sábado, 21 de janeiro de 2017

O Não Para o Pedido de "Boas Festas"

Arte de Weberson Santiago



Era o primeiro dia do ano de 2017. Resolvemos buscar pão e tomar um café da manhã com calma em casa. Ao chegar na padaria, uma movimentação na porta chamou a nossa atenção. Havia cerca de doze meninos, com idade aparente entre oito e doze anos. Eles se aglomeravam em cima de quem deixava o estabelecimento e havia acabado de passar no caixa para pedir “boas festas”.

O costume de tentar arrecadar uns trocados no primeiro dia do ano é antigo. Eu sou acordado por um garoto pedindo “boas festas” a cada primeiro de janeiro desde que me entendo por gente, e nunca me lembro de desligar a campainha no último dia do ano para poder curtir o sono até mais tarde.

A movimentação na porta da única padaria da cidade que abriu as portas naquele dia não nos pareceu pacífica. A princípio não entendemos se a doação era espontânea ou de alguma forma incitada por coerção. O empurra-empurra entre os garotos para ver quem ganhava as moedas gerou uma pequena briga entre eles, que se ameaçavam.

Pensei que provavelmente eles saíram de casa em casa, tocaram as campainhas, mas obtiveram pouquíssimo retorno. Se alguém os atendeu, foi com a resposta “hoje não tem”. Sob efeito das negativas, acabaram por encontrar na porta da padaria uma possibilidade de arrecadar algo. Todo saco de pão que é pago em dinheiro tem moeda de troco. Com a carteira e o saco de pão na mão, seria mais difícil receber um não.

Em nenhum momento senti medo daqueles garotos, mas fiquei incomodado com o significado daquela situação. O que um dia foi um ato de generosidade – doar alguma moeda para que uma criança pudesse comprar algo de baixo custo que fizesse o seu dia mais feliz – havia se tornado uma situação constrangedora e incômoda para ambas as partes. Para os meninos que não terão o prazer de ganhar e para quem não dá, seja por não ter como dar ou por não querer dar porque não sabe como será o dia de amanhã em um contexto de crise.

Como ainda estamos vivendo o ápice deste momento de crise, fica difícil entender qual a sua proporção. É uma crise da sociedade? Uma crise econômica? Uma crise política? Uma crise da ética e da moral? Ou é tudo isso junto? Fica difícil também, imaginar onde ela vai parar. É um efeito dominó, em que uma queda gera a outra, um desmoronamento de um lado leva a outro desmoronamento de outro lado, uma falta aqui provoca uma falta ali.

Por essa razão, temos a sensação de que a crise é contagiosa. Ela vai envolvendo cada vez mais pessoas e tornando sua situação mais complicada. E por mais que seja difícil compreender a proporção desta crise, de uma coisa eu não tenho dúvidas. As pessoas, quando inseridas em um contexto de crise, entram em crise. São tomadas pela crise, vivem em crise.

Quem consegue retomar o equilíbrio emocional pouco tempo depois do evento incômodo não permanece em crise. Se não podemos evitar entrar em contato com a crise, que pelo menos nossas crises sejam momentâneas, sejam passageiras.

  UM CAFÉ E A CONTA!
| A melhor maneira de compreender um momento que passamos é olhar a situação com distanciamento, como se não fizéssemos parte dela.
Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 21/01/2017, Edição Nº 1443.

sábado, 7 de janeiro de 2017

A Primeira Letra do Nome

Arquivo Pessoal


Era missa do galo. Passamos a véspera do Natal agradecendo o ano que terminava, abastecendo-nos com a fé em Deus, em nós mesmos, nas pessoas e na vida. Passamos o Natal refletindo sobre o que passou para liberar espaço para desejar o que virá.

Já terminada a missa, o coro entoando “Noite Feliz”, naquele clima cordial de dever cumprido e de felicitações aos que estavam ao nosso redor. Deixando os bancos e pegando o corredor para a saída, Natália se deparou com uma conhecida.

Oi Dona Lizete, que bom encontrar a senhora aqui! Feliz Natal! Deixa eu apresentar meu marido pra senhora. Esse aqui é a minha letra A. A senhora estava certa!

Eu a cumprimentei afetuosamente, percebendo o carinho que a Natália tinha por ela e ela pela Natália, mas fiquei sem entender nada. “Como assim, eu era a letra A? Ela estava certa do quê?”, pensei. A professora ficou feliz com a resposta afirmativa da Natália e emocionada com o encontro, naquela noite.

Saindo da igreja, a Natália me contou que a professora Lizete Giovanelli lhe dava aula de artes. Ao final da aula, enquanto os meninos saiam correndo para jogar bola, as meninas faziam fila na mesa da professora Lizete.

Ela pegava uma folha em branco e escrevia a inicial da aluna de um lado, parava por alguns segundos e desenhava uma letra do outro lado. Algumas vezes entrelaçava as duas letras sobrepostas, outras colocava uma letra em cima e a outra embaixo.  A letra desenhada junto à da aluna era a inicial do futuro marido dela. Além de uma caligrafia caprichada, ela decorava a folha com arabescos para que a aluna levasse a folha das letras para casa.

A previsão da letra do homem certo fazia mais sucesso do que o teste da Revista Capricho. E olha que naquela época a menina que tinha uma revista Capricho tinha o mesmo valor que o menino que era o dono da bola no campo do bairro.

Para deixar a amiga fazer o teste da Capricho, era uma série de exigências e de favores em troca, além de ter de anotar as respostas em outro papel para não rabiscar a revista. Tudo isso perdia a graça quando chegava a hora da professora Lizete adivinhar a letra.

A Natália, que na época namorava um Julio, não se conformava com a letra A desenhada na folha. Tentou repetir o procedimento alguns meses depois, na esperança que a professora Lizete tivesse errado o palpite, mas novamente ela lhe dera como par a letra A.

Não importa que passasse um tempo, a professora Lizete era coerente com a sua primeira previsão. Ela é como alguns professores que eu tive na vida. Professores que, além do conhecimento técnico, teórico e científico, tinham algo a mais para oferecer aos seus alunos.

Algum atributo que, para nós alunos, parecia mais um superpoder. Alguém cujas lições não são compreendidas no momento em que se convive, mas no decorrer da vida, quando a lição vem a fazer sentido.

Professora Lizete, muito prazer, a senhora estava certa! Eu sou a letra A, que desde aquela aula, estava escolhida para fazer par com essa letra N.

  UM CAFÉ E A CONTA!
| Existem pessoas que, sem convívio ou sem história de relacionamento, são capazes de proporcionar em nós um alegre contentamento.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois,07/01/2017, Edição Nº 1441.