sábado, 22 de outubro de 2016

Amor? Ei, querido? Vem cá, bem!

Arte de Weberson Santiago



Como uma palavra que carregou tanto significado pode se tornar banalizada? É o que vivo a me perguntar, inquieto e inconformado.
Tome como primeiro exemplo a palavra amor. Amor é uma palavra que tem tanto significado que no meu dicionário é definida de vinte formas diferentes ou complementares. Só que, com tanto significado, por poder ser utilizada em tantos contextos onde cabem sentimentos entre as pessoas, acabou por ser esvaziada de afeto.
Chama-se qualquer um de amor. Usa-se “amor” como pronome à exaustão. Não estranhe se, na fila do banco, perceber que a pessoa que estava a sua frente venha a chamar o gerente do banco de “amor”. E não pense que se trata da mulher dele, nem da amante. É o excesso de intimidade. É uma sedução indecente.
Tenho dó dos românticos de antigamente, que buscavam viver o amor em sua essência, em profundidade e em todo o seu significado. Devem estar se revirando nos túmulos. Amor virou palavra sem cor, sem sabor, sem cheiro.
Como o “Oi, tudo bem?”, seguido do “Tudo e você?”. Ninguém quer saber, de fato, se o outro está bem. “Oi, tudo bem?” quer dizer “Percebi que você existe e estou lhe mostrando isso.” “Tudo e você?” quer dizer “Também notei sua presença.” Nada além disso. Duvida? Diante da primeira pergunta, diga que não está nada bem e comece a contar. O outro tentará se desvencilhar de suas queixas o mais rápido possível.
E o “querida” ou “querido”? Esse tratamento, de tão batido, acabou ficando com o significado oposto. Desconfie de quem te chama de querido. Ele ou ela não te querem de verdade. Eles querem que você pense que eles lhe querem bem, para que você faça algo ou concorde com algo. E nada além. Chamar de querido é ludibriar utilizando-se da fachada de ternura.
Quando alguém chama o outro de querido, usa-o como um subterfúgio para estabelecer intimidade rapidamente. Um exemplo desse uso é o que Tom Jobim fez na letra de “Querida”. Ele chama de “querida” a mulher que ele não soube valorizar quando a tinha e repete o “querida” tentando dissuadi-la a dar bola a ele novamente, ainda que assuma ser um amor bandido e fingido.
Como último exemplo trago o “bem”. Nada é mais irônico do que o “bem” encaixado no começo, meio ou fim da frase. “E aí, bem?”, imagine acompanhado do sorriso amarelo. “Coloca ali em cima, bem!”. “Não, bem! Não é assim que era pra fazer...”.
O uso de expressões de afeto com a função de apaziguar o impacto, de aproximar-se com interesses e para agradar o outro é algo que me incomoda. E o que me incomoda nesta questão é que, se o interesse não é claro e aberto, as pessoas podem ser enganadas e levadas a agir sem perceber que o estão fazendo desta forma.
Observe mais. Desconfie, mas sem se tornar persecutório.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Se a atitude esconde alguma segunda intenção, não é bom se deixar relaxar no relacionamento. Quando perceber, já terá sido levado.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 08/10/2016, Edição Nº 1430.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Águas Passadas Movem Moinhos

Arte de Weberson Santiago



Se você prestar bem a atenção, verá que águas passadas movem moinhos. Sabe quando você reconhece que enfrenta a mesma situação repetidamente em diferentes momentos da sua vida?

Estou falando de quando a vida trás a tona uma mesma maneira de agir, se relacionar, de enfrentar os dilemas e os conflitos. Isto acontece porque temos padrões de comportamento e, por vezes, insistimos na mesma forma de lidar com as coisas, ainda que existam outras formas mais apropriadas. E é aí que eu considero que águas passadas podem mover moinhos.

No curso do rio da vida, minhas águas seguem o caminho e por vezes atravessam o mesmo moinho. Eu bem que gostaria que as águas saíssem da nascente e fossem sempre em frente, até que um dia moressem no mar. Só que eu descobri que no percurso da vida é preciso vencer alguns impedimentos através da constatação de sua repetição.

Se o obstáculo for um tronco, tudo é simples. As águas passam por cima, ou por baixo, ou pelo lado. Mas se o empecilho for uma pedra dura, é preciso aguentar a dor de cabeça pra bater na pedra até que ela fure.

Ao ser lançada como um raio, a verdade trás nuvens negras e carregadas. Quando as tempestades se anunciam, tenho medo do poder das minhas águas. Sem muito esforço me vejo como o responsável pelo desastre. As águas que empurram os peixes e movem os moinhos podem levar consigo montanhas com casas. O mundo é mais catastrófico do que a gente gostaria que fosse e isso depende diretamente de nossas escolhas. Parece difícil aceitar como lidamos com o incontrolável e com o imprevisível. Mas muito mais difícil e constatar que não estamos conseguindo mudar o que está sob nosso próprio controle.

As tempestades caem e as nuvens vão se esvaindo, se dissipando em chuva até que se aviste um primeiro pedaço do horizonte. Em meio aos primeiros raios de sol, percebo que a água que caiu fez o rio transbordar. É a consequência do excesso. Descubro pelas águas que caíram que sou exagerado, dramático e enfático demais quando passo pelo temporal.

Quando o rio começa a baixar, ficam as poças. As poças são as cicatrizes que restaram do transbordar do rio da vida. As águas que não fazem mais parte da corredeira e estão represadas na solidão, isoladas à míngua. Só restará aguentar o calor do sol e evaporar.

Não importa que águas passadas movam os mesmos moinhos, se foi alterada pela experiência de passar por cada caminho. Se aprendeu conforme se transformou nos seus estados característicos. Ora! A água passada que move um moinho novamente não e a mesma água.

Quando eu estiver no estado líquido, que escorra por onde o vento e a terra me levarem. Que eu não derrame meus sonhos e possa ser contido quando precisar que alguém me represe. Quando o calor me transformar em vapor, que eu não me perca pela atmosfera, não me esqueça das raízes que me absorveram e me levaram ao alto da mais verdejante folha. Que no estado gasoso não seja apenas como o ar quente, que só aceita ficar por cima. E ao passar pela estação das nuvens, que desembarque o medo e embarque a inspiração. Quando minhas águas congelarem, que possa ser sólido, mas não gélido.  

Aproveitei as águas passadas para lavar a alma e agora estou na espreita de descobrir novos e velhos moinhos.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| O que você pode aprender com as suas repetições?

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 08/10/2016, Edição Nº 1428.