nome, será difícil localizar.

- Eu reconheço ele pela foto.

- Mas eu não posso mostrar o cadastro das pessoas aqui. Além disso, você precisa tomar muito cuidado com a acusação que vai fazer. Caso o exame de DNA dê negativo, você poderá ser processada por danos morais.

- Me ajuda, por favor! – com voz trêmula e lágrimas nos olhos – Meu pai fica dizendo que meu filho vai me cobrar de mim quem é o pai dele e eu não vou saber falar...

- Eu vou ver o que posso fazer. Qual seu nome?

- Josy Maria da Cunha.

- Josi Maria da Cunha – ele escreve.

- Não, Josy com ipsilon.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Falar e Fazer

Falar. Como o fazemos. O tempo todo, de diferentes maneiras, por diversos meios. Falo, leio, escrevo, descrevo, observo, escuto, respondo, digo, entendo, compreendo, rabisco, desenho, desdenho, rio, emudeço, esqueço, perco, quieto, penso, traduzo.

Linguagem é uma ferramenta? Linguagem é um meio? Não sei, só uso!

O fato é que nos estimula, por qual seja a via, e produz um efeito. Nos modifica. E é modificada por nós, à medida que não é estática, é alterada e, portanto, recriada a todo momento. Perguntaram-me se a palavra tem poder. Tem. Por razão simples.

Quando ouvimos algo, este provoca um efeito. Cada pequena característica é importante: onde foi dita, por quem, em qual momento, a entonação, a eventual presença de outrem, pontos em comum com outras interações verbais de mesma característica ocorrida em outro momento e a própria história de interações dos falantes e ouvintes envolvidos.

Para clarificar, trago um exemplo: na minha sala de trabalho existe uma tela pintada a mão. Enquanto estímulo, esta tela é estática, está sempre no mesmo lugar e com a mesma cor e iluminação. Entretanto, ela já eliciou os mais diversos tipos de reações, comentários, sentimentos. E até diferentes sentimentos para a mesma pessoa em meses diferentes.

Uma conclusão acerca do poder da palavra seria: já que ela tem poder, se eu repetir muito uma coisa que quero, ela poderá tornar-se realidade?

A resposta é não, pois seu efeito não é linear. Explico: não é a repetição excessiva que vai mudar alguma coisa, mas a reflexão acerca das condições que mantêm aquilo que se quer mudar ou conseguir. Uma frase colocada em lugar estratégico pode ajudar nesta reflexão, à medida que produz um pensamento sobre aquele assunto quando visualizada. Entretanto, reler exaustivamente na esperança de tornar-se realidade é uma atitude em vão.

O que se poderia conseguir é uma boa dose de fadiga. Sejamos estrategistas. Deixe-se distanciar da questão e pensar outras coisas, pois ela permanecerá a ser respondida e talvez a resposta possa surgir quando você estiver sobre outro contexto. Voltemos à pratica: sempre que estou me exercitando, por exemplo, costumo me abastecer de idéias sobre os mais diversos assuntos. Se tenho um estímulo no meu espelho, seja uma frase ou pergunta, pode ser que ao exercitar-me ou fazer outra coisa consiga pensar em uma resposta ou em uma atitude a ser tomada naquele sentido.

-oOo-

Crônica dedicada a amiga Cida Cilli que, com sua curiosidade incessante, incentivou-me com uma pergunta a colocar meus pensamentos sobre este assunto sob a forma de texto.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Angústia

Detesto quando fico antevendo a possibilidade de ocorrência de algum problema cotidiano. Conflitos interpessoais que, de fato, me tirariam do sério. É como se vivesse o conflito já de antemão, inundado por diálogos de divergência. Todos os argumentos imaginários fazem sentido para aquele interlocutor, como se o que eu conheço a respeito dessa pessoa confirmasse aquilo que seria dito por ela. Não obstante, é grande o número de situações em que pequenos detalhes geram grandes conflitos. Conclusões precipitadas, tiradas por quem viu apenas parte da situação. Imaginar que estou nessa situação me dá a sensação de que a enfrentaria com maior facilidade. Enfrentar o que, se nada aconteceu? A esta altura nem adianta mais este tipo de pergunta, a angústia já foi instalada e aperta o peito. Sinto que meu corpo é o palco dramático onde forças contrárias se digladiam. A apreensão é resultado da consciência dessa luta.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

O Cínico e o Mentiroso

O cínico e o mentiroso não são duas pessoas, mas dois comportamentos humanos em determinadas situações. E é sobre estas atitudes que irei discorrer. Embora nossos dicionários sejam palavras definindo demais palavras, que tal recorrermos a um deles? O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1995).

O Cínico, para o autor, é aquele que ostenta princípios e/ou pratica atos imorais. O cínico pode ser chamado também de impudico, obsceno ou o que revela imprudência. Existiram dois filósofos gregos chamados Antístenes de Atenas (444-365 a.C.) e Diógenes de Sínope (413-323 a.C.) que fundaram a Escola Cínica. Esta se caracterizava principalmente pela oposição radical e ativa dos valores culturais vigentes, oposição nascida do discernimento de que é impossível conciliar as leis e as convenções morais e culturais com as exigências de uma vida segundo a natureza.

Partindo desta definição, o cinismo é o comportamento de contravenção de valores éticos e morais, em detrimento de questões humanas individuais, portanto, mantido pelas práticas culturais. Se cinismo e mentira surgem numa escola, não é de se estranhar, hoje, presentes em demasia nas instituições de ensino, tanto por parte de professores quanto de alunos. Quem nunca contou aquela farsa para justificar a ausência das respostas no caderno? Ou jogou a bolota de papel e agiu como se nada tivesse acontecido quando o alvo olhou?

Atentando agora ao mentiroso, ele também é conhecido como chico, faveiro, loroteiro, maranhoso, marombado, pabola, pomadista, potoqueiro, potoquista, pregador e por aí vai. Novamente recorrendo ao Aurélio, é definido como o que mente, que é falso, opositor à verdade, que não é o que parece ser, enganoso. Estas duas últimas definições são limítrofes e esbarram na definição de cínico. Em se tratando de um limiar tão tênue, cabe a mim, o disposto a discorrer sobre tal assunto diferenciá-los.

Acredito que existam pontos em comum entre o cínico e o mentiroso, mas de fato existem diferenças. O cínico nem sempre é mentiroso, entretanto, mentir sempre exige uma dose de cinismo, pelo menos do ponto de vista de quem analisa o mentiroso. O ponto em comum entre o cínico e o mentiroso é a necessidade de sê-lo com naturalidade. Afinal, mentiroso inseguro não cola e cínico incomodado fica com cara de mal educado ou agressivo. O mentiroso precisa acreditar no que está dizendo, afinal ele tapa um buraco com a mentira.

O comportamento de mentir começa a ser aprendido no início da vida, quando descobrimos que é possível falar algo que não corresponde exatamente ao que se faz. Com o passar dos anos vai muito além disso. Pode envolver redes complexas de idéias, pessoas e situações. Está aí mais uma diferença entre os dois: para mentir é preciso falar, para ser cínico nem sempre. É possível ser cínico por meio de expressões faciais ou posturas corporais. Não obstante, a entonação vocal é uma forma de cinismo muito usada, mas nem sempre bem usada.

Porque o mentiroso é mais mal visto socialmente do que o cínico? Se fosse defender um mentiroso, diria que: “Quando os motivos são dignos e nobres, não importa faltar à sinceridade eventualmente. Os seres humanos se revelam através dos frutos de suas obras e não pelos métodos que usam para atingir seus propósitos.” Os fins justificam os meios? Deixo a resposta pra você, caro leitor.

Uma vez, ao dizer que escrevia sobre o cínico e o mentiroso, ouvi:

“Eu minto porque me sinto obrigado. Fui criado em um mundo onde a verdade sempre tem que prevalecer, sob qualquer coisa, já que mentira tem perna curta, e uma vez que você mente e é descoberto nunca mais terá sua dignidade e confiança de volta. Para mim não é bem assim. Perder sua dignidade e confiança das pessoas é para os bobos. Basta querer dar uma de esperto e pronto. A mentira não é tão fácil de ser contada, tem que haver um pouco de cinismo, tem que acreditar no que está contando. Tem que viver o que conta, tem que ser concreto. Não há necessidade de ser algo muito elaborado. E nem contar além do que se precisa saber. Só se perguntarem os detalhes, ai sim se vai levantando as relações e concretizando o fato.”

Depois de ouvir isso, concluí: uma mentira bem contada e dita com convicção se torna verdade. Já uma verdade dita sem muita convicção pode se tornar uma mentira. Para mim, cinismo é brincar de falar sério ou falar sério brincando.

É preciso alertar que, quando vamos pensar em parcerias, que cínico e mentiroso não formam um bom par. O mentiroso elucubra falsas verdades, enquanto o cínico corresponde com suas ironias e por mais que a canção pareça conciliar letra e melodia, não vem a ser tocada por muito tempo.

Para findar, deixo um sofisma de Eubúlides de Mileto (Séc. IV a.C.) que fará o leitor pensar um bocado. Não se trata de uma mentira e claro que não digo isto em tom de cinismo:

“Se alguém afirma ‘eu minto’, e o que diz é verdade, a afirmação é falsa; e se o que diz é falso, a afirmação é verdadeira”.

Pode-se concluir ou que uma asserção é ao mesmo tempo verdadeira e falsa, ou continuar indefinidamente por recorrência ora a concluir que é falsa ora que é verdadeira.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Lugares e Memórias

Tenho pensado muito sobre lugares. Mais especificamente na história que este lugar fez a função de ambiente. São espaços, ora públicos ora privados, que em algum momento foram palco para muitas conversas, discussões, decisões, pactos. Em ocasião da quadragésima segunda Semana Universitária Mocoquense, um dos espaços amplamente utilizados foi o Clube da Praça. Embora decadente como clube, aquele espaço recebeu muito bem diversos shows. Naquele espaço, tive a sensação de que aquele lugar respirava história, me compreende? Imaginei os Barões todos de terno e chapéu, rodeados de amigos ou companheiros...

Qual a razão para me atentar a esta questão? Seria um sinal de que a idade está avançando? Isto mesmo, estaria eu envelhecendo?

Talvez. Estou em Santos. Dezenas de vezes neste mesmo apartamento. Estava saudoso deste lugar. Alguns dos meus primeiros passos foram aqui. Retornei em diferentes momentos da minha vida, com amigos, familiares, e até sozinho. Economizando grana, com tudo “na faixa”, e até esbanjando. Deu-me uma sensação agradável.

Quero aqui estar por outras vezes, seja lá como estiver.

Augusto Amato Neto

Santos – 16/07/2009

-oOo-

Excerto reflexivo sobre as palavras acima:

Ressalto que em vez de um lugar respirar história, o lugar é história. Não existe lugar sem história.

Acrescento que a memória é feita de lugares.

Vindo pela memória, lembramos dos lugares.

Vindo pelos lugares, construímos a memória.

Luciano Fiscina

Santos – 16/07/2009

terça-feira, 14 de julho de 2009

Escritor em férias por uma semana.


Caros amigos que prestigiam o Observatório,
Excepcionalmente nesta semana não publico um texto inédito em virtude de uma viagem de férias. Tirarei cinco dias para descançar e neste período farei um Workshop com o Weberson Santiago, o ilustrador deste Blog, da Folha de São Paulo, Revista GV, entre outros [veja folder abaixo].
Aproveite a oportunidade e busque uma crônica do arquivo para ler!
Saudações!
Augusto

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Meio de Transporte

Nossa espécie nunca se contentou com o par de pernas que lhe fora atribuído para se locomover. Com o advento da roda, o que seria um instrumento para facilitar a vida passa a ser quase que uma necessidade básica, sobretudo no último século. Vejamos esta constatação em minha vida.

Aos quatorze anos ganhei uma scooter Jog e suas 50 cilindradas mudaram minha vida. Tinha a liberdade de ir aonde quisesse e a comodidade de encher o tanque com um real. Rodava muito com ela, até que um dia me deparei com a Polícia. A máxima espalhada na cidade, acredito que pelos próprios pais culpados em motorizar filhos sem habilitação, de que um de até 50 cilindradas poderia ser dirigida sem habilitação foi por água abaixo. Aquela música do Titãs que diz "Polícia para quem precisa de Polícia" nunca fez tanto sentido, afinal, longos quatro anos para começar a dirigir habilitado.

Nos anos seguintes, nada além de carona. Depois fui morar em São Paulo, ao lado da Universidade. Por longo tempo, a perna ia servindo, mesmo porque não havia sinal de ganhar um carro. Quando estava em Mococa, usava os dos meus pais. Nos dois anos nos quais trabalhei na Infraero, mais especificamente no aeroporto de Guarulhos, a ida era uma beleza: ônibus fretado na esquina de casa. A volta, ao meio dia, era um tanto quanto chata. Ônibus, metrô e a subida da Dona Veridiana com atraso garantido pra supervisão no Mackenzie.

Depois que terminei a faculdade, comecei a freqüentar a Cidade Universitária para a pós-graduação e a atender na Vila Olímpia. Em horário de pico, costumava passar longas duas horas em ônibus para fazer um trajeto que era feito em pouco mais de meia hora fora desse horário. Por várias vezes saltei do ônibus e fui a pé, mesmo que faltasse longa distância, quando um livro, MP3 e outros passatempos não mantinham a paciência.

Quando finalmente ingressei no mestrado, ganhei um presente de meus avós que novamente marcou minha vida: uma bicicleta com suspensão dianteira e traseira. Toda semana, às quartas voltava pra Mococa à trabalho e ela me transportava, a custa de minhas pedaladas. Com a rotina apertada, ela economizava tempo do dia, e íamos: casa – consultório – empresa – casa – consultório.

Porém, havia um belo inconveniente: Mococa tem algumas subidas e eu chegava suado para trabalhar. Foi então que pensei em resgatar o meu primeiro transporte, que seria o ideal para meu bolso também. Confesso ter me apaixonado a primeira vista quandp comprei uma Yamaha Crypton. Ela estava em meio a uma série de Hondas Biz e sua cor dourada e traços que remetem a lambreta foram o diferencial na escolha. Aos poucos fui arrumando pequenos defeitos, mandei-a pra funilaria e ela ficou bicolor com acessórios cromados.

Embora econômica e com 100 cilindradas, tinha seus limites: a chuva e a falta de conforto. Uma vez fui para São José do Rio Pardo com ela e fiquei com dor nas costas por três dias. Já estava na hora de partir para o carro. Fui amadurecendo a idéia e pensando qual seria, qual caberia no orçamento até que escolhi fazer negócio com meu irmão. As pessoas próximas queriam que eu vendesse a moto para comprar o carro, mas não tive coragem.

O carro tem um valor diferente na vida, não sei se pelo seu valor de bem durável ou por, em caso de qualquer grande imprevisto, poder ser transformado em quitinete. O fato é que ele, por seu conforto, nos torna acomodados. Para ir a padaria da esquina, ligamos seu motor e arrastamos sua quase tonelada até lá, queimando gasolina. Ao mesmo tempo, a liberdade que ele permite é grande: a possibilidade de rodar por qualquer estrada é fascinante.

E assim, seguimos nossas vidas sobre duas ou quatro rodas.

A.A.N.

Julho/2009