domingo, 25 de abril de 2010

Imprevistos e Improvisos

Weberson Santiago


Saio do clube às 11 horas depois de 4 entrevistas de seleção de funcionários em direção à Escola. Mais um dia de coleta de dados do mestrado, esperava cumprir as 4 sessões em 90 minutos, cada uma dura 15 minutos mais o tempo de montar desmontar os equipamentos e trocar os participantes. Teria uma hora para o almoço até o primeiro paciente. Ao entrar na escola me deparei com um aluno da oitava série vestido de Pitágoras. Teatro dos alunos do último ano sobre aplicações do teorema de Pitágoras no dia a dia. Os alunos foram bem, em especial dois que fizeram os caipiras que queriam descobrir a medida da hipotenusa formada pela tábua diagonal da porteira. Capricharam no sotaque e, principalmente, no improviso.

É interessante observar como a escola é um ambiente espicaçante. As crianças e sua energia sem fim, os professores e o desafio de formá-los. Muitas interações de aprendizagem, para ambos os lados. Inspiração à parte, acabei tendo que esperar os atores serem liberados para minha pesquisa e saí de lá as 13 horas. Vôo rumo a casa pra comer alguma coisa, e já vou ligando computador. Sinal de bateria sendo usada com o fio ligado na tomada. Verifico e a luz da bateria apagada. Mudo de tomada, aperto os encaixes e nada. Saio correndo pra uma assistência técnica do outro lado da cidade, pedindo que me arrumem para o mais rápido possível, a aula que daria as 19 horas estava lá num arquivo intacto só precisando da energia da tomada. Faltava funcionar o cordão umbilical. Saio correndo para chegar antes da paciente, e chego.

Termino os atendimentos faltando meia hora para a reunião com diretor professores de educação física no clube, de onde sairia direto para dar aula. Antes de entrar no encontro, coloco para baixar no clube um vídeo que estava dentro do meu notebook que seria usado na aula, já que a assistência técnica não se manifestara sobre a devolução. Na dúvida de qual era o vídeo correto, baixei dois. Saindo da reunião quinze minutos depois das 18 horas, coloquei os dois arquivos no pen-drive e saí rumo a faculdade, localizada numa cidade há 20 km da minha. Desci tão rápido do carro que esqueci o vidro do passageiro aberto, mas tive a sorte de não ser roubado. Chego minutos antes do início da aula e entro com o sinal. Parte da aula foi verbal e quando fui passar o vídeo, constato que os dois baixados não eram o que eu precisava.

A esta altura já me divertia com a seqüência de imprevistos e resolvi dividir a grande ocorrência destes num único dia com os alunos. Diante disso, me recordei de ter no mesmo pen-drive um arquivo de texto que tratava do mesmo assunto do vídeo que não estava disponível e dei andamento na aula com ele. Difícil não constatar a dependência do computador portátil quando seu uso se dá das 7 às 21 horas quase todos os dias. O dia seguinte seria um feriado de trabalho num artigo com prazo apertado, que teve de ser reprogramado.

Um dia tem tantos objetivos específicos que os imprevistos em alta freqüência tendem a ser analisados por comportamentos supersticiosos. O desafio é não se irritar com as surpresas pouco agradáveis. Mais provocador ainda é improvisar uma alternativa diante da falta de uma primeira planejada. A única certeza é que atingi os objetivos mesmo diante dos imprevistos, buscando e encontrando boas doses de improviso. Cheguei em casa, ascendi uma vela, apaguei a luz, liguei uma boa música e abri um vinho. Merecia um ambiente relaxante. Já que não tinha o computador, o jeito era fazer no feriado o que não precisava dele, e descansar.




Dedicado aos humoristas stand-up que me ensinam como improvisar. Sigo vários no twitter.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

sábado, 17 de abril de 2010

Herança

“É, vida voa. Vai no tempo, vai. Ai, mas que saudade,

Mas eu sei que lá no céu o velho tem vaidade e orgulho de seu filho ser igual seu pai,

Pois me beijaram a boca e me tornei poeta, mas tão habituado com o adverso,

Eu temo se um dia me machuca o verso, e o meu medo maior é o espelho se quebrar.”

Do saudoso sambista João Nogueira

Costumo dizer que os filhos demonstram aos pais o quanto eles juntaram os seus melhores e os seus piores. De repente, me vejo fazendo o que sempre critico no meu pai ou em minha mãe. Em um dado momento, ele ou ela percebe que não adiantou cobrar uma postura de mim que eles mesmos não foram capazes de sustentar. Posso ser grato pelas oportunidades que me deram, mas posso me revoltar com as coisas que não quiseram me dar.

Os pais que estimulam, incentivam e reconhecem seus filhos podem ser críticos, incompreensivos e ausentes. Daí que pais despertem sentimentos contraditórios nos filhos e, do mesmo modo, os filhos despertem sentimentos antagônicos nos pais. Neste palco, há espaço para conflitos nas questões de dependência e independência em ambas as direções – de pais para filhos e de filhos para os pais.

Não há liberdade de escolha. Os pais fazem os filhos, mas não têm o direito de escolhê-lo. Os filhos nascem sem fazer opção pela sua família. Toda esta problemática transparece em um costume que considero significativo em todas as famílias: a herança.

A herança costuma ser um benefício cujo efeito se assemelha ao do trabalho. Para tolerar aquele emprego mereço além do salário receber um plano de saúde, vale refeição e uma cesta básica. A herança é o bônus pago pelo ônus de pertencer àquela família. Até a ausência de herança é válida para este fim: tão azarado fui ao ser desta família que sequer me deixarão algum bem.

O inventário de bens é o instrumento de retaliação do ente que morreu. É o uso do poder do defunto, que faz suspense sobre quem receberá aquilo que ele foi capaz de acumular durante a vida. Não é atoa que a partilha, quando não foi definida em testamento, já foi tema de filme de drama, tragédia, comédia e até terror.

Herança boa é a que se ganha em vida. Aquele que um dia se vai faz questão de deixar o presente com você, com direito a explicação de sua história e oportunidade de agradecimento.

Tenho a felicidade de ter meus quatro avôs vivos e com saúde. A oportunidade de compartilhar as experiências de vida deles será minha maior herança. Por mais que conheça as histórias mais contadas, vivo a descobrir passagens e situações interessantes que eu não conhecia.

Já tive a experiência da perda com a Tia Joana, irmã de minha avó paterna, que nunca teve filhos e, por freqüentar assiduamente nossa família, se tornou minha terceira avó. Quando ela morreu, me deixou seu Fusca 1978, original com 50.000 quilômetros e cor vinho. Na época morava em São Paulo, o carro ficava parado em Mococa e estava se deteriorando. Resolvi vender a relíquia.

Duas heranças recentes, doadas em vida, me foram importantes. A primeira foi uma tartaruga de estanho que foi dada a minha avó Malvina por uma pessoa querida e que ela cedeu para minha coleção de tartarugas. Precisei restaurá-la de certas quedas de nossa infância, ela foi um dos objetos mais cobiçados como brinquedo na casa da vó por todos os dez netos e acabou ferida.

O segundo foi do último almoço de sábado feito pela mesma avó. Durante a refeição fui pegar um copo e achei uma relíquia. O copo verde comprido de plástico com meu nome gravado pelo meu avô. Tinha mais ou menos três anos de idade quando cada neto ganhou o seu, da marca TupperWare (aquela que deu nome a qualquer pote de plástico) e que vinha com uma tampa transparente.

A casa do meu avô Raul sempre vivia cheia. Eram cinco filhos com amigos e namorados, que depois viraram cônjuges e deram netos. Sem contar que o negócio da família era as famosas malas Zamarian e, por isso, sempre havia uma negociação na casa, seja com fornecedores ou clientes que eram recebidos com um café. Durante anos a fábrica de malas funcionou lá no porão da casa deles. Os copos foram pirografados para que as crianças só tomassem as coisas nos seus respectivos.

Quando comentei a surpresa de achar aquele copo no último almoço, minha avó disse para levá-lo embora e guardá-lo na minha casa como lembrança para não correr o risco de alguém dar um fim no objeto dessa história. O simples copo me remete as noites dormidas na casa deles, das leituras que minha avó fazia enquanto tomava o leite antes de dormir. Aliás, o copo de leite a noite é hábito transgeracional: meu avô toma todos os dias, minha mãe também. Preciso dizer que eu tomo? Aliás, agora o tomo na minha herança de vez em quando. E não é que fica mais gostoso? Obrigado, Vô Raul e Vó Ina.







Para meus primos da família Braga - Zamarian.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Impedimentos como portas

Enchente, de Weberson Santiago


Costumamos vislumbrar o futuro. Supor em pensamento o que queremos que aconteça. Parte de nossas atitudes hoje são tomadas com base naquilo que chamamos de sonhos. E essas atitudes nem sempre podem ter resultados imediatos. São idéias lançadas, mesmo que os resultados não sejam momentâneos.

O problema é que o que queremos pode ser contraditório, como se batêssemos em algumas portas que, se abertas, não pudéssemos adentrar em todas. E a vida surpreende. Aquela porta que você bateu palma porque não tinha campainha, gritou na esperança de alguém passar por detrás e abrir a ponto de dar as costas ao silêncio estático, de repente se abre.

Seria a realização do sonho, se outra porta não se abrisse ao mesmo tempo, em que você colhe os resultados que vêm na forma de oportunidades, mas que não podem ser aproveitados ao mesmo tempo. Se não for possível conciliar será, sim, o momento da escolha.

De qualquer maneira, entre em contato com cada uma dessas portas, observe-as desapegadamente e enxergue a sua possível abertura sem paixão alguma. Imagine-se como se fosse o protagonista de um filme demorado e entediante, que você é obrigado a assistir. A melhor maneira de livrar-se dos impedimentos é conhecê-los à fundo.

Você só poderá passar pelo batente e verdadeiramente trilhar o caminho por detrás da porta se tiver sido capaz de conhecer intensamente a espera.








sexta-feira, 9 de abril de 2010

Eu o quê?

Eu sinto.

No meu corpo as emoções,

Iluminadas pelas chamas de uma vela,

Cuja sombra estremece conforme os ventos sopram o fogo.

Sombra e luz não aceitam sempre o mesmo ponto de chegada.


Eu canto.

Músicas que dizem o que sinto,

Que as letras descrevem o que vivo,

Ou que as sensações do ritmo me estremecem os sentidos.

Uma letra em idioma desconhecido.


Eu olho.

As configurações de um mundo despercebido,

Os sentimentos estremecidos de uma cena.

Uma estética que define o preferido,

Ou que estranha o descabido.


Eu gosto do solavanco do sentimento,

Do barulho de estar vivo,

De olhar para o ocorrido.

Eu.







quinta-feira, 8 de abril de 2010

Consultório com cara de casa


Um ambiente acolhedor é um convite para o auto-conhecimento,
considerando que é preciso se sentir seguro e
à vontade para falar sobre as intimidades.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Meu lugar no público

Nunca me expus tanto como neste momento da minha vida. Sou Psicólogo de um clube com 5000 sócios, 90 funcionários e 1000 atletas em formação. Minha atuação envolve intervenções em todos estes níveis. Posso começar um dia com treinamento de funcionários com 15 a 30 anos trabalhando nesta função e terminar o dia com uma reunião de equipe de basquete ou natação com crianças de 11 e 12 anos.

Como professor, leciono disciplinas no curso de Psicologia para todos os semestres, salvo os do último ano. Embora valorize a oportunidade que é oferecida pela Universidade, com turmas de cerca de 30 alunos que chegam mais tarde e mais maduros no curso, também estou exposto diante dessa grande quantidade de estudantes.

Talvez o meu consultório seja o que me exponha menos por hora de trabalho, já que a proporção é de um para um. Um terapeuta para um paciente. Mas talvez também me evidencie em algum grau por dar acesso às versões dos próprios autores de muitas das histórias desta cidade de interior. Há também os pacientes que tomam a palavra do terapeuta e a repetem o tempo todo fora do consultório para lhe autorizar certas condutas, mesmo que seja preciso editar o dito.

Como psicólogo do trabalho e do esporte, costumo ser procurado pelas razões mais distintas para uma conversa privada. Em contrapartida, procuro os funcionários e atletas para trabalhar seus comportamentos em grupo. Desde que iniciei este trabalho, tenho me deparado com o quanto algumas pessoas se incomodam com minha presença e as possibilidades de ameaça que poderia significar neste ambiente de trabalho. Explico para não parecer um delírio persecutório. Muitas vezes o psicólogo é visto como alguém que vem procurar problemas ou mostrar falhas. Ninguém gosta de ser apontado, ainda mais aquele que conseguiu se cercar de avaliações do seu trabalho durante anos e se sente frágil perto desta possibilidade que minha presença desperta.

Quando era estudante de psicologia, assistia minhas colegas suspirando pelos professores. Sempre existia uma que se derretia pelo professor mais esquisito. Hoje ocupo o lado oposto e vejo que independente do que faça, não posso impedir que alguma aluna ou algum aluno fantasiem a respeito de como sou fora da sala de aula e até queira me conhecer neste contexto. Procuro respeitar estes sentimentos, mas tem horas que me incomodo e até me questiono sobre qual minha responsabilidade nisso tudo.

Outro dia discutia com meu terapeuta esses acontecimentos, quando ele descreveu propriedades de meus comportamentos. As pessoas tendem me enxergam como disponível e acessível. Tenho cara de disposição para o outro quando procuro ser educado, cumprimentar todos aqueles que encontro, ajudar quando me pedem, corresponder aos que se interessam por aquilo que estou ensinando no meu trabalho. Trato de igual para igual quem está disposto a aprender comigo.

Mesmo assim, chegam aos meus ouvidos críticas descabidas feitas por quem sequer tem idéia do meu trabalho, ou seja, de quem avaliou sem conhecer de perto. Ou também fico sabendo que determinado aluno pensa que pego no seu pé por questões de nota, quando eu na verdade o considero um ótimo aluno.

Os estudiosos experimentais do comportamento afirmam que pequenos detalhes em nossas atitudes podem ser estímulos para o comportamento do outro. Penso que o melhor exemplo para esta constatação é uma tela chamada Madrugada que fica numa parede de meu consultório. Ela é grande do tamanho de uma janela, possui um caminho com árvores ao redor, mas seu maior efeito se dá por ser toda preta.

Esta tela foi estímulo para diferentes relatos em meus pacientes. Uma moça dizia detestá-la, que a tristeza sentida diante do painel incomodava, preferindo o lugar que ficava de costas para a pintura. Outros conseguiam ver que embora escuro e entre a névoa, o caminho era visível e que a madrugada é o que precede o nascer do dia. Mais interessante foi o relato de uma mesma pessoa em diferentes momentos. Ora o quadro lhe despertava sentimentos ruins ora agradáveis.

Este exemplo ilustra o quanto não temos controle sobre a reação do outro. Se o quadro, que é um objeto estático, pode despertar comportamentos tão opostos em uma única pessoa, quem dirá um psicólogo falante durante os diversos momentos do dia cheio de pessoas e objetivos a cumprir.

No ínterim acabo me divertindo com as constatações dos papéis que ocupo na vida das pessoas. Me aborrecer seria perder tempo com algo que não tenho comando. Este papel de longe é definido apenas pela natureza de minha profissão de psicólogo ou pelo meu comportamento como pessoa. Quanto mais pública fica minha imagem, mais me surpreendo com o lugar que eu ocupo na vida do outro. O que salva é a porção privada que me resta, e que só tem acesso quem eu permito. O lugar que ocupamos no público é transformado a cada dia, nas pequenas situações. E o que realmente sou pode demorar a ser perceptível àquela pessoa que faz parte do meu dia.

Madrugada
Massa acrílica e tinta látex sobre painel
100x120 cm







Para João Camargo, μεγάλος φίλος.

sábado, 3 de abril de 2010

Crônicas com dispositivo GPS

Os aparelhos de GPS automotivos são usados para localizar o motorista nos mapas do local onde ele trafega, para levá-lo a um destino desconhecido e finalmente, para dar segurança de que não ficará perdido por onde houver cobertura de mapa. Informo aos leitores que minhas crônicas têm um dispositivo de GPS.

Com a mesma finalidade do motorista, cada crônica escrita carrega um dispositivo que registra as informações do leitor. O GPS de minhas crônicas chama-se Google Analytics. Posso saber em qual cidade o leitor acessou, qual navegador usava (Internet Explorer, Google Chrome, Firefox), quanto tempo permaneceu no site (acesso não é sinônimo de leitura), qual dos meios de divulgação o levou ao Observatório (Twitter, Facebook, Orkut ou pesquisa no Google) e muitos outros dados.

Veja bem, caro leitor que está sendo registrado ao ler estas palavras, o objetivo é o mesmo do motorista. Quero ver quais as ruas, avenidas, estradas e até os vôos transcontinentais por onde percorreram minhas palavras (recentemente constatei visitantes de Portugal, Irlanda, Estados Unidos, Espanha e Argentina).

Os dados mostram o quanto os textos atingem os leitores. É um desafio publicar com freqüência e dá segurança saber como o que é publicado é aceito por você que dispensa seu precioso tempo aqui.

No mês de março último foram 710 visitas de 249 leitores diferentes. Só este dado me mostra que o meu Blog fideliza o visitante, que retorna em busca de novas leituras. Destes leitores, 32% conheceram o Blog neste mês, sinal de que o leitor recomenda o que leu e que a divulgação está adequada. O recorde de visitas num único dia, desde que começou a ser monitorado, é de 98 acessos.

No Brasil, percorreu longos trajetos facilitado pela grande rede e chegou do Rio Branco no Acre até Lajeado no Rio Grande do Sul. A grande maioria dos leitores estão perto do cronista, dos dois lados da divisa onde se localiza a cidade de Mococa, nos estados de São Paulo e Minas Gerais.

Nós Analistas de Comportamento (minha linha de trabalho na psicologia) temos uma comunicação intensa e organizada por todo o Brasil, isso contribui para que os meus amigos da área se interessem em ver o que publico, independente do local em que estejam produzindo suas análises funcionais.

Neste findo mês os mais lidos foram Sara e seus 10 anos com 92 exibições, seguido de Os Cronistas e as Mulheres com 64. Tudo isso é muito importante para o cronista, que sente como se conversasse com o leitor, instigando a produção de novos textos. Esse é o lado interessante do Blog como meio de publicação e de produção literária: a rapidez da divulgação e agora a resposta mais rápida do leitor.

Gosto do feedback mais tradicional também. Gabriel, meu irmão que mora em Marília e faz medicina chegou contando neste feriado que foi abordado por uma colega que perguntou o que ele era do Augusto Amato Neto. Ela lê este Blog e quando viu o Gabriel numa foto da família que postei, suspeitou que fossemos irmãos e foi ter certeza. Gabriel disse que ficou orgulhoso de ver a repercussão do Observatório. E eu também.

Sempre bem-vindo leitor, fique tranqüilo ao acessar este Blog, pois o GPS do Observatório ainda não é capaz de registrar nomes, nem comentários imaginados na hora da leitura, muito menos expressões faciais na frente do computador. O Observatório lhe preserva a identidade anônima.

“Assim são os textos literários que, valendo por si, pertencem antes à ordem dos monumentos do que à dos documentos.” Antonio Cicero







Para os leitores do Observatório.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

A fé duvidosa no amor

Oi Augusto!

Eu e o Cláudio nos desentendemos muito facilmente, a gente pensa diferente - óbvio que ninguém pensa igual, mas eu não sei se eu estou exagerando, mas a gente pensa muito diferente e não só a crença religiosa é BEM DIFERENTE, mas nossos objetivos de vida. A gente se gosta muito e pensa em casar e construir uma família, mas eu acho que ele espera que eu me converta pra que isso aconteça e eu não vou me converter - eu o acompanhei na Igreja algumas poucas vezes e já participei de alguns eventos da Igreja só pra estar junto, mas pra isso eu procurei ver só o lado bom dessa Igreja.

As divergências não se restringem à religião, mas isso pesa bastante, principalmente porque ele está se dedicando cada vez mais e eu fico irritada com isso porque eu não consigo ver a gente se casando com ele participando e super envolvido com a Igreja.

Na verdade, em tudo que ele diverge de mim eu quero que ele faça como eu, pense com eu, queira como eu... Eu estou doente! Eu me irrito com as divergências e acabo falando o que não devo, acabo ferindo. Então, por um breve momento - mas muito breve mesmo - eu não faço julgamento nem emito minha opinião, mas essa não sou eu! Eu peço desculpas - sou sempre eu que jogo merda no ventilador - e as coisas se acalmam. Eu tenho muitas expectativas e sou muito impaciente e ele me dá a oportunidade de repetir meus erros. Eu não sei quem é mais acomodado - acho que ele - o meu problema é a insegurança.

Eu sei que um casal não precisa nem consegue ter a mesma visão e o mesmo sonho, eu sei que uma vida a dois não se faz anulando-se, mas algumas concessões precisam ser feitas, alguns sonhos precisam ser sonhados juntos, um precisa acompanhar o outro, estar junto, apoiar.

Eu ainda o amo e, por isso, vou tentar fazer dar certo - não sei como, mas eu vou tentar. Eu quero muito que dê certo. Ele é meu melhor amigo. Eu não quero perder ele.

Beijos,

Célia.

-oOo-

Célia,

A religião acaba por ocupar um espaço muitas vezes distinto da exigência da fé. Quando percebemos, não estamos seguindo a Deus, mas um sacerdote humano. Sem esperar surge uma dúvida sobre como o grupo interpreta as Sagradas Escrituras e faz disso o "pensamento de Deus". Quando uma religião torna-se o empecilho de um relacionamento afetivo, ela está cumprindo o oposto de sua obrigação: o de agregar as pessoas, de disseminar valores morais como a noção de irmãos enquanto filhos de Deus e o respeito às diferenças.

A Igreja está sendo a questão que vai mostrar que existem algumas divergências importantes entre vocês. O duro é que em certas Igrejas não se permite nada além do Canto Gregoriano que recita a Bíblia em uma melodia que não aceita cantores que se destaquem. Nesta "casa", as diferenças devem ser superadas sem sequer assumi-las, já que o Cristão verdadeiro não criaria conflitos, mesmo que não defender seu ponto de vista seja uma anulação.

Sentir o desejo de constituir família quando se ama não é sinal que o relacionamento comportaria este novo passo. Você define o casal como acomodados, e talvez o que queira seja uma relação que te apresente novos mundos, o que só acontece quando sai do lugar de sempre. Sobre as diferenças, o seu namorado foi a única coisa que te fez bem no emprego "seguro", mas sufocante na pressão. Você foi corajosa para trocar o certo pelo duvidoso nos empregos e talvez quisesse que ele te acompanhasse trocando o certo da Igreja pela fé duvidosa no amor.

O fato é que ele é o primeiro, fica difícil ter referências quando só se conhece um tipo de todos os possíveis. Claro que é possível ser feliz tendo sido uma única relação, mas é preciso estar consciente das implicações desta escolha. Seu email está cheio de “mas”, como se essa relação estivesse repleta de ressalvas. Ele te ama, mas... Ele quer se casar e ter filhos, mas... Não acho que seja você quem joga a merda no ventilador, ela já está excretada, você apenas mostra que ela está ali, o que vem a contrariar a “paz” que plainou até então.

Ele parece ser mesmo mais acomodado, mas tem o álibi de agir em prol da Igreja. Por vezes o início de uma prática religiosa começa na fé e termina na esquiva da vida. Passo meu dia cuidando da Igreja, da comunidade e do líder para que não encare o mundo fora deste território: a vida em seu sentido mais amplo.

Ainda continuo achando que a reposta estaria em um distanciamento para abrir espaço para revisar os sentimentos, mas tenho minhas dúvidas sobre essa possibilidade no seu caso, por duas razões: primeiro pela Igreja não apoiar esta iniciativa dos fracos que "não perdoam" ou "não aceitam submissão", segundo que a insegurança que diz carregar talvez não permita esse grito de liberdade mesmo que seja para a sobrevivência deste amor.

Discordo um pouco de uma de suas últimas frases. "Eu sei, um casal não precisa nem consegue ter a mesma visão e o mesmo sonho". Um casal não precisa sempre ter a mesma visão, mas precisa sim compartilhar o mesmo sonho. O sonho também inclui todos os passos do caminho para concretizá-lo. Se ele não se dispuser a estes passos (esteja certa de que deixou claro quais são), não compartilha o seu sonho. Neste caso restaria a vocês serem apenas amigos ou a ele ser apenas aquela parte que você diz que ele já é: seu melhor amigo. Qual parte dele não quer perder?

Uma hora essa negociação precisa vir à tona.

Beijos,

Augusto.





Nota do Autor: Este Blog não publica casos clínicos, e sim estórias baseadas na convivência social do autor. Os questionamentos e as respostas foram feitas por alguém que procurou o amigo psicólogo e não o psicólogo amigo. Foi publicado com autorização da personagem principal, cuja identidade foi preservada pelo nome fictício.