sábado, 27 de agosto de 2011

Faxinoterapia

Arte de Weberson Santiago



Sabe qual a última arma contra a depressão? Vassoura, balde, pano de chão e produtos perfumados para a casa.

Levei o cano da faxineira e descobri que a faxina é terapêutica. Faz tão bem que a limpeza da casa é o divã de muitas mulheres por aí. Não é atoa que elas estão dando conta do recado ao conciliar a carreira, os estudos, os filhos, a casa e alguma coisa mais.

Enquanto os barbados consideravam a poltrona da sala, a hegemonia do controle remoto e a servidão em forma de garçonete o ápice de seu reinado, elas estavam descobrindo as vantagens psicológicas da limpeza.

As queixas de cansaço são apenas pra nos desviar de perceber as benfeitorias daquilo que nossos exemplares masculinos atribuíram como sendo uma tarefa unicamente delas. Elas sempre deram conta do planejamento estratégico nos cuidados com o lar e do controle de estoque dos mantimentos e produtos de limpeza. Quando nos demos conta, já estavam fazendo o fluxo de caixa do nosso salário e tomando a dianteira da casa.

Eu acredito que todo este progresso se deve a terapia da faxina. As tarefas de casa são progressivamente dominadas, seus resultados ficam melhores com a prática e o resultado é aquele que ninguém é capaz recusar: a melhora da autoestima. Nós, homens, perdemos tempo e devemos aderir à faxina o mais breve possível.

Fazer faxina é um processo de autoconhecimento. Você entra em contato com os cantos de cada cômodo de seus sentimentos, coloca o lixo para fora, tira o pó acumulado pela rotina. Encara cada um dos seus defeitos na correção da consequência de cada um deles. Aprende a bagunçar menos para evitar o tempo gasto em organização. Estuda como fazer as coisas com economia de sujeira e quando o que se quer fazer precisa fazer sujeira, não deixa a limpeza pra mais tarde.

A faxina é para a mulher como servir o exército para o homem. É chato fazer, mas na conclusão você sai outra pessoa. A disciplina militar é equivalente à disciplina doméstica. Aquele que contrata a faxineira é um fraco, deveria pedir pra sair. Depois que eu descobri o poder da limpeza, compreendi a resistência que muitas mulheres têm de contratar uma diarista. Elas não querem abrir mão dos benefícios.

Quando eu apresentei a Natália para minha mãe, descobri o corporativismo feminino em busca do bem-estar feminino. Em seguida ao “muito prazer”, minha mãe emendou:

Você sabe limpar, lavar, passar, cozinhar e bordar?

A Natália, sem fôlego pela pergunta feita na lata durante a apresentação, esboçava o início de uma resposta quando ela interrompeu:

Se não souber, eu lhe ensino tudo.

Eu achei o máximo, pensando que toda essa disposição era para garantir a minha satisfação, enquanto elas já se entediam sobre um dos maiores segredos femininos.

Querendo correr contra o tempo depois da descoberta, comecei a disputar as pilhas de louça com a Natália, passei a lavar o banheiro antes do banho e a sair antes da cama para por o lixo pra fora.

Ela começou a achar estranho o exagero de disponibilidade, mas mostrou que ainda tenho muito trabalho para chegar a excelência nas tarefas do lar. Depois que me observou aprendendo a fazer cada atividade na faxina, me ensinou a lição do mutirão. Melhor que limpar sozinho, é fazer a faxina juntos.

UM CAFÉ E A CONTA!

| Fazer faxina é usar a limpeza de fora para fazer uma limpeza por dentro.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria

Caderno Cultura, p. 3, 27/08/2011, Edição Nº 1162.


domingo, 21 de agosto de 2011

PREPARO O PACOTE PARA ELA RASGAR O EMBRULHO

Arte de Weberson Santiago



Eu sou pidão. Quando enxergo uma data especial no calendário começo a dar indícios do que eu quero ganhar.

Deixo propositadamente o vidro de perfume vazio fora do guarda-roupa. Aponto o tipo de roupa que me agrada na vitrine quando passo de carro na frente da loja. Mostro o lançamento de tecnologia que resolveria todos os meus problemas na tela do computador.

Esperando a comemoração, fico feito uma criança imaginando o presente que vou ganhar. Eu acho que toda data especial pede uma lista pro papai noel. A Natália dá a maior atenção, escuta com o coração todas as minhas vontades, mas às vezes ignora todas elas e me surpreende com outro presente. Com sua espontaneidade consegue me agradar mais, pois foge as expectativas e me ganha com a surpresa.

Para ganhar presentes a Natália é o oposto. Conta os dias na espera da data importante e gosta de planejar algo especial, mas não me dá sinais do que gostaria de ganhar. Eu vou recolhendo pistas. Tento investigar seu gosto sem dar na cara a intenção das perguntas.

Sou exagerado para presentear. Gosto de oferecer mais de uma coisa, de montar um kit de mimos em que sempre exista algo feito por mim, nem que seja o cartão. Faço esforço para ser inusitado, diferente.

Quero que ela veja no exagero o quanto me sinto privilegiado pelo nosso amor. Amar é sentir que o que acontece na sua relação é único, e que ninguém será capaz de sentir o mesmo, de fazer o mesmo e de viver o mesmo.

Para conseguir este efeito, começo a planejar com antecedência. Vou comprando cada presente e guardando para o grande dia. Me recuso a pedir alguma dica para as amigas dela. Não quero que ninguém me tire o gosto de escolher o que dar, nem quero correr o risco da notícia do presente vazar. A Natália não. Mais da metade das pessoas que trabalham com ela formam a equipe com quem ela divide a responsabilidade e as tarefas da preparação. Já no primeiro ano ela também pegou a mania de personalizar o presente e confessou estar há mais de dois meses preparando o próximo, o aniversário do nosso encontro.

Para esta data, resolvi emparedar a minha amada. Não, eu não decidi coloca-la na parede para nenhum inquérito. Fiz uma aquarela da Natália para lhe dar de presente. Tenho em nossa sala um autorretrato e resolvi presenteá-la com uma imagem dela feita por mim. Esperando que faça par na parede como faz par no meu coração, na minha memória e nos meus sonhos de futuro.

Tivemos de fazer um pacto para manter a surpresa. Enquanto eu pintava, ela não poderia aparecer. Durante a escrita dos versos do cartão, Natália estava terminando o meu presente. Reinava o mistério. Ai de mim se espiasse o que ela fazia. Fui recomendado, ameaçado, coagido. A curiosidade só fez aumentar a minha criatividade na forma de poesia:

Quando estávamos sozinhos, éramos a escassez do que poderíamos ser.

Quando nos conhecemos, passamos a ser metade.

Quando estamos distantes, não somos nada do que queremos ser.

Quando deixamos de ser um do outro, nos tornamos menos do que sempre fomos.

Quando estamos juntos, somos o que mais queremos ser.

Quando somos dois, nos tornamos um.

Antes de te conhecer, eu era um.

Depois que nós dois nos tornamos um, passamos a ser três.

Enquanto estamos os três, somos uma.

No futuro seremos quatro, mas ainda assim seremos uma.

A nossa família é uma matemática sem lógica.

A soma dos nossos carinhos resulta na multiplicação do nosso amor.

Nesse aniversário do nosso encontro, dei a aquarela-retrato, um perfume que ela adora em uma nova versão que eu gostei e um colar que ela experimentou na feirinha e eu comprei escondido.

Amar é passar semanas fazendo o pacote para vê-la resgar o embrulho em um segundo e sorrir ao encontrar o conteúdo.

UM CAFÉ E A CONTA!

| Melhor que dar presente em data especial é ser presente a cada dia.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria

Caderno Cultura, p. 3, 20/08/2011, Edição Nº 1161.


sábado, 13 de agosto de 2011

Lombadas

Arte de Weberson Santiago



Diferentemente da maioria das pessoas, eu comemoro quando encontro uma lombada nova na rua.

Explico a razão. Eu aproveito a diminuição da velocidade para olhar ao meu redor enquanto passo pelas ruas. Sempre há algo que me chama a atenção e que seria tratado com indiferença não fosse o obstáculo.

Há uma mulata de cabelos armados na altura dos ombros que sempre está na rua no final da tarde. Meu olhar gosta de reencontrá-la e a lombada me dá o tempo de medi-la dos pés a cabeça. Está sempre com um detalhe que chama a atenção. Uma presilha combinando com o sapato. Uma blusa colorida de decote. Um cachecol tricotado no pescoço. Nunca fica parada olhando o movimento, está sempre falando com alguém ou indo para algum lugar. Dia ou outro ela não está lá e eu imagino que deve estar dentro de casa se aprontando para sair, indecisa na escolha do detalhe para a aparência.

Aos domingos, em frente à igreja da periferia, olho uma banca de frutas onde trabalha uma senhora. O sol ainda nem aqueceu os cantos gelados da noite e ela está a postos. Parece que faz pose para um quadro ao mirar o horizonte quando não atende ninguém. Ultrapassando a lombada, vejo seus cabelos grisalhos e suas costas arqueadas por detrás da extensa bancada de frutas e verduras. Reverencio uma mulher forte, que esbanja disposição para o trabalho no domingo.

Quando reduzo a velocidade na lombada da estrada, miro a família trabalhando na roça. Aprecio quem respeita o ritmo da natureza. As plantações não programam suas necessidades para os dias úteis. Para quem mora no campo, não há fim de semana ou feriado. Todo dia é dia de trabalho, com um pouco mais ou um pouco menos de tempo na sesta. A não ser no dia santo ou no dia de festa.

A lombada é o meu pretexto para a contemplação.

Já quis avisar a mulata o quanto me alegro em lhe encontrar e o quanto já me acostumei em vê-la passar, mas fico com receio de parecer invasivo. Ela pode pensar que sou um maníaco a espionar as suas saídas e contar para o marido, se é que ela tem um. Então, prefiro me contentar em olhar.

Pensei em parar diante da igreja e entrevistar aquela senhora da feira, o que poderia me render uma bela crônica. Porém, fiquei com receio de descobrir que ela não gosta de ficar atrás da bancada no domingo ou dela se queixar de dor nas costas de montar e desmontar cada caixote de frutas e verduras. Prefiro a moldura da minha imaginação.

Já tive vontade de entrar no sítio e conhecer de perto a vida no campo. Da última vez, me recusei a passar batido. Puxei papo do volante, eu no carro e Seu Zé no trator. Da porteira pra entrar na terra foi um pulo. Pulei o mata-burro. Questionei os cuidados com os pés de alface, pedi para apanhar uma fruta no pé. Experimentei a cachaça enquanto papeava na varanda do Zé Manso. Saí mansinho da visita, levando um novo amigo.

Com a pressa que insistimos em carregar na rotina, não há como desacelerar o suficiente para ultrapassar as lombadas do caminho. É a corrida dos aflitos em meio aos obstáculos da vida. E não há como transpor uma barreira sem saltar por cima dela. E quando estamos no ar, ainda que por poucos segundos, não queremos sentir o medo e a insegurança de não sentir o chão, mesmo que seja para deixar o obstáculo para trás.

Eu desacelero e faço questão de olhar para o lado. É assim que enfrento os empecilhos que surgem diante de mim, me distraindo com as coisas belas e tortas que estão ao meu redor até chagar a hora de ir além.

UM CAFÉ E A CONTA!

| O pior motorista é o que ignora o obstáculo e não é capaz de aprender com o que se fez imagem em seu retrovisor.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria

Caderno Cultura, p. 3, 13/08/2011, Edição Nº 1160.


sábado, 6 de agosto de 2011

Desenvolvimento da Carreira

Arte de Weberson Santiago


Da mesma forma que fomos expelidos do útero para o mundo no nascimento, um dia somos ejetados para o mundo do trabalho. Pode chorar e pode sofrer que não tem volta. Se no nascimento o tapinha é na bunda, no trabalho o tapinha é nas costas.

Crescemos familiarizados com a existência do compromisso profissional do horário e das obrigações, o que gera um misto de curiosidade e aversão. É por este caminho que caminha a humanidade e é acreditando nele que buscamos conquistar o que nos é de grande valia.

Toda profissão tem sua linguagem técnica. Quando damos início a uma nova atividade, precisamos ser alfabetizados naquele tipo de função. No começo, ficamos como criança ouvindo a “língua do p”, sem entender absolutamente nada. P-de p-pois, exibimos nossa familiaridade com as palavras difíceis para quem entende menos ainda numa espécie de teste antes de falar de igual para igual com quem realmente domina.

É difícil esquecer o primeiro emprego sem exagerar no saudosismo. Todo primeiro emprego tem cara de estágio e sempre há quem goste de ser responsável por formar um principiante. A ingenuidade é o que faz a diferença no desempenho nessa primeira infância de uma vida profissional. O ingênuo está sempre disposto, já que não passou por dissabor no ofício.

Um dia a formatura chega e, de um dia para o outro, se deixa de ser um aprendiz para se tornar o profissional. Se não é a conclusão de um curso, pode ser a efetivação ou até a promoção. Passa-se a carregar um sobrenome, como num casamento. É o João da Feira, a Rosa do Clube, o Tomás Dentista, o Renato Publicitário, o Paulo Eduardo Professor de História e por aí vai. E havendo a cerimônia, não pode faltar o juramento e a assinatura. Compromete-se com a profissão, sobre como fazer o seu uso e promete-se a restrição no seu abuso.

É aceitando o peso e fazendo jus ao sobrenome de trabalho que passamos da adolescência na carreira. Isto significa ultrapassar o entendimento de que primeiro vem o nosso próprio progresso e proteção no trabalho e que, depois de conquistado isto, começaremos a prestar ajuda e colaborar com os outros. A especialização na atividade não precisa vir acompanhada de individualismo.

A maturidade no trabalho se mostra na organização do cotidiano. É o que se repete todos os dias que constrói o futuro. Grandes projetos, daqueles que a gente tanto sonha, são empreendidos a partir da coordenação dos detalhes mais simples. A organização demostra o cuidado e o afeto que temos para com o que fazemos.

Pesando tudo isto, é possível chegar à conclusão de que é necessária uma mudança na carreira. Defendo que não devemos sentar na cadeira do comodismo, o que fazemos apoiando os cotovelos na mesa das críticas ao trabalho do outro. Enquanto dispensamos tempo demais no julgamento alheio, esquecemo-nos de cuidar dos detalhes que nos cabem. Além do mais, a acomodação é exibida e vive acenando em pequenas atitudes.

A vida adulta na carreira é o apogeu da profissão, quando estão alinhadas a experiência no trabalho e a vivência pessoal. O maior erro desta fase é precipitar e viver a aposentadoria no trabalho. É deixar de dar o melhor que se tem para dar, com o álibi da falta de reconhecimento, enquanto todos a sua volta se cansam de esperar a sua parte.

Não existe velhice na carreira. Quem não para de trabalhar continua a fazer aniversário, mas não fica velho. E se envelhecer é voltar a ser criança, a cada década de minha vida quero recomeçar a minha carreira, ainda que sentado na mesma cadeira.

UM CAFÉ E A CONTA!

| Querer jogar tudo pro ar a cada segunda-feira é parcelar o fim da adolescência.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria

Caderno Especial Tradições Euclidianas, p. 2, 06/08/2011, Edição Nº 1159.