quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Férias de Mim

Arte de Weberson Santiago


Vou te dar férias de mim. Um período de distância sem pensar na volta para o conhecido. É sumir e esperar que o desprendimento renove o olhar sobre a rotina.

Férias podem ter viagens. Um passeio de seus pensamentos por caminhos que minha presença impediria. Compramos a passagem para uma data futura e levamos na bagagem a necessidade de passear pelo nosso passado. Será livre para andar por aí, no destino escolhido e formar suas percepções do mundo.

Ao te dar férias de mim, viajo para ganhar distância de sua falta. Vou de barco, contemplando a calmaria do oceano e agüentando as ventanias e tempestades. Pego de surpresa pela onda, divido a responsabilidade da remada com aqueles que estão no mesmo barco.

Você vai de ônibus, olhando a velocidade da paisagem pela janela. O encargo de deslocamento atribuído ao motorista obrigando-a a perder-se em pensamentos, sem possibilidade de fugir da consciência. Conversas com passageiros na esperança de passar o tempo eterno do caminho.

Cansado, peço que alguém assuma o remo e deito ofegante no chão do barco. Sua companhia de conversa pega no sono. E o movimento do barco pelo mar e do ônibus pela estrada embalam nossos olhares para a lua. Andando em direções opostas, nossas sensações voltam a se esbarrar.

O ponto de encontro das emoções ainda não sentidas. A fuga da experiência que não fica pra trás seja qual for o caminho. O sentimento presente que dá sentido ao passado. Ao gozar férias de mim, precisou ir ao encontro da minha ausência. Ao te dar férias de mim, quis que amanhã fosse dia útil. Durante as férias que te dei de mim, cansou da conversa da poltrona ao lado.

Ao descer do ônibus, notou que seria impossível se deslocar para longe do sentimento. Eis que um distinto caminho se torna viável. Ao aceitar férias de mim, descobriu que a liberdade do amor deveria ser consentida. Ao retomar desesperadamente o barco, percebi que repetir as remadas é algo insignificante para ir contra o mar do amor.


quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Lavagem das Poltronas

Arte de Weberson Santiago


Quando na chuva cai a água que subiu, as tardes quentes de verão ficam mais acolhedoras. No burburinho dos gotejos. Na precipitação do choro. Nas águas que refrescam e reconstroem caminhos, me pego pensando sobre os recomeços. Essa nossa insistência em por fim e começar de novo. É assim no ano novo. É assim na volta às aulas. É assim no aniversário. É assim no bom dia.

Precisamos do ritual, de um método e de um procedimento. E depois, lá estamos nós, novos e prontos para o que der e vier. Revigorados pelo cumprimento de uma etapa. Precisamos dessa sensação de conclusão que gera satisfação. E na maioria das vezes não basta sentir, é preciso contar, mostrar, afirmar, concluir, ser visto e reconhecido. A montanha russa que segue o trilho das expectativas e que em alguns momentos desafia a gravidade dos sentimentos.

Todo começo de ano tenho a minha cerimônia de lavagem das poltronas do consultório. Trata-se de uma necessidade. Poltronas claras sujam com o uso frequente. Elas me acompanham há meia década e já ocuparam três salas diferentes neste tempo. E com a desculpa da necessidade fiz os testes com o aparelho de vapor, depois tentei a lavagem a seco, passando para o limpa-carpete e uma experiência frustrada. No supermercado, me deparei com um spray de espuma que prometia fazer milagres. Eu desconfiei da promessa, mas ignorei o sentimento. Segui as instruções e ganhei poltronas malhadas com manchas esquisitas. Saí às pressas atrás de outro produto e reverti o resultado.

Esse ritual de lavagem é como varrer cedo a calçada para fazer carinho nos pés de quem vai passar por lá durante o dia. Faz agrado aos olhos, mas sua função é mais do que isso. É a preparação para receber novas pessoas, com novas histórias. É me desfazer de resquícios de todos os atendimentos do ano passado. Uma desfragmentação de minha memória de terapeuta. Uma oportunidade de reorganizar a minha bliblioteca e acomodar os livros recém-chegados.

Quando me vejo, estou cheio de esperança. Esperando novas experiências, esperando as novidades do dia a dia. Esperando dar continuidade a minhas construções em empreitadas árduas, mas consentidas. Jornadas que escolhi encarar, desafios que sou capaz de enfrentar. O medo é só o medo. A quantidade suficiente de medo é o que nos faz saber preservar a própria vida. A rotina é feita para quem tem coragem.

Olhando para os sentimentos e a chuva que cai, compreendo a minha relutância em fechar as janelas. Gosto da brisa que sopra no meu rosto e me dá sensação de liberdade, que depois se torna vendaval, bagunça os cabelos e leva as folhas. De repente tudo para. Cessa a chuva e fica a emoção.


sábado, 8 de janeiro de 2011

Memória Acorrentada

Arte de Weberson Santiago

Nos primeiros dias de 2011, alguém se incomodou com a corrente que perfurava a grande árvore e a prendia ao muro na Ladeira da Memória, centro da cidade de São Paulo. Já se vai muito tempo desde 1888 e só agora a escravatura do espécime Ficus organensis vem a ser questionada. A princesa Isabel do século XXI a favor da liberdade da natureza foi Cristina Moreno de Castro, jornalista que questionou a corrente no impresso Folha de São Paulo.

Localizada em meio a monumentos no vale do Anhangabaú, ironicamente ninguém na Ladeira da Memória é capaz de resgatar o motivo da colocação dos grilhões que impedem, há mais de vinte anos, a fuga da árvore da Rua Xavier de Toledo. Juntamente com o obelisco, a escadaria e o chafariz, a árvore de quinze metros de altura faz parte do largo que foi inaugurado em 1814 e é patrimônio histórico tombado.

Foto de Adriano Vieland

Nem os mais antigos da região sabem da história daquela corrente, que timidamente venho contar aqui. No começo do século XIX, na Rua Palha, hoje Sete de Abril, o governo encarregou o engenheiro Daniel Pedro Müller da construção da Estrada do Piques para facilitar a comunicação de São Paulo com o Interior. Além da Estrada do Piques, Müller propôs a formação do Largo da Memória com o alargamento das ladeiras do Piques e da Palha e a construção de um chafariz, tudo complementado por um obelisco “à memória do zelo do bem público”.

Neste tempo em que a cidade era um amontoado de casas de taipa de pilão, o português Pedro Luiz de Souza Machado foi um dos que veio com o grupo dos jesuítas para desbravar as terras brasileiras. Quando passaram por São Paulo, parte do grupo se encantou com o clima fresco semelhante ao europeu e fundaram o Real Collegio, grupo do qual fazia parte Souza Machado. O engenheiro Müller contou com a disposição de nobres Senhores da época para a construção do Largo da Memória. Souza Machado inclusive cedeu escravos para trabalhar para o mestre pedreiro Vicente Gomes Pereira, subordinado de Müller.

Por decreto de 08 e carta de 13 de Fevereiro de 1812, Souza Machado teve a concessão do título de Conde de Lousada, como ficou conhecido na cidade desde então. A obra de pedra de cantaria constituía o obelisco de onde emergia de uma bacia de alvenaria com grades de ferro, que servia como reservatório da água. Muitos viajantes cruzavam a Ladeira para encher os cantis em uma bica e prosseguir o trajeto. Numa das tardes no Largo, o Conde de Lousada pressionava o lenço contra a testa enquanto avistou de longe uma jovem dimanada na lomba de um burro. Transporte típico da época, a dama de companhia que conduzia o quadrúpede parou para lhe dar água na Ladeira. Olhares tergiversos provocaram as mais sublimes sensações no Conde e na jovem. Era Leonora de Melo Guimarães, filha de portugueses que se tornaram cafeeiros e nos primeiros anos do século seguinte ocuparam a Avenida Paulista, a primeira via planejada da capital.

No fluxo das pessoas pelo Largo da Memória, galanteios e gracejos aproximaram o Conde cinquentenário da jovem Leonora. Na véspera da inauguração do alargamento da Estrada do Piques e dos monumentos de pedra que constituíram o Largo da Memória, na presença de Müller, de Gomes Pereira, do Conde de Lousada, de Leonora, de um grupo de escravos e de alguns transeuntes foi plantada a figueira. No dia seguinte, 12 de Outubro de 1814, autoridades do governo inauguraram a obra em uma solenidade oficial. O pedido de casamento do Conde para o pai de Leonora se deu alguns meses depois e o casamento foi sacramentado por Dom Mateus de Abreu Pereira em 11 de Outubro de 1815, um ano após o plantio da Ficus, na Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, localizada na Rua do Carmo. Em 1816, nasceu o primeiro filho, batizado com o nome do pai.

Foto de Ricardo Henrique Cardim

Acontece que Leonora considerava enfadonha a vida de Condessa e não demorou a se envolver em um caso perigoso. Encantou-se com os rituais Iorubás, realizados pelos escravos e que frequentava quando o Conde estava fora de casa. Acabou por envolver-se com um escravo, com o qual se encontrava às escondidas. O Conde de Lousada, desconfiado, colocou um capanga no encalço da amada. Quando se percebeu na iminência de ser descoberta e sob o pretexto de sua vida monótona, partiu com o jagunço que deveria constatar a traição, tendo levado consigo parte do dinheiro do Conde.

A tardia entrega ao amor fez com que a traição consternasse a consciência de Pedro Luiz, o Conde de Lousada. Desgostoso da própria vida e da ingratidão de sua "Nôra", encaminhou o filho para estudar em um colégio interno. Sentia fortes dores de cabeça todos os dias, sem encontrar alguma maneira de se sentir melhor. Num momento de desespero, enquanto uma escrava lhe punha compressas de água morna na testa, levantou-se repentinamente, reuniu os escravos do lado de fora da casa e mandou que eles, os únicos que lhe foram fiéis, acorrentassem a figueira com os grilhões do porão, na tentativa de livrar-se das correntes de sua memória, que lhe apertavam a cabeça e foram responsáveis pelo seu adoecimento e depois pela sua morte.

Homem influente na sociedade paulistana da época, seus amigos se encarregaram de aumentar os elos da corrente a cada ano, para que a árvore pudesse crescer sadia. Durante um século e meio, o governo municipal de São Paulo interpretou as correntes como uma necessidade de segurança para que a árvore se mantivesse de pé. No meio do Regime Militar Brasileiro, por volta de 1970, a corrente parou de ser trocada e a árvore continuou a crescer em espessura, englobando internamente parte da corrente. Como num grito de liberdade da árvore, recentemente um dos lados da corrente se rompeu e perdeu a função inicial.

Após uma vistoria técnica nestes primeiros dias de 2011, a figueira centenária do largo da Memória foi finalmente libertada. As correntes que a prenderam por décadas ao muro da Xavier de Toledo foram cortadas por técnicos da Prefeitura. Ela não tinha risco de cair e a corrente que a prendia não tinha mais razão de ser para os técnicos. Sabemos nós que a razão de ser era para a memória do Conde de Lousada, que talvez agora tenha sido também liberta. Apenas o pedaço que já estava dentro da árvore não foi removido, porque isso poderia causar ferimentos no tecido da figueira e deixá-la vulnerável a doenças e pragas.

No largo da memória, os grilhões internos imperceptíveis por quem percorre o passeio são os mais difíceis de remover. Haverá de restar alguma cicatriz.

Foto de Felix Lima/ Folhapress











Dedicada ao Professor Paulo Eduardo Vieira, vulgo Curuja.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Resoluções de ano novo disfarçam dívidas do ano velho.

Arte de Weberson Santiago

Para mim não existem promessas de ano novo. Resoluções de ano novo disfarçam dívidas do ano velho. Pendências com sua tendência a renovação na procrastinação. Tropeço no dia trinta e um e caio no dia primeiro como quem ignora o fim do domingo e se encontra na segunda feira.

Decisão de dia novo funciona melhor. Em primeiro lugar, as tarefas do dia. Em segundo lugar, as pendências esperando por disponibilidade. Cumprindo as primeiras e aproveitando as lacunas para resolver as segundas. E talvez assim seja possível mudar a rotina, o hábito, o comportamento repetitivo.

Há dois anos, num desses primeiros dias do ano ouvi de uma amiga de trabalho em tom de boa notícia:

- Fiz sua indicação para ser jurado no fórum da cidade.

Não sabia qual resposta devia dar a ela. Ganha-se para isso? - pensei. Já havia me esquecido da indicação quando a primeira intimação chegou. O tom de ameaça para os casos de ausência me assustou e no dia e hora marcados estava eu lá. Gaba-se quem está na posição de julgar, emitir parecer, avaliar, conceituar. Mas descobri que não há nada de glamouroso na função do jurado.

Passa-se o dia no Tribunal do Juri, proibido de se comunicar, diante de juiz, promotor, advogados de defesa, entre outros. Assistindo depoimentos e inquirições para todos os envolvidos. Muitas vezes as responsabilidades são óbvias, mas nem todos os detalhes são claros. O jurado se sente passivo diante do crime em julgamento e suas penas definidas no código.

Depois de muitas intimações e participações, não houve uma única vez em que, diante da dúvida, ficasse num impasse a favor do réu ou da sociedade (in dubio pro reo ou in dubio pro societate). Mas não foi o réu que me chamou a atenção na última participação, e sim o almoço do promotor.

Já que se passa o dia todo por lá, tem-se o direito ao almoço, servido dentro do tribunal. O juiz não costuma almoçar com os demais, não me perguntem o motivo. O promotor, jovem aparentemente sério e centrado, foi o último a se sentar. A maioria dos sete jurados já havia acabado o almoço.

Pegou o prato e encheu de salada. O advogado de defesa, tendo devorado a sua montanha de comida, fez questão de comentar. Ele se defendeu dizendo que o calor o impedia de comer muito. Uma forma de dizer que queria evitar aquela moleza após a refeição, chamada de repouso pós prandial.

Na volta do almoço, ao advogado de defesa foi concedido noventa minutos, inteiramente utilizados. O promotor fazia anotações durante toda a fala. Até que a defesa deixou escapar um “quem não se deixa levar por um momento de nervosismo? Afinal, quem está bebendo em um bar, boa gente não é. Será que ele não merece outra chance?”. Foi interrompido pelo promotor, inconformado com a argumentação. O réu não matou pois a arma falhou diante do peito do cara. Bate-boca na frente do juiz.

Foi quando o tempo dele acabou e a palavra passou ao promotor que o almoço leve mostrou-se eficaz. Com o papel de anotações na mão, foi rebatendo tese a tese da defesa. Trocas de farpas mostraram o que o promotor não engolia. Réplica, tréplica e réplica da tréplica depois, a indigestão foi por parte do advogado de defesa. O duro foi disfarçar a cara de enjoo para tanto debate enquanto aos jurados não restavam mais dúvidas.

Dez horas depois do início do julgamento foi dada a sentença. Ao ouvir a pena, culpado por mais um crime na sua extensa ficha, o réu perguntou: “Com tudo isso que aconteceu aqui eu só peguei quatro anos?”.

Resolução do novo dia: em dia de julgamento, seja lá qual for o seu lugar no tribunal, não coma em excesso.