sábado, 30 de abril de 2016

O Sabor de Uma Tradição

Arte de Weberson Santiago



Em datas festivas, a família do meu pai tem o costume de comer cabrito ensopado. O preparo é longo. O molho vermelho com azeitonas pretas fica dias cozinhando até que a carne comece a desmanchar e a desprender do osso. Come-se com arroz branco e batata palha, tudo feito em casa.
Apesar de ainda preservarmos a tradição de comer cabrito, fiquei incomodado com uma diferença que eu percebi no prato com o passar dos anos. Parece-me que o cabrito não tem o mesmo sabor da minha infância. A receita é a mesma, a cozinheira é a mesma que repete o mesmo passo a passo do caderno de receitas manuscrito de minha avó há vinte e cinco anos.
Fico buscando motivos para explicar essa perda de sabor. Suponho que é a falta da supervisão de minha avó durante a cocção. Talvez seja a sua morte o motivo da mudança no gosto do cabrito. Não sei. Fico em dúvida se é realmente este o motivo.
Todas as vezes que viajo para o litoral, para onde ia desde pequeno com a minha família, faço questão de visitar os restaurantes que costumávamos frequentar. A pizzaria melhorou, e muito. O tradicional restaurante de pescados e frutos do mar continua impecável, preservou exatamente o mesmo preparo e sabor. Já a churrascaria, que era conhecida por servir carnes na brasa acompanhadas de um molho secreto de cebola e ervas em um longo balcão resolveu ampliar o espaço, mas não conseguiu conservar o sabor.
O molho não surpreendeu pelo toque final do paladar, parecia que faltava um ingrediente. A carne aparentava não ter sido realmente feita na brasa. Suponho que eles tenham trocado o carvão pela churrasqueira a gás, tendência que vem fazendo com que pizzarias e churrascarias deixem seus pratos com cara e gosto de genérico.
Temo ser impiedoso e penso: “será que não fui ao estabelecimento em um dia ruim de serviço?” ou “será que a perda de sabor não se deve ao meu estado de humor do dia?”.
Não é possível repetir um mesmo costume para manter a tradição e esperar que a repetição resulte sempre no mesmo sabor. Talvez o sabor de um prato seja a somatória de diversos ingredientes, aqueles usados no prato e aqueles que estão ao redor da mesa, do contexto de fora da sala de jantar e da casa ou do salão e do restaurante.
Se a repetição não produz o mesmo sabor, penso que não devo lamentar o final de uma tradição. Devo utilizar do incômodo com o prato insosso para experimentar outros sabores. Percebi que talvez seja a hora de mudar de costume, para quem sabe produzir uma nova tradição.
Foi o que eu fiz quando não gostei da última vez que fui na churrascaria. Fui conversando e pedindo indicações até que descobri um ótimo restaurante. A próxima vez que for lá, quero provar outro prato.
A repetição de um costume constrói uma tradição, mas nem toda tradição é eterna.
UM CAFÉ E A CONTA!
| É variando a escolha que descobrimos novas fontes de prazer.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 30/04/2016, Edição Nº 1405.

sábado, 16 de abril de 2016

Fugir Para Reencontrar

Arte de Weberson Santiago



Quando alguém divide comigo a vontade de fugir e deixar para trás algum conflito interpessoal eu sempre repito: o que você não resolve quando acontece, mais adiante reaparece para ser resolvido.
Não falo isso porque ouvi alguém falar. Não falo isso porque aprendi na faculdade de Psicologia. Falo isso porque toda vez que eu tentei me esquivar de enfrentar as situações de conflito, alguma situação semelhante aconteceu para que eu me lembrasse da pendência.
Aos vinte e poucos anos, quando acabou um namoro de três anos, resolvi fazer uma viagem para tentar fugir do sofrimento. No meio do caminho, numa das paradas do ônibus, entrou uma moça e sentou ao meu lado. Quando puxei papo, descobri que ela havia acabado de sair de uma separação bastante turbulenta. A viagem serviu para a lamentação dos machucados deixados pelos relacionamentos que não deram certo. Encontrei no caminho o que eu queria ter deixado para trás.
Há alguns anos, tive uma pequena discussão com meu avô que terminou com ele sendo rude como nunca havia sido comigo. Resolvi passar alguns dias sem vê-lo até que minha raiva diminuísse. Naquela mesma semana se matriculou um idoso no horário em que eu pratico natação. Enquanto todos os demais dividiam as raias, ele era espaçoso e ocupava uma raia só pra ele fazer sua hidroginástica. Tive de me controlar para não ser grosseiro e descobri que parte da raiva tinha a ver com o que estava engasgado pelo que aconteceu com meu avô, e não era justo descontar nele. Resolvi conversar com meu avô e retirar a raiva do meu caminho.
Rompantes de fuga não levam a gente muito longe, mesmo percorrendo milhares de quilômetros. A hora que a gente para de correr, se depara com um espelho: as situações novas que refletem nossas as velhas questões mal resolvidas.
A gente deixa as situações de conflitos quando foge, mas leva numa mala invisível os sentimentos que precisam ser resolvidos. E só serão resolvidos se encararmos a situação que tentávamos evitar.
As situações nos mostram que é preciso encarar o problema do qual fugimos. Sem a necessidade de se culpar por ter tentado fugir, o melhor é mudar a direção e ir em direção ao conflito para resolvê-lo.
Encarar é desagradável e vem acompanhado de alguma dose de sofrimento, mas é necessário. Além disso, ficar adiando o enfrentamento pode ter como consequência tornar o problema ainda maior e mais difícil de resolver lá na frente.
Sem enfrentar não é possível superar.
UM CAFÉ E A CONTA!
| A fuga só vem acompanhada de liberdade quando superamos nossos conflitos.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 16/04/2016, Edição Nº 1403.

sábado, 2 de abril de 2016

O Pôr da Sol

Arte de Weberson Santiago




Reencontrei a Sol dia destes, na fila da padaria. Enquanto esperávamos nossa vez de pegar o pão nosso de cada dia, aproveitei a oportunidade de me atualizar sobre a vida dela. Sua filha mais velha estava grávida e ela seria avó em quatro meses.
Embora a notícia do neto fosse prodigiosa, Sol compartilhou comigo a preocupação com o futuro do neto. “A vida está muito difícil nos dias de hoje, tem que pensar muito antes de pôr uma criança no mundo”, disse. Ela reclamou que não sabe se a filha fez um bom casamento.
Foi quando percebi que ela continuava a mesma dos tempos em que convivemos. Sol e eu fomos contemporâneos nos tempos estudantis. Fizemos o ensino fundamental na mesma escola. Ela é alguns anos mais velha do que eu, mas sua irmã estudou na minha sala.
Daquele tempo, me recordo que Sol foi sempre uma garota levemente deprimida e, ao mesmo tempo, complacente. Vivia rodeada de amigas, mas tinha um jeito peculiar de ser. Uma espécie de pessimismo congênito, uma mania de ver o lado negativo das coisas. Resistia brincar de pega-pega porque poderia cair e quebrar um dente. Ao contrário das outras crianças, não comemorava quando a escola planejava uma excursão. Não gostava de sair da rotina. Ainda assim, Sol era uma apática simpática.
Ia cabisbaixa para a aula de educação física porque tinha que correr. Sol era tão reflexiva e vagarosa que não conseguia conciliar o movimento e o pensamento nas aulas de vôlei. Ou ela olhava a trajetória e pensava onde a bola iria cair, ou ela corria. E a Sol nunca acertava a bola, nem quando ela vinha redonda em sua direção. Se era para dar o toque, ela tentava uma manchete e tomava uma bolada no peito. Se era para dar manchete, tentava o toque e via a bola cair entre as suas mãos, rente ao seu corpo. Sol não era movimento, sol era contemplação.
As crianças, em seu jeito de ser, costumam ser empolgadas e inocentes ou agitadas e agressivas. Sol não. Sol esbanjava marasmo e talvez por isso despertasse nas outras crianças a vontade de desafiar a sua tristeza com o vigor de sua energia. Nunca conseguiam tirá-la do lugar, mas havia sempre alguém ao seu lado, como se algumas de suas colegas revezassem a companhia. Nunca vi a Sol sozinha. Sol não se sentia a principal estrela, mas Sol sabia que era parte de um sistema solar.
Quando saí da escola e fui fazer o ensino médio em outro colégio, perdi o contato com a Sol. Soube quando ela se casou e quando teve suas filhas. Gostei de reencontrá-la naquele dia e matar a saudade da luz, ou melhor, da sombra da Sol. Mesmo com o discurso igual ao da hiena do desenho da nossa infância: “Ó céus! Ó vida! Ó azar!” e “Isso não vai dar certo...”. Nesta última vez, fiquei com a sensação de que Sol era uma luz quase se apagando, mas que não chegava a incomodar quem queria enxergar.
Um mês depois, soube de uma triste notícia. Sol não aguentou passar pelo solstício de inverno. A escuridão passou a ocupar a maior parte do dia da Sol. A sombra foi crescendo, aumentando. Sol foi ficando pequena, fraca. Sol se matou. Pôs fim a própria vida. Não chegou sequer a conhecer seu neto. Entendi que Sol sempre foi madrugada. Compreendi que Sol era a pura melancolia da noite. Sol era lua. Nunca esquecerei do dia em que a Sol se pôs.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Quem se mata o faz para por fim ao próprio sofrimento, insuportável. E este sofrimento passa para quem fica.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 02/04/2016, Edição Nº 1401.