sábado, 22 de dezembro de 2012

O Natal Sempre Presente

Arte de Weberson Santiago



Outubro de 1955. A família acompanhava Bernardo Agnelli em uma viagem de trabalho pelo interior do Estado de São Paulo. Passavam por Santo André para uma visita ao compadre Anselmo e a comadre Bibiana. Após o amoço, saíram do restaurante caminhando quando passaram diante de uma grande Relojoaria, localizada na Rua Barão de Rio Branco, ponto forte do comércio local.

Vicenzo, então com sete anos, apontou para o interior da loja, chamando a atenção de sua mãe, Giuditte. “Olha mãe, o passarinho que fala a hora!”, disse ele. A parede repleta de Cucos era fascinante. Os entalhes de madeira, esculpidas à mão, em diversos tamanhos e formas arrebatou a todos. Vecenzo fez com que entrassem na loja.

Bernardo pôs-se a explicar: “É um cuco, bambino! Um pássaro chamado  Cuco Canoro, que canta em duas notas que soam como ‘Cu-co!’ Ele avisa quando as horas se completam. Essa raça não sabe fazer ninho, Vicenzo, por isso ocupa o ninho de outros pássaros ou escolhe morar no relógio. Nas redondezas da casa do seu avô Luigi, na Itália, haviam muitos Cucos. Eles apareciam de março a junho e depois migravam para procriar”. Mariana, a caçula de três anos, pediu para subir no colo do pai para ver de perto. Giuditte ficou encantada.

Bernardo precisava continuar a viagem de trabalho e todos saíram em direção à casa do compadre para a despedida. No caminho, quando já estavam acomodados na locomotiva maria-fumaça, Bernardo pensava na imagem de alegria de sua família diante dos relógios.

A viagem terminou, o tempo passou e a véspera de Natal chegou. Bernardo e sua família sempre ceavam na casa do seu pai. O avô Luigi começava a preparar os mantimentos para o Natal no final de novembro. Pegava o trem até a cidade vizinha para encher os balaios da dispensa com as melhores frutas. Queria fartura para as festas e não economizava na comida. Respeitava a tradição italiana. Na véspera, comia-se peixe. Tinha Bacalhau à Escabeche, Dourada assada, tudo regado a azeite importado de perfume marcante.

No dia 25, o almoço costumava se emendar ao jantar e ninguém queria sair da mesa. A avó Nena fazia a comida. Carne de porco, frango assado. O cabrito cozido em molho vermelho com azeitonas pretas ficava apurando por horas a fio. Tinha pão de tudo que era tipo para passar no molho. Castanhas e nozes, frutas secas. Tudo acompanhado de um bom vinho. Giuditte preparava a sobremesa, sua especialidade era a Caçarola. A falação típica de uma reunião de família italiana. As risadas das histórias contadas pelos tios. Eram momentos felizes.

A ceia começava cedo e ainda faltava meia hora para a meia noite quando o jantar acabou. Bernardo sugeriu à sua família que fossem dar uma volta na praça quando deixaram a casa do vô Luigi. “Vamos fazer a digestão”, sugeriu o pai. E depois de uma rodadela calculada partiram em direção a casa da família.

Quando colocou a chave na fechadura e girou duas vezes a tranca Vicenzo, Marina e Giuditte ouviram um barulho: “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”. Assim que chegou da viagem de Santo André, Bernardo foi à central telefônica e ligou para o Padrinho Anselmo. Pediu que comprasse o Cuco e o remetesse pela Linha Mogiana. Na véspera de Natal, combinou com o Argemiro que pendurasse o Cuco e acertasse a hora enquanto estivessem na casa do Vô Luigi. Queria fazer uma surpresa. Só que precisaria chegar em casa à meia noite em ponto.

E na décima segunda badalada estavam todos à frente do Cuco, alegres e surpresos, contemplando o novo morador. Bernardo havia arrancado sorrisos de todos que, encantados com a surpresa, se colocaram a sua volta, quando Vicenzo perguntou:

Papá, em junho ele vai embora pra procriar?

Não, Vicenzo, ele ficará para nos avisar cada hora que passar.

O Natal é a oportunidade de trazer o encantamento para dentro de casa. É renovar a expectativa de que o encantamento dure o ano todo, até o próximo Natal. E ainda que não dure, que ao menos permaneça a esperança de que algo melhor virá. E o melhor não vem embrulhado para presente, no saco vermelho carregado pelo bom velhinho, apenas uma vez ao ano. O melhor vem entregue a cada dia, pelas mãos de quem amamos.

O Natal de 2012 será o primeiro em que a Giulia, neta de Vicenzo, ouvirá o Cuco cantar.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Pra você que toma este cafezinho comigo há sessenta edições, desejo que o seu Natal seja um momento de paz!


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 22/12/2012, Edição Nº 1231. 

sábado, 8 de dezembro de 2012

Por Que Eu Escrevo

Arte de Weberson Santiago



Eu escrevo porque vivo. Estou vivo porque escrevo.

A escrita me salvou. Não me livrou do mundo nem das agruras de viver. A escrita me salvou de mim mesmo. Me livrou de habitar os recônditos do esquecimento.

Vivo a esquecer o que eu busco quando eu vou de um lado para o outro dentro da minha própria casa, mas não aceito perder o sentido da vida. Escrevo para tentar encontrar o rumo da minha.

Eu escrevo para não viver apenas de rascunhos. Escrevo para passar a limpo as minhas experiências.

Se eu não posso desfazer os caminhos que percorri, escrevo para documentar os lugares que passei, as pessoas que encontrei, as histórias que compartilhei.

Escrevo porque acredito nas palavras. Uma vez que meu excesso de vontades encontra no vocabulário da língua a infinidade que precisa para divulgar emoções.

Escrevo para fazer publicidade do amor. Para defender que é preciso tirar o amor da dimensão dos sentimentos para praticá-lo em ações. Escrevo para mostrar que são poucos os que se atrevem a praticar o amor. Para que eu tenha o que fazer quando não fizer amor. E quando o amor está soterrado pela fadiga ou pela raiva, escrevo para resgatar o amor.

Escrevo por falta de modéstia. Ocupar meia página do jornal com a primeira pessoa do singular não é coisa de quem vive no retraimento. Não é pra quem sofre de timidez. Ao contrário, escrever é pra quem tem pretensão de sobra.

Escrevo porque não consigo ficar de boca fechada. Escrevo porque não consigo calar minhas mãos.

As palavras promovem mudanças, mas o percurso dessas só se revela depois. Como as vezes me falta paciência, eu semeio com pressa os termos, vocábulos, verbos e expressões e preciso que você regue com os seus sentimentos. O que vai germinar é incerto.

A palavra deixa de me pertencer no exato instante em que lanço mão do último ponto final e  é recolhida pelos seus olhos, ouvidos e coração. A palavra dita não pode ser recolhida, a palavra escrita não pode mais ser desdita, apagada. Está documentada e passa e ser sua, de quem a ouviu ou leu, e você faz o que quiser dela.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Escrever é fazer tatuagem no espelho.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 08/12/2012, Edição Nº 1229. 

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Caminhão da Mudança

Arte de Weberson Santiago




Mudança de moradia, seja lá por qual motivo, é um longo caminho. De tão laborioso, o percurso da mudança é um caminhão. Pode ser de cidade, de um bairro para o outro, de um andar do prédio para três andares abaixo. Nem se aliando à força da gravidade a mudança é capaz de ficar leve.

A mais modesta pode ser chamada de mudança universitária. Uma cama, um guarda-roupa ou cômoda, uma escrivaninha. Se tem geladeira, não tem fogão. Se tem microondas, não tem máquina de lavar. A de maior proporção é a mudança de uma família. Caminhão baú parece pequeno.

Quem já teve de encaixotar a vida, rapidamente me compreende. Desmontar uma casa e encaixar. Descobrir todos os objetos que foram se acumulando e que nunca terão uma utilidade. A loucura é encaixotar tudo para desencaixotar em seguida.

Meu desapego anda precisando de uma academia. O meu apego está precisando fazer um regime. Não consegui aproveitar a mudança para jogar fora o óculos escuro da época da faculdade. Riscado e com uma das perna presa com fio de naylon. Os riscos ficam bem no meio da lente, passo a enxergar como idoso quando ponho estes óculos, porém me sinto dez anos mais jovem, exatamente na época que o usava. Achei um canto numa caixa para não jogar fora. Agora procuro um fundo de gaveta na nova casa pra guardar as lentes do passado.

Queria ser capaz de fazer o que um amigo de um amigo meu fez. Morando em outro país há vários anos, quando resolveu voltar ao Brasil vendeu todos os seus bens. Manteve apenas algumas trocas de roupa. Trouxe de volta apenas a experiência.

Há alguns dias, Letícia, minha secretária, perguntou se eu conhecia algum exercício para a memória. Recomendei palavra-cruzada ou sudoku, mas pedi que ela observasse o sono, o estresse e o cansaço para avaliar a dificuldade em se lembrar de algumas coisas.

Se a Letícia me perguntasse isso hoje, responderia que o melhor exercício para a memória é se mudar de casa. Tudo bem que se você já não está dando conta do bombardeio de informações, a mudança só vai bagunçar mais a sua vida. Mas é justamente o esforço para se organizar no novo lugar o fabuloso exercício para a memória.

Então você vai descobrir o quanto seu cérebro se acomoda nos esquemas de sempre, como se ligasse o piloto automático para cumprir a rotina. Depois de um longo tempo no mesmo lugar, por economia de energia, pouco precisamos pensar para executar o ritual matinal, por exemplo. É possível que você se sinta capaz de fazer a sequência de tarefas de olhos vendados.

Após a mudança é preciso se localizar no espaço novo. Nos primeiros dias, fiquei como uma  múmia perambulando pela casa em busca das coisas de sempre. Uma árdua empreitada, que depois de muito trabalho de organização permite atingir a mesma acomodação de sempre.

E tudo fica na mesma? Claro que não, a mudança sempre estimula a criatividade. Há três anos, quando terminei o mestrado, comprei um painel para pintar um quadro, achando que o término da pós-graduação garantiria tempo de sobra. A ilusão fez com que ele ficasse guardado esses anos todos na antiga casa. Agora ele já não é mais branco, ganhou cores com a nova casa.

Cada casa que a gente mora tem um tempo. Cada lugar que a gente vive tem um sentido na vida. Não que a vida em uma única casa não tenha sentido. É que, de repente, uma casa não tem mais sentido. A gente se cansa da rua, de passar sempre no mesmo lugar. É quando a necessidade de mudar ganha espaço.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| A mudança é o caminho ou o caminho é a mudança?



Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 24/11/2012, Edição Nº 1227. 

sábado, 10 de novembro de 2012

Educar é Desaprender

Arte de Weberson Santiago


Educar uma criança sempre é um desafio. Precisamos dedicar tempo para ensinar, corrigir, mostrar como se faz, explicar o que não se deve fazer na esperança que a lição seja entendida e que o comportamento futuro seja adequado.

A Anelise é uma criança que conquista facilmente a simpatia de quem a conhece. Sua espontaneidade é envolvente, suas percepções contadas são interessantes para uma menina de quatro anos. Apesar de não passar indiferente em qualquer ambiente, andei preocupado com o fato dela fugir de cumprimentar as pessoas quando nós chegamos em algum lugar.

Preocupado com a questão, resolvi recorrer a minha tia Egle. Me lembrava que ela usava um procedimento interessante quando a minha prima Ana Helena era criança. Ela se destacava por cumprimentar todas as pessoas quando chegava em um aniversário ou reunião de família. Sabia que a minha tia teria o passo a passo para que eu pudesse ensinar este novo comportamento à pequena.

Como eu já desconfiava, ela me disse que o maior erro é forçar a aproximação, empurrar a criança para beijar o parente. Forçar a aproximação pode incitar aquele comportamento de esconder atrás do pai ou da mãe, de grudar na perna feito um macaquinho. Ela explicou que adultos estranhos, mesmo que em meio a conhecidos, parecem ameaçadores para a criança. Pode ser pior coagir do que não cumprimentar. Quando se obriga, corre-se o risco dela explicar porque não quer dar um beijo na tia Cacilda e gerar aquele tipo de constrangimento:

Vai, Anelise, dá um beijo na tia Cacilda!

— Eu não quero, ela tem bigode e parece uma bruxa...

O procedimento bem sucedido da tia Egle começava dentro de casa. Ela explicava pra Ana Helena aonde eles iriam e quem estaria lá. Especificava os convidados da festa, citava seus nomes e dizia que teria mais algumas pessoas que ela não conhecia, mas que eram amigos dos conhecidos. No percurso de carro, relembrava a Ana Helena de cumprimentar cada um dos presentes porque eles ficariam felizes com a sua educação.

A Natália e eu registramos todos os detalhes e colocamos o plano em prática. E não é que funcionou? A Anelise deixou de se retrair e passou a saudar as pessoas quando chegamos nalgum lugar. Animado, voltei para contar o resultado para minha tia.

Ela ficou satisfeita com os primeiros passos, mas, como boa professora, resolveu contar o que aconteceu em uma determinada ocasião. Sua família chegava a uma festa acompanhada dos meus avós. Na porta da casa estava sentado um morador de rua conhecido na cidade. Minha prima Ana Helena não hesitou em pôr em prática o costume de sempre. Deu a mão ao pedinte para lhe cumprimentar. Minha avó já queria interceder e impedir o contato quando minha tia pediu que ela deixasse. E a Ana Helena tascou um beijo no rosto do mendigo.

Ela disse que deixou para me contar esta parte de sua experiência depois que eu acreditasse e testasse a técnica que ela me ensinou, pois só assim ela poderia funcionar. A segunda parte da lição consistia em entender que eu não deveria desdizer uma regra que eu mesmo criara, mesmo numa situação difícil como aquela que aconteceu com a minha prima. “Foi só levar ela pra lavar a mão depois”, contou.

Para educar é preciso ser coerente naquilo que anunciamos e naquilo que fazemos. A criança não aceita exceções que partam do adulto que a ensinou como deve fazer. Ao descumprir a regra, jogamos fora todo o esforço de proporcionar a aprendizagem.

É quando a gente acha que está ensinando que descobrimos quem tomou a lição. Educar é desaprender o que a gente acha que sabe para ensinar o que a gente ainda não aprendeu.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Desaprender é tão importante quanto estar disposto aprender. Há quem passe uma vida achando que sabe.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, Caderno Dois, p. 3, 10/11/2012, Edição Nº 1225. 

sábado, 27 de outubro de 2012

Resgatar para Reviver





Se eu lhe contasse que a primeira foto retrata minha infância, o que você pensaria a meu respeito?

Poderia dizer que eu já demonstrava sinais de ser um escritor desde pequeno. Explorando o ambiente ao redor, pensaria que entre uma lauda datilografada e outra, exercitava minhas habilidades musicais no órgão ao fundo.

Isso se fosse eu que estivesse na foto. Na verdade é meu amigo Cleber Navarro, que resolveu tirar alguns retratos da gaveta e publicar no facebook.

Eu fiquei com inveja da foto. Achei a composição estilosa. Um ícone dos anos 90. A fruteira cromada com frutas de plástico típicas daquela época, a toalha de crochê igual a da mesa de jantar da casa da minha avó, a máquina de escrever azul calcinha.

Curti tanto a foto e seus detalhes que a mãe do Cleber, Dona Tita, me mandou uma toalha de crochê igual a da foto. Eu abri o baú da sala, peguei minha máquina de escrever laranja e tentei reconstituir a cena. Já que a primeira foto não era minha, resolvi produzir uma foto para ter saudade dos tempos de hoje daqui vinte e poucos anos.

Quando eu ficar velho, vou poder usá-la para contar aos meus netos que fui testemunha da passagem da máquina de escrever ao computador. Vou tentar descrever o que era um computador 486. Expor como era o uso da tecnologia antes do notebook. Florear histórias de um tempo sem tablet.

Talvez a lembrança tenha sido aprimorada depois da invenção da foto. A foto é o registro do que já passou, a prova do que aconteceu e salva em imagem o detalhe que possivelmente seria esquecido. Enquanto eu arrumava os objetos para reconstituir a cena, atraí pra perto a minha gata persa que se aninhou na cadeira da frente e junto veio a Anelise, que se encantou com a máquina de escrever:

— Pra que que serve isso que tá em cima da mesa?

Aproveitei a ocasião e ensinei a Ane a usar o equipamento e tirei uma foto da sua primeira experiência datilográfica.

As fotos que escolhemos para ocupar um álbum são aquelas que tem momentos que nos fazem sentir orgulho, que nos trazem de volta boas lembranças, que evocam sentimentos positivos e que registram poses que passam pela nossa própria crítica.

É mais fácil escolher os melhores momentos do que encarar as fotos que remetem as fases mais difíceis de nossa vida. Quem nunca teve vontade de rasgar uma foto? Picar o papel para ver se apaga a memória.

Eu já censurei algumas fotos, coloquei a reprovada atrás da permitida no saco plástico do álbum. A foto revela. Se meu contrangimento não pode ser revelado, eu escondo a foto.

No tempo das máquinas analógicas a surpresa era maior. Não havia como antecipar o resultado. Era impossível corrigir a imperfeição da expressão. Não cabia o imediatismo.

Quem sabe seja este o motivo das fotos de si mesmo não serem tão frequentes quando as máquinas fotográficas eram analógicas. O que faz alguém fazer pose na frente do espelho é a confirmação da sua imagem. É o resultado rápido na tela digital. É a possibilidade de mexer um pouquinho na pose, acertar uma mecha de cabelo. Isso se repete até que a foto atinja os critérios próprios, depois de uma dezena de fotos.

Fotos antigas costumam chamar a atenção. Percebo que o resgate é prazeroso para quem viveu a época fotografada e muito curioso para quem sequer havia nascido e não imagina como era a vida naquela época.

Não se contente em resgatar um retrato antigo. Divulgue-o. Multiplique a nostalgia. Conte histórias sobre o que acontecia naquele momento. Se puder, reconstitua a cena. Chame as pessoas da foto, volte ao mesmo lugar. Repita a pose. Reproduza a foto. Não tenha receio de parecer bobo. 

Reviver é atualizar o passado para curtir o presente.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Você percebe que já não é tão jovem à medida que se pega surpreso com o quanto alguém que você conhece cresceu na foto ou quando percebe pela imagem que viveu uma época que já não é mais.



Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, Caderno Dois, p. 3, 27/10/2012, Edição Nº 1223. 

sábado, 13 de outubro de 2012

Cafezinho com Amor

Arte de Weberson Santiago



Angela e Rubens se casaram muito jovens e tiveram três filhos, duas mulheres e um homem, que lhes deram 7 netos. Foram casados por 54 anos, quando Seu Rubens veio a falecer. Teve um infarto seguido de complicações, faleceu dois dias depois de ser internado.

Eu conheci Dona Angela no balcão da padaria. Todas as manhãs nos encontrávamos, quando ela tomava um café e comia um mini pão francês com manteiga. A interação é inevitável quando a repetição do encontro promove a convivência. Era minha parceira de guardanapo. Sempre que eu apontava na porta da padaria, Dona Angela mudava a caixinha preta de lugar. Era seu convite para sentar ao seu lado no balcão.

Dona Angela me contou que desde o dia seguinte de sua festa de casamento, Seu Rubens tomou o hábito de levantar com os primeiros raios de sol e passar o café. A primeira xícara que saía do coador era dela. Ele levava até a cama e acordava a amada. O café era o bom dia de Rubens a Angela.

No amor, o hábito se torna obrigação. Nos 54 anos em que estiveram casados, era assim que funcionava. Quando viajavam, se eram hóspedes de um hotel, ele descia até a sala do café da manhã e subia com a xícara cheia e fumegante. Em um fim de semana no litoral com um dos filhos e os netos, ainda assim ele cumpria seu ritual. A primeira providência no novo lugar era descobrir o coador e o pó de café. Contrariando a medicina, acordar com uma dose de café não terminou em gastrite. A explicação não é nada científica: nessa xícara eram adicionadas três colheres de chá de amor.

Ela nunca recusou, nem quando estava sem vontade. O gesto de amor não pode ser rejeitado, qualquer espécie de carinho não merece negativas, ainda que seja inconveniente.  “Algumas vezes eu acompanhava os familiares na cerveja até as duas da manhã, enquanto ele se deitava quando o relógio marcava dez da noite. Às seis horas, mesmo com a ressaca e como hóspedes na casa da nossa filha, ele me levava o café na cama”, confessou.

Quando Angela perdeu Rubens, não sabia fazer café, mas não se abateu. Elegeu a padaria para lhe fornecer o mimo de todas as manhãs. Preferia lembrar, na padaria, da imagem do despertar com o café e o chamado carinhoso do marido, a esperar que isso acontecesse na cama depois da imposição de sua ausência. A contrapartida para o amor que recebera todos os dias era conservar a disposição.

A história de Dona Angela me fez lembrar um hábito de minha avó. Ao passar o café de manhã, assim que enchia o suporte de plástico do coador de papel com água fervente, levantava o coador e enchia uma xícara esmaltada amarela. Servia o primeiro café para São Benedito. Quando criança, questionei o café do santo, mas fui severamente repreendido e obrigado a retirar a xícara da frente da imagem quando o santo estava satisfeito (o que se dava perto da hora do almoço).

Minha avó não está mais entre nós e talvez até se encontre no mesmo lugar que Seu Rubens. Juntos estão passando café pro São Benedito. Minha surpresa foi perceber, dias destes, que seu hábito foi preservado pela sua cozinheira. Ela passa café pro meu avô e todas as manhãs serve o São Benedito.

Permeando as atitudes de Seu Rubens e de minha avó está a subserviência. O cuidado em servir, em fazer por alguém. Eles não foram obrigados a coar o café sob pena de alguma consequência grave, mas escolheram fazer assim. A atitude com amor começa sensível à vontade alheia. Depois que se fez uma rotina, acontece independente da vontade do outro. É uma submissão voluntária que se torna uma obrigação a partir de uma iniciativa.

Não existe fidelidade mais bonita do que a escondida por detrás de um hábito.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Coador. Coa a dor. Com fé. Café. Café e coador. Cafezinho com Amor.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, Caderno Dois, p. 3, 13/10/2012, Edição Nº 1221. 

sábado, 29 de setembro de 2012

Sentimento Escondido no Tumulto

Arte de Weberson Santiago



Em família, bastam alguns segundos. E tudo o que ia indo bem se torna uma grande confusão.

A Natália tinha acabado de acordar num domingo em que iria trabalhar e ido direto para o chuveiro. Eu havia levantado um pouco antes e estava as voltas com o café da manhã, imbuído da tentativa de aproveitar o pouco tempo que teríamos juntos naquele dia.

Até que a pequena Ane, ainda ensonada e já sabendo que a mãe iria trabalhar desde a véspera, foi até o banheiro, parou do lado de fora do box e disse:

— Mãe, eu quero tomar banho com você!

Da mesma maneira que eu queria arrumar o café para aproveitar a convivência, ela queria o banho para ficar um pouco mais perto da mãe. Acontece que ainda nem eram sete horas de uma manhã fria, e o banho poderia lhe render uma dor de garganta ou resfriado, preocupação excessiva e previsão improvável já que o amor previne doenças quando correspondido. Quando negamos o pedido, ela abriu o berreiro. Instalou a balbúrdia em nossos sentimentos apelando com o uso do choro e do grito. A desordem havia tomado conta. O que deveria ser o aproveitamento da única hora em família disponível se tornou um pesadelo. Birra e choro da parte de Anelise. Culpa de trabalhar dias e dias seguidos, e ainda estudar a noite, da parte da Natália. E eu tentando retomar o controle da situação, já arrependido de ser autoritário e não ter deixado ela tomar o banho com a mãe. Até tudo se acalmar, o relógio marcava a hora da Natália sair.

Foi a Natália dobrar a esquina e a Anelise estava calma e distraída enquanto contrariava as linhas retas das pautas do seu caderno com rabiscos coloridos. Foi então que eu entendi o que havia acontecido. Ela sabe muito bem ficar sem a mãe. A Natália trabalha bastante desde muito antes dela existir. Ela aprendeu a distância pouco depois que nasceu. A birra não era o sintoma da incapacidade de suportar a ausência. Era um manifesto de insatisfação pela vida exigir o contrário do que ela gostaria que acontecesse: querer passar um dia juntas.

O domingo que a Natália trabalha para mim já é uma segunda-feira. Eu disparo a preencher o tempo com períodos de trabalho e alguns momentos em família. Não é a mesma satisfação de quando estamos todos lá, fazendo as coisas que não couberam na semana, muitas vezes cada um num cômodo, mas sabendo que o outro está disponível dentro de casa. Já reparei que esse domingo em família é o que me renova a disposição pra começar mais uma semana. A Natália diz que sente o mesmo. Fica difícil deixar de lado a insatisfação dela ter que trabalhar no dia sagrado.

O mundo funcionava quando as coisas ainda não abriam aos domingos. Se eu pudesse, escolheria por todo mundo. O acesso as compras restrito até o sábado. O almoço da minha avó saía no domingo quando não tinha supermercado aberto. Ninguém precisava sair pelado porque a loja de roupas do shopping não estava disponível no domingo. Se eu conseguisse fechar o comércio noste dia, acredito que as pessoas seriam mais felizes, talvez até salvaguardaria o orçamento das famílias do endividamento. Os funcionários não atenderiam com tão pouco caso quando a vontade falasse mais alto e ele não quisesse estar ali naquele dia. Enquanto meu devaneio não se faz realidade, me sobra a opção de administrar os efeitos das ausências da Natália.

O que a Anelise precisa aprender é a lidar de uma forma diferente com a insatisfação de ver a sua mãe saindo pro trabalho no fim de semana. Aprender a aceitar a carência da companhia. Eu entendo bem o que se passa com ela. No começo do meu namoro com a Natália, quando ela tinha de trabalhar no domingo, eu cavava algumas brigas no sábado a noite. No dia seguinte, acordávamos separados por uma parede de travesseiros nos cantos da mesma cama, com o corpo em formato de parênteses contrariados, cada um pra um lado.

Eu prolongava a indiferença e o conflito economizando no bom dia. Enquanto sofria com os sentimentos da briga depois que ela havia saído, parei pra pensar porque eu fazia isso. Minhas atitudes não eram para para apaziguar os ânimos. Eu não queria entrar em acordo. Queria que a raiva dela que eu havia criado e nutrido me fizesse a companhia que ela não poderia me fazer. Entrar em consenso só aumentaria a saudade. Depois que eu percebi isso, passei a enfrentar o impedimento do amor de maneira menos infantil. Passei a cozinhar nos dias em que estou de folga e ela trabalha. Entre procurar a receita nos livros, comprar os ingredientes e preparar a comida, me distraio da saudade. Quando ela chega e encontra o jantar, vejo que consegui transformar toda a falta que ela me fez em temperos e na combinação de ingredientes.

A Ane precisa achar uma estratégia. Como a que eu arrumei para os momentos que sinto falta dela quando ela passa alguns dias na casa das suas avós, longe de mim. Eu roubo um CD da sua estante e coloco no meu carro. Durante a correria entre os compromissos de trabalho, ligo uma das suas músicas preferidas e imagino os percursos que fazemos juntos, cantando. É assim que eu não transformo mais as minhas insatisfações de saudade em confusões. Eu só não sei como eu posso ensinar isso pra ela sem que ela passe a dar falta dos seus discos preferidos.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Amadurecer não é deixar de ter sentimentos infantis. Amadurecer é voltar a ser criança para encontrar na espontaneidade a melhor forma de lidar com estes sentimentos.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, Caderno Dois, p. 3, 29/09/2012, Edição Nº 1219. 

sábado, 15 de setembro de 2012

Toda Família é um Zoológico

Arte de Weberson Santiago



Toda família é um zoológico.Cheguei a esta conclusão quando assisti ao filme “Compramos um Zoológico”. O título lembra os filmes exibidos na sessão da tarde, mas o longa-metragem é belíssimo. Baseado na história real do jornalista Benjamin Mee, que perdeu sua esposa e decide se adaptar a esta situação, mas precisa de uma nova casa para viver com seus filhos, uma encantadora menina de cinco anos e um garoto adolescente com problemas na escola.

Buscando a nova casa na companhia de sua filha, se interessam por um imóvel na zona rural da cidade. Decididos a ficar com a propriedade, descobrem que ela é parte de um zoológico, e a exigência para concretizar o negócio é administrar os animais e salvar o zoológico, com a ajuda da equipe de funcionários tratadores. Benjamin aceita o desafio de reabrir o zoo e se muda para a casa com seus dois filhos.

A história se desenrola em torno da reabertura, mas o que me chamou a atenção no filme foram alguns pontos da história do personagem central com a sua mulher, já falecida no início do filme. As cenas de flashback mostram que o casal era muito feliz. Benjamin se dedicava a profissão de repórter intensamente. A mulher cuidava dos filhos e da casa, dando suporte para ele se dedicar inteiramente as suas reportagens e cobertura internacionais.

Minhas observações na vida me fazem acreditar que é possível se apegar pessoas insuportáveis e a relações difíceis, de maneira que a perda dessa pessoa possa ser um grande sofrimento, ainda que livre o seu cotidiano de uma boa dose de aborrecimento. O caso de Benjamin é o contrário, foi a perda de um grande amor, de uma parte importante de uma família que a fazia funcionar, que era importante para viver momentos felizes. A morte da mulher causa um desequilíbrio na trajetória familiar, exigindo que Benjamin se adapte. O filme me fez pensar que a perda de um grande amor só pode ser curada com a compra de um zoológico. Dizendo de uma maneira menos poética, que só é possível não se entregar diante da perda de um amor se arrumarmos um desafio para se dedicar, uma grande empreitada para se entregar.

Não como uma substituição de cuidados ou para esquecer a perda, e sim para aprender a suportá-la. Para lidar com a morte é preciso se distrair do buraco deixado pela partida de quem amamos e, enquanto isso, vamos processando a sua falta cuidando de algo. Encarar somente a dor da perda e se esquivar do que ficou no mundo é o que faz alguém se deprimir.

Durante a aventura com os animais e no gerenciamento da equipe de profissionais, Benjamin precisa superar seus limites para resolver coisas que ele nunca havia lidado na vida, como se aproximar do filho. Uma das cenas mais emocionantes é quando ele se nega a sacrificar um tigre muito velho, contrariando o parecer da veterinária. Foi na necessidade de aceitar a morte do tigre que ele decide deixar a saudade da esposa para trás, viver o presente e reconstruir sua vida afetiva.

Para saber se ele consegue reabrir o zoológico e qual o destino dessa família você terá que assistir o filme. Vale a ida até a locadora. Você pode pedir para o seu marido buscar o dvd. A não ser que ele seja do tipo bicho preguiça, daquele que se esparrama no sofá da sala e não é capaz de responder uma pergunta pergunta sequer depois de um dia de trabalho. Mas não desista, peça para o pavão. O pavão é o filho adolescente que privatizou o banheiro só pra ele, deixando todo o resto da família rugindo de raiva feito leão. Entre as horas trancado no banheiro e o isolamento na frente do computador (feito um cachorro diante do frango assado girando no espeto) o filho pavão pode buscar o dvd pra você.

Se as duas sugestões acima não parecem possíveis, o jeito é acordar com as galinhas e buscar você mesma. Ponha na TV assim que a família terminar o almoço. O marido preguiça e o filho pavão vão adorar o filme. Mesmo fazendo você de gato e sapato, terá valido a pena o esforço, sobrando apenas a pilha de louça para depois da subida dos créditos no final do filme. Administre o latido cachorro ou a briga entre o gato e a calopsita durante as partes mais importantes da história.

Só não tente convidar qualquer parente porco espinho. O convite vem com brinde: a certeza que você levará um espetada. Não adianta se arrepender depois do fim do filme. É preciso ser macaco velho e não esperar que as coisas deixem de ser como sempre foram. Não se deixe enganar com o cunhado ouriço, ele também tem espírito de porco e vai trazer uma caixa de cerveja pra assistir o filme, transformar o marido em cavalo no dia seguinte, cheio da ressaca, distribuindo coices.

Toda família é um zoológico. Um zoológico disfarçado que finge ser civilizado.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Os quartos podem se tornar jaulas. A escolha é entre domar as feras ou ser devorado por elas.



Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 15/09/2012, Edição Nº 1217.