sábado, 19 de janeiro de 2013

O Sabor Amargo da Traição

Arte de Augusto Amato Neto




Me deixei seduzir pela novidade. Não resisti à tentação de experimentar um pão francês nunca antes degustado. Traí a minha padaria preferida.

Parei o carro na porta e cheguei a hesitar na entrada. Sempre defendi a fidelidade ao balcão escolhido. Nunca pensei que seria capaz de enganar meus próprios hábitos.

Levado pelo impulso, no afã do desejo pela novidade. Entrei pela porta, olhando para os lados, temendo ser visto. Nem havia cometido o pecado e já me queimava em culpa.

Cruzei o caixa próximo à porta quando vi aquela cena. A balconista passou a faca serrilhada no sentido transversal pela casca crocante, dividindo-o em duas metades.

Há quem prefira começar a comer pela parte de cima e deixar a de baixo por último. Eu prefiro comer primeiro a parte de baixo e deixar a de cima por último. Para mim, aquela parte que tem a fenda aberta com a lâmina, que caracteriza o francês, é a metade mais gostosa. Tenho a mania de querer deixar o melhor para o final.

Já vi cortarem no sentido longitudinal,  dividindo o pão em duas metades iguais. Não concordo, não vejo graça em começar e terminar comendo duas partes iguais. Veja bem, não sou contra quem come meio pãozinho, mas que corte na perpendicular e depois no sentido transversal. Ainda assim terá duas partes diferentes, a de baixo e a de cima para completar o ritual. Mas vamos deixar o procedimento e voltar ao dia que cometi o engano.

Quando a balconista besuntou a metade do recém-saído-da-fornada com manteiga, ela derreteu-se automaticamente entre os relevos desiguais dos miolos. Eu não resisti. Pedi um e me lambuzei.

Não teve como passar batido, omitir a prova. Deixei minhas digitais amanteigadas nos guardanapos de papel.

Rubem Braga narrou em crônica publicada em 1955, a crueldade envolvida na morte de um carneirinho para se transformar em diversos pratos degustados em reunião de família. Depois de provar o sabor das iguarias concluiu que o crime compensa.

O mesmo não aconteceu com a minha infidelidade. O pecado não compensou.

O pão não estava fresquinho, ficou dando rodadelas em minha boca com sua textura macia. Se eu usasse dentadura, poderia tê-la esquecido em casa e ainda assim teria deglutido o famigerado pãozinho.

Não bastasse o pão murcho, a moça esguia e magra economizou na manteiga. Essa foi outra lição. Não confie nas balconistas magrelas. Nunca terão lambido uma tampa de alumínio do potinho de iogurte, muito menos saberão lamber a faca com resto do requeijão sem cortar a língua.

E devo confessar sussurrando, para não passar muita vergonha, que de longe o pão parecia ser o mais crocante que já vi.

Devo vociferar minha culpa, para quem sabe assim não me seduza por qualquer quitute acenando na vitrine de uma padaria qualquer. Fui pensando que poderia descobrir um gostinho diferente e experimentei o sabor amargo da traição.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Já adianto que até a publicação desta crônica terei recaído. Nunca serei capaz de mudar de calçada diante de uma padaria. No mínimo, vou torcer o pescoço e dar uma última espiada no pão que ficou pra trás e que não experimentei.



Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 19/01/2013, Edição Nº 1235. 

sábado, 5 de janeiro de 2013

Promessas de Ano Novo Revelam as Dívidas do Ano Velho

Arte de Weberson Santiago



Eu não confio em quem faz promessas de ano novo. Para mim, as resoluções de ano novo disfarçam algumas dívidas que fizemos consigo mesmos no ano que acabou de terminar. As promessas mostram as pendências. Se não foram cumpridas no ano que terminou, como vou acreditar que serão cumpridas em uma renovação?

Existe uma tendência à procrastinação, uma disposição em deixar para depois, de amolecer na decisão, de se perder no meio de outras necessidades e até de se distrair com qualquer novidade. No dia trinta e um de dezembro imitamos políticos em campanha. Prometemos mundos e fundos em comícios em que somos, ao mesmo tempo, falantes e ouvintes. Passada a posse do primeiro dia do ano, as promessas são esquecidas.

Acredito que todo mundo tem o direito de querer mudar, mas deve tomar cuidado com aquilo que promete. Pior do que cair na lábia de um terceiro é ser enganado pelo que se diz a si mesmo. Todo momento pode ser uma oportunidade de mudança. Não é a virada de ano a única ocasião para recomeçar.

Acredito que a maior aliada para uma mudança é a organização. Quantos pegam uma folha de papel e enumeram sua lista de necessidades? Ninguém quer registrar a promessa, criar a prova para caso venha a falhar. É o medo do próprio julgamento, da severidade do delegado que existe na consciência de cada um. A lista de necessidades nos torna capazes de administrar as prioridades. Com ela é mais difícil de esquecer o que é importante.

Antes de desejar um ano novo cheio de mudanças, pare e observe o quanto o ano que terminou lhe exigiu adaptação, paciência, jogo de cintura, habilidade para lidar com pessoas difíceis. Ao invés de querer que a vida lhe ofereça novas possibilidades, seja sincero consigo e encare todas as oportunidades que você deixou passar, as verdades que você preferiu não olhar, as palavras que você escolheu não dizer.

O meu maior medo em uma passagem de ano é tropeçar no dia trinta e um de dezembro e cair no dia primeiro de janeiro, ignorando o terminar e o recomeçar como um momento de reflexão.

A vida fica sem graça demais se não podemos aprimorar os próprios valores e sem as situações que colocam em questionamento as nossas crenças. Qual o sentido da sua vida? Onde você quer chegar com ela? No que você acredita? O que você valoriza e pretende lutar para que não escorra pelos vãos existentes entre os seus dedos? Como você tem agido emocionalmente? Como você compartilha seus recursos, o que você tem de melhor?

Responder a estas perguntas é mais difícil do que fazer um teste de múltipla escolha daqueles de revista e contar os pontos para que você saiba o resultado. Algumas das questões que levantei acima podem ficar sem resposta.

As pequenas mudanças são possíveis apenas quando temos coragem de encarar grandes reflexões. A felicidade não está em uma resposta absoluta a estas perguntas, mas no questionamento constante, já que a vida muda, as coisas mudam e as pessoas ao nosso redor mudam.

Por isso, eu desejo a você e aos seus queridos um 2013 cheio de mudanças, para que desenvolvam as suas capacidades de adaptação. E na hora de agir, que cresçam as suas ousadias, para que vocês não fiquem presos às atitudes de sempre.  Desejo, principalmente a você que, ao final de 2013, refaça aquelas perguntas e as suas respostas lhe deixem mais satisfeito, com um sentimento de renovação.

E talvez assim, nesse árduo e agradável caminho do viver, torne-se possível mudar a rotina, o hábito e o comportamento repetitivo.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Um feliz ano novo é o que começa igual e termina diferente.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 05/01/2013, Edição Nº 1233.