segunda-feira, 29 de março de 2010

São Paulo em Fotos

Cores do Concreto
Prédios do centro de São Paulo vistos do "Minhocão"
(Elevado Costa e Silva), interditado aos
domingos para pedestres e ciclistas.

sábado, 27 de março de 2010

Sara e seus 10 anos


Levei um susto hoje na hora do almoço. Os familiares que se acalmem, aviso que não fui assaltado, não bati o carro, nem serei pai daqui a nove meses. Fui levar a Sara, minha irmã adotada, a seu compromisso quando fui surpreendido por uma atitude dela.

Ela foi abrindo a porta da frente do carro e sentando no passageiro. Desde quando se tornou integrante da família, com vinte dias de idade, sempre andou no banco de trás para sua própria segurança. Quando a vi entrando, fui logo dizendo pra que fosse pra trás e ela imediatamente respondeu: “você esqueceu que agora eu tenho 10 anos?”.

Desconcertado, tratei de tirar a minha mochila e as bugigangas para que ela fosse sentada no lugar do passageiro. Ela sentou, colocou o cinto de segurança sem que eu dissesse nada e foi aproveitando o panorama novo de visão, me perguntou qualquer coisa do painel e depois se ateve a questões da cidade que o lugar da frente permitia observar.

Eu me escondi por detrás de meus óculos escuros e comecei a chorar. As lágrimas tomaram conta enquanto tentava ver se os óculos escuros poderiam ficar gigantes para que eu pudesse me esconder por inteiro. Era como se até o minuto anterior ela não tivesse crescido e neste momento falasse comigo de igual pra igual, com uma serenidade que me pegou desprevenido. Eu estava em seu aniversário de 10 anos, no dia 16 de fevereiro, mas só fui perceber o que significava a autoridade de uma década de vida neste episódio.

Sara é uma sobrevivente. Viveu adversidades quando precisava de abrigo, apoio e carinho nos seus primeiros dias de vida. Quando veio integrar nossa família não foi somente capaz de aprender a receber nosso carinho, mas sempre fez questão de retribuir em amor, sem ser cobrada para isso.

A demora para falar, seguida de dificuldades fonéticas para algumas sílabas foram as primeiras preocupações durante seu desenvolvimento. Para ela, custa muito mais esforço apreender do que para outras crianças. Mas quem se importa com essa diferença?

Admito que a preocupação existe, sobretudo quando o ponto de vista é como seu desenvolvimento poderia ser. Mas me recuso a olhar o que falta ao invés de olhar o que foi conquistado. Demorou certo tempo para pronunciar a sílaba “sa” do seu próprio nome, mas hoje ela fala essas e outras que tinha dificuldade. A letra dela está ficando cada vez mais bonita, mesmo que tenha tido que refazer alguns anos letivos. Desde bebê, tem uma sensibilidade rítmica muito forte, o que poderá aproximá-la de algum instrumento musical, da mesma maneira que ela descobriu a dança. Por falar em habilidades motoras, desde pequena mostrou grande capacidade, chegava a fazer uma seqüência de “estrelas” e cambalhotas no gramado de casa. Poderia se dar bem na ginástica olímpica. É capaz de cativar adultos com muita facilidade, desde bebê, assim como é leal nas suas amizades, demonstrando habilidades sociais muito adequadas.

Na nossa família, Sara tem espaço para ser o que ela é e o apoio para demorar o quanto for preciso para superar suas próprias limitações. Sua mãe preparou-se inclusive para o caso dela querer buscar informações de sua família de origem. O pai, como autodidata em neurologia, está sempre disposto a estimulá-la nas suas melhores potencialidades. O irmão mais velho e padrinho é psicólogo, e tem se esforçado para cumprir a promessa de quando ela chegou de estar sempre disponível quando ela precisar. O segundo irmão é o que não se importa em “estragar” com os presentes que ela mais gosta, só pra ver sua felicidade. O terceiro estuda medicina e promete todos os cuidados de sua profissão.

Com toda essa história, o fato é que a partir de agora, no meu carro, ela só ocupará o lugar do passageiro. Ela esperou 10 anos para poder vislumbrar o caminho que só é visto deste lugar. O mérito da espera e a persistência para a superação são o que fazem das pessoas vencedoras na vida. Consigo imaginar, sejam lá quais forem suas escolhas, Sara dando seu melhor e obtendo sucesso no futuro. Sabe por que imagino tudo isso pra ela? Pois foi o que a vi fazendo até agora.





Para Priscila, que também sabe o que é o amor incondicional, no caso pelo caçula Antonio, que já está tão metido com sua década de vida quanto a Sara.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Padarias

A padaria é como uma mãe isenta de culpa. Se você pedir leite, ela dá; se prefere refrigerante, na mão; mas se estiver em busca de uma dose de cachaça, ela também dá. Se quiser um lanche natural tem; se quiser x-salada também tem; peça uma porção de frango a passarinho e lhe dão sem questionar sua taxa de colesterol.

As semelhanças não param por aí. Algumas não têm higiene e acreditam que sujeira aumenta a resistência do sistema imunológico. Outras padarias são obsessivas com a limpeza, pra pegar o pão com o pegador de alumínio, é preciso usar touca, luva e avental.

Com toda essa variedade, é possível encontrar padarias com cara de bar, onde os homens se aglomeram para tomar cerveja e assistir jogo de futebol. Existe a padaria que parece restaurante e oferece self service de café da manhã, almoço e jantar ou os tradicionais PFs (pratos feitos). Tem ainda aquela com cara de supermercado, com prateleiras e produtos diversos para casa.

Se a variedade de produtos oferecidos é a parte materna da padaria, o serviço é a parte paterna. Do chapeiro ao balconista a maioria são homens. Uma ou outra cozinheira é mulher, mas sabe se lá porque ficam escondidas na cozinha. Talvez pensem que o homem se saia melhor ao exigir respeito tanto diante do pedido do Rabo de Galo (dose de cachaça com conhaque) até o do Brioche (pão doce de origem francesa).

O outro lado do atendimento masculino é o serviço personalizado capaz de fidelizar o mais safado dos clientes. Se você freqüenta a padaria mais de uma vez por semana, será tratado pelo nome e economizará a saliva do pedido a partir da quarta semana. O bom balconista de padaria é como um pai herói que adivinha seu gosto apenas pela cara que está fazendo.

Nas viagens que faço acompanhando atletas, a primeira coisa que procuro perto do hotel, alojamento ou local de competições é a padaria. Se ficar com sono, peço um café. Com fome, corro pra fazer um lanche. Cansado, saio pra dar uma volta. Inspirado, tenho onde sentar para escrever. E sempre preciso dela para todas essas coisas.

Tenho me dedicado a experimentar as diferenças do sanduíche de pão francês com queijo minas na chapa. Em São Paulo, o balconista pede ao chapeiro pelo Mineiro. Não é toda padaria que oferece a iguaria no cardápio, mesmo aquelas que se localizam em Minas. Não é só no sotaque que tenho referências mineiras. Mococa fica em São Paulo, mas faz divisa com Minas e alguns modos e costumes não respeitam a fronteira interestadual.







Para o Jonas da Riopardense e para o Zé (balconista) do Bar do Zé (dono) no centro de sampa.
Ilustração: Pães - tinta acrílica sobre papel canson.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Embora embalado com banzo e pesar, o samba nasceu pra não ver ninguém chorar.
Rubens Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro
Casa de Samba "Você Vai Se Quiser" - com Tito Amorim, Graça Braga (no poster) e convidados
Todo sábado a partir das 14h na Rua João Guimarães Rosa, 241 - Praça Roosevelt - São Paulo/SP
Para saber mais: http://sambacidade.blogspot.com

sábado, 20 de março de 2010

O reencontro resgata o esquecimento

Estava em São Paulo, no caminho da casa do meu irmão para a casa de um amigo, quando o vi de bengala. Trabalhamos juntos na mesma empresa de 2003 a 2005.

Quando consegui a vaga de estágio na empresa pública aeroportuária, a primeira lição foi o funcionamento do ônibus fretado. Sim, teria o conforto de um ônibus que me pegaria na porta de casa, ou melhor, a uma esquina de casa. O amigo que já estagiava lá há alguns meses me orientou o local da parada do ônibus. Tratava-se da Consolação com a Caio Prado, em frente a uma loja de discos de vinil. Durante a explicação, Lucas disse que a melhor referência para achar o lugar eram dois funcionários que também embarcavam naquele ponto.

“Você vai ver um velho, mas é velho mesmo, e uma garota de cabelo vermelho que embarcarão com você” – descreveu. Ansioso, não achei a dupla, mas percebi a aproximação do ônibus da Viação Santo Inácio com uma placa com o nome da empresa e pude embarcar para o meu primeiro dia de trabalho institucionalizado na vida.

Quando o ônibus parou, vi os dois se preparando para entrar. Eram o Seu Arildo e a Talita, que foram companheiros de espera do fretado todas as manhãs durante esses dois anos. Seu Arildo era um velho solteiro, esquentado e melancólico, empunhava um guarda-chuva como se fosse uma arma e já tinha alguns problemas sérios de saúde. O primeiro deles foi pouco depois de chegar a São Paulo aos 15 anos, quando teve uma úlcera estomacal que precisou de três cirurgias para ser resolvida. Acabou com um estômago tão pequeno e sem o duodeno quanto os obesos mórbidos que os reduzem para emagrecer.

Isso fez com que perdesse peso involuntariamente, já que a capacidade de ingestão de comida era pequena. Acabou por ficar franzino e com um semblante de mais idade. Na empresa, era visto como funcionário oneroso, pois sempre estava com algum problema físico que acarretava em certo afastamento do trabalho.

Talita era uma jovem filha de pais separados, cujos 30 anos vividos lhe faziam urgência de um namorado para casar, já que o emprego estável ela já tinha. Durante o tempo que convivemos, passou em um concurso para professora e conciliava os dois empregos.

Quando me deparei com Seu Arildo hoje, tive que me apresentar novamente, achei que seria difícil que ele me reconhecesse com os quilos a menos, o cabelo grande e os óculos escuros. Foi abordá-lo pra ver que sua memória continuava afiada, ainda que a aparente debilidade do corpo fosse a mesma, agora exigia uma bengala para andar. Segundo a Cardiologista, a retração muscular foi efeito colateral de um remédio para arritmia que tomou durante quatro anos. Acredito que possa ter relação com falta de nutrientes básicos que não foram repostos depois das mutilações no aparelho gastrointestinal.

Nós três assistíamos, na espera do fretado, cada estação de um Ipê Roxo que fica no canteiro central da Rua da Consolação. Contemplávamos a árvore pouco percebida no meio de tráfico de veículos e pessoas, sobretudo quando florida. Seu Arildo era o único que permitiam que abrisse a janela do fretado, pois respondia a quem reclamasse do vento. Foi aí que percebi que trabalhar em uma organização exigia muito jogo de cintura e observação para saber como se impor. Se tivesse dificuldade, poderia apelar ao guarda-chuva.

Seu Arildo contou que aderiu a um plano de demissão voluntária, já aposentado há mais de dez anos, disse que não se via mais útil no setor que trabalhava e que estava cansado com a forma que os colegas o poupavam do trabalho mais pesado. A aposentadoria representava apenas um quarto do que ganhava trabalhando, mas decidiu que era a hora de parar de se deslocar de São Paulo para Guarulhos todos os dias.

Sua saúde ainda exige muitos cuidados. Pensou em se mudar para o interior para perto de parentes, mas se vê plenamente adaptado a solidão dentre a multidão paulistana. Nos encontramos justamente quando ele ia para o restaurante que almoça todos os sábados, localizado a poucos metros de sua casa. Disse que seu maior medo seria depender de alguém, sempre resolveu tudo sozinho. Quis saber como ia minha vida profissional e contou que a Talita havia se mudado pra morar com um namorado.

O encontro me trouxe lembranças de um período muito importante da minha vida, o do primeiro emprego na grande cidade. Longos deslocamentos, jornada dupla no Mackenzie e na Infraero, o programa de estágios que coordenava no RH, os amigos que fiz e que me ligam até hoje e as mudanças que fomentei no departamento e que ainda vejo funcionar quando passo por lá. Geralmente quando parto de avião de São Paulo, prefiro embarcar em Guarulhos e aproveitar a oportunidade da visita.

Foi bom poder ser um em mais de 1300 empregados. Experimentar o lado do trabalhador anônimo, conhecer o funcionalismo público sem ser um funcionário concursado. O mesmo prazo de validade do contrato de estágio, que me deixou chateado em ter que partir no auge da aceitação do trabalho, foi minha alforria para abrir as novas oportunidades que são as minhas especialidades profissionais atuais.

Espero cruzar novamente pelas ruas de São Paulo com Seu Arildo, que nos seus 76 anos, contraria as expectativas dos médicos. Reencontrá-lo resgata o esquecimento resultante da urgência das novas responsabilidades e me recorda as histórias fundamentais na minha vida, transformando o que foi vivido em lembrança.

A equipe do RH que deixei tinha um senso de humor excepcional, que compensava o amplo e equipado escritório sem nenhuma janela. Era composta desde aquele que administrou o alicerce da construção do aeroporto há 25 anos atrás e que continua na empresa, até as psicólogas que foram aprovadas nos primeiros concursos e que foram pioneiras no setor aeroportuário, sem contar o contingente administrativo dos mais diversos cantos do Brasil.

Claro que tinha problemas, como toda equipe tem, mas nossas estratégias para lidar com as burocracias típicas do funcionalismo público e com as pessoas com longo tempo de casa eram divertidas. Resgatamos um sino de mesa, daqueles que se toca com o dedo indicador e estava perdido em algum armário. Quando uma pessoa que só adentrava o setor para trazer problemas ou problematizar os processos, tocávamos o sino, como um alerta. O sino foi apelidado de “aziômetro”, pois alguns processos eram uma verdadeira azia, aquele incomodo leve porém persistente. O problema era quando ele tocava muito em pouco tempo ou quando quem entrava queria saber o significado do toque.

A expansão da área proibida à circulação de ônibus no governo Kassab impediu que o fretado continuasse a passar nas esquinas de quem mora no centro de São Paulo. Mudanças na gestão promoveram a divisão dos 1300 funcionários em dois grupos, um passou a trabalhar em São Paulo e o outro continua no aeroporto de Guarulhos. A última ligação que recebi de lá foi há um ano e relatava as inseguranças decorrentes desta mudança recém anunciada.







Para os amigos da Infraero, que trabalham para as pessoas experimentarem voar.

quarta-feira, 17 de março de 2010

O Escorpião


O escorpião aponta o ferrão para si mesmo, mas não hesita em cravá-lo no outro ao menor sinal de ameaça. Simplesmente por apontar o ferrão a si mesmo, vive em constante crise e a depender de como está o mundo ao seu redor, pode ficar agressivo, intolerante, tempestuoso e vingativo.

O escorpião quer o mais intenso e essencial da vida. Tem sede de vida e divide a conquista do amor em dois momentos. O primeiro é o do cortejo, no qual prende o parceiro com seus pedipalpos, os seus braços com pinças. Ao perceber agitação, injeta uma dose de veneno para acalmar o outro. Escorpiões precisam sentir que dominam seu parceiro e não sossegam enquanto não constatam esse ganho. Quando sente que perdeu, se comportará até voltar ao ponto de dominação, mesmo que a custa de mais uma dose de veneno. O problema é que no jogo da dominação não há espaço para o outro ser o que é, só para o outro ser o que o escorpião gostaria que fosse.

Tendo dominado, abre mão facilmente de preliminares, não faz do sexo um jogo de sensualidade. Usa sim a sensualidade como arma adicional ao ferrão, mas deixa de lado na hora do acasalamento. Uma prova de como se satisfaz com a dominação é a dança nupcial, quando prende o parceiro e fica dançando pra frente e pra trás durante quarenta minutos a três horas. A dança é a comemoração da dominação, que precede a cópula, o segundo momento de onde espera tirar todo o prazer da vida.

Usa sua pinça para cutucar o parceiro para ter certeza, a todo momento, se a emoção continua firme. Mesmo que o outro não faça absolutamente nada para alimentar esse sentimento, o escorpião não se cabe de ciúme. Aprecia os extremos, e por isso não se mantêm durante muito tempo em harmonia. Ainda que não haja razão, encontrará alguma para criar um conflito, que é justamente o que precede seus maiores prazeres.

O problema é sua memória para as mágoas. Mesmo assim, surpreende com a rápida recuperação ante as adversidades. Reage rapidamente à presença de pessoas. O escorpião fala mais pelo olhar do que pela boca. Quer entender o que sente o escorpião? Veja o que diz o olho ao invés de ouvir as palavras que saem da sua boca. A fala e o silêncio são duas armas para a predileção a um e outro conflito. Não é de poucas palavras, mas muitas delas são apenas para confundir.

A situação que promete intensidade emocional e grandes doses de entusiasmo são as preferidas do escorpião que se sente protegido, até mais do que deveria, pelas carcaças que recobrem seu corpo. Tem como justificativa a própria natureza para cravar seu ferrão naquele que outrora lhe dera algo e que agora não dá mais. Por um lado, não muda o caminho até terminar o que começou. De outro, se desinteressa por aquilo que foi conquistado como se perdesse a graça.

A inspiração do escorpião é aquela da Grécia Antiga: a estética. O escorpião é um misto de perturbador e fascinante, pousa um olhar devastador sobre suas vítimas. Escolhe quem terá que satisfazê-lo e guia-se pela intuição para tornar seu desejo realidade. Seu maior medo é que invadam a sua intimidade.

Quando se vê encurralado por um inimigo ou cercado pelo fogo, diz a lenda que o escorpião se mata. Há discordância entre cientistas sobre esta história. Uns dizem que ele injeta veneno como um anestésico para o sofrimento, outros dizem que se envenena para fazer o predador ter medo de ingeri-lo, e tem ainda os que afirmam que tudo é um teatro do exemplar único de uma espécie que habita o mundo há 400 milhões de anos e que é capaz de sobreviver a incidentes catastróficos e a se regenerar de situações das mais adversas. Não lhe falta coragem para ocupações árduas e difíceis, mas a verdadeira ambição do escorpião quase sempre permanece oculta, pois têm medo que os outros animais cumpram um boicote.

Se usar da observação, assistirá o outro inerte sob efeito do escorpião. Mas se você é o outro que está diante do escorpião, é bom sacar que está num jogo de estratégias. No dar-se o desfrute de andar descalço ou no escuro, o escorpião aparecerá. Com rapidez injetará o seu veneno. Ao retomar a consciência, toda a sua energia terá sido sugada pelo escorpião.

O segredo, ao se deparar com o escorpião, é deixar que ele pense que está no comando. Como sua obsessão se comporta pelo domínio, sempre que puder economizará veneno para os imprevisíveis encontros de um mundo incerto.

A maior arma para lidar com o escorpião é a transparência. Sabe por quê? Quando se deixa claro os sentimentos, o escorpião tem a sensação de controle. Na verdade uma falsa sensação, promovida por quem se impõe ao soltar pensamentos e limites subentendidos nas palavras que parecem apenas uma descrição de fragilidades.







Para Luciano Fiscina.

Esta crônica deveria ter sido escrita à 4 mãos. Porém, as idéias iniciais de dois cérebros foram trabalhadas no papel apenas por mim pois o outro autor encontra-se sob efeito do doce veneno de um escorpião.

sábado, 13 de março de 2010

Ombros, Ombreiras e Corcundas

O ombro é o parapeito do nosso tronco. Nele podemos colocar um vaso de plantas, um papagaio, um monte de problemas e até a cueca ou a calcinha pra secar.

Há quem esconda seus ombros nas blusas, quem mostre um deles como charme e quem exponha os dois a ponto de que se pense “tomara que caia”.

Esta parte importante que sustenta nossos membros superiores pode ganhar graça com um cachecol, pachimina, estola ou com as famosas ombreiras.

As ombreiras foram usadas para demonstrar força hierárquica pelos homens de diferentes grupos políticos durante meados do século passado e teve seu auge com as mulheres nos anos 80, como acessório emblemático do movimento feminista.

Hoje se sabe que o tamanho das ombreiras não é o que determina o poder exercido pela pessoa. Apesar de que há quem ainda tente esse uso. Dentre tantas tentativas, saiu de moda simplesmente por não garantir sequer respeito.

No relacionamento interpessoal, fica difícil quando o vizinho não percebe, na divisão dos muros, onde termina a propriedade de um e começa a do outro, como se os ombros fossem colados. Então, constato que os fardos estão no meu parapeito, e o pior, que os carrego há certo tempo.

Se tem algo que respeito, esse algo é a corcunda. A corcunda é uma configuração de ombro distorcida chamada pelos cientistas de cifose. Em primeiro lugar, meu respeito se dá por observar que ela é fruto da experiência de vida. Em segundo lugar, porque ao contrário da barriga, a corcunda não impede.

Hoje vi uma senhora de corcunda carregando compras a passos largos, com um semblante feliz. Em outros tempos de caminhada, cruzava diariamente com um casal de velhos com corcovas e que cumpriam o trajeto religiosamente.

A corcunda diminui a visão do horizonte, o que passa a exigir um esforço maior. Mas é ela quem obriga o olhar para o chão, para as sutilezas do caminho. Talvez esteja aí a beleza: construímos nossas corcundas olhando para o futuro e o nosso corpo nos obriga com a idade a olhar mais para o presente.

Se a ombreira voltar à moda, será para uma nova funcionalidade, mais útil que a de outrora. Então, colocarei um metro de cada lado. E quando ficar velho usarei minha corcunda como prateleira.







Para Ângelo Missura Neto.

terça-feira, 9 de março de 2010

Perguntas

- Você leu o texto que escrevi?

- Li, mas foi você mesmo que fez?

- Você tá me tirando?

- Sabe que eu gostei do seu desenho?

- Não acredita que eu escrevi mesmo, não é?

- E poderia acreditar?

- Como pode duvidar da minha capacidade?

- Por que não posso colocá-la em dúvida?

- É, você me elogiando não é o que mais acontece, certo?

-Desde quando gostar de todas as coisas que você faz deixou de ser uma obrigação?

- Você caiu do colchão durante a noite? Deu uma topada com o dedão no pé da cama quando acordou? Descobriu que acabou o leite depois de colocar o chocolate na xícara?

- E precisa?

- Credo, ainda espera que comece o dia puxando conversa na mesa do café?

- Quer mesmo que eu responda?

Muitas vezes as respostas estão nas perguntas que fazemos.








Para Valéria Silva, aluna do 3º semestre do curso de Psicologia.

sábado, 6 de março de 2010

Árvore da Vida

Por mais bela que seja a árvore da vida, ela precisa estar enraizada no solo, e isso leva alguns anos. São essas raízes que darão o alicerce para sustentar uma copa frondosa com frutos belos e fartos.

Os galhos darão a árvore da vida o alcance dos objetivos, ora em busca do sol – a felicidade, ora em busca da árvore ao lado – o outro que me diz como estou. Cuidado, pois se um galho tenta alcançar longe demais, afetará o equilíbrio do tronco. Se a raiz estiver forte, a árvore está segura, caso contrário se encontrará tombada.

As folhas são as responsáveis pela transformação da luz em energia para o crescimento, assim como nossas células receptoras nos permitem codificar e perceber tudo o que acontece neste mundo com cara de selva. Sol demais queima, de menos impede a multiplicação das células.

A chuva proporciona a melhor das sensações, as gotas que caem são massagens cuja existência da natureza presenteia a árvore, para sustentar e manter o seu lugar no mundo.

O vaso é como o exercício da paternidade, ele deve dar abrigo à raiz, conter aquilo que fornece os nutrientes e impor os limites.

Essa importância pode ultrapassar a fronteira quando as raízes estão ocupando o espaço máximo e precisam sair deste vaso. Se o vaso não permitir, a raiz ficará sufocada e a função deixará de ser fundamental para ser excessivamente protetora. Quem sofre é a árvore que não cresce.

A muda precisa aprender que a árvore que atinge a maior altitude é aquela que não se importou em depender do arrimo. Que o crescimento aumenta o número de camadas do tronco e a sua espessura, assim como multiplicam as rugas da casca.

A proteção das folhas e galhos não deve espantar os animais, em especial os pássaros, a árvore se satisfaz a servir de moradia e fornecer segurança. Mas tem que ser forte às intempéries das mudanças climáticas que não estão sob seu controle. Aproveitar a luz e a água de algumas estações, e ao mesmo tempo sobreviver à escassez e a perda de folhas das outras.

As aparências enganam: mesmo parecendo sadia, pode estar oca e com a raiz podre. A queda será uma questão de tempo. Embora uma árvore sem folhas estampe as belezas de sua estrutura, pode ser sinal de uma vida ameaçada.

Chega uma hora que é preciso dar frutos, que carregarão sementes e permitirão uma sobrevivência para além da árvore única e finita. Nesta hora, será inevitável o julgamento alheio sobre a qualidade do fruto gerado, que mostra o quanto os piores e os melhores da árvore contribuíram para aquela nova vida.

O amadurecimento revela se o fruto pode ser comido. Mas antes de desfrutar saiba: a árvore carrega um grande afeto em sua produção, já que nele está boa parte da sua essência.

Em algum momento na vida da árvore, a casca pode se soltar, como quem perde tudo aquilo que mantinha a sua aparência. Aí todos poderão ver se a madeira é de lei. Se ela será capaz de enfrentar o forte calor e as tempestades, o tempo irá dizer.

A.A.N. e C.A.V.M.*
Título: Árvore da Vida
Material: Tinta Acrílica Aquarelada sobre Papel Canson
Técnica: Sopro com canudo
Tamanho: A4
* Crônica escrita à quatro mãos com o Prof. de Educação Física César Augusto Vicinança Mônaco, aluno do terceiro ano do curso de Psicologia.

quarta-feira, 3 de março de 2010

O escritório do escritor

O escritor não é considerado uma pessoa que se encaixa nos padrões de normalidade da sociedade, seja lá qual for este tal padrão. No mínimo tem hábitos esquisitos, que promovem sua fama de louco. O estereótipo do escritor é o do comportamento alternativo, aquele que é alienado ao mundo real. E muitas vezes ele é, principalmente se sua dedicação única é a redação. Neste caso ele passa a habitar o mundo das suas idéias e deixa de viver a vida no mundo físico entre pessoas e objetos, numa forma de esquiva com álibi da profissão. Muitos filósofos têm sua história de vida neste sentido do isolamento.

Outro grupo é o dos escritores “do mundo”. Aqueles que registram as experiências do convívio social, com os objetos e eventos são os cronistas. O cronista não pode se dar ao desfrute do isolamento. Afinal, ele registra o que aconteceu a sua volta de forma cronológica. Como seria possível registrar aquilo que eu não vi, não participei e não tomei conhecimento? Embora seja impedido do isolamento, está longe de se livrar do rótulo de louco.

Certo dia, terminava uma crônica antes de sair de casa pra dar aula. Como a inspiração era grande, corria contra o tempo para escrever o máximo até o último minuto. Na viagem até a faculdade propus a dois amigos que, por se tratar da sexta feira, os esperaria cinqüenta minutos para que fossemos embora juntos. Dei duas horas de aula e pretendia retomar a escrita no intervalo da espera. Saí em busca de um café que freqüento, mais estava fechado. Não me sinto à vontade em abrir meu notebook e sair digitando em qualquer espaço público.

Recorri àquela padaria que já foi tema de crônica e por onde passo todas as semanas. Quando cheguei por lá haviam colocado uma única mesa no seu interior, que por sinal estava vaga. Melhor impossível, já fui ligando o computador na primeira tomada que vi e nem precisei pedir o misto quente com tomate para a amiga do balcão. Peguei uma cerveja long neck já que eram nove da noite do meu último dia útil da semana.

Pronto, fui escrevendo sem receio e organizando as idéias digitando. Quando meu misto chegou foi inevitável reparar naquela situação. A fatídica mesa ficava num espaço pequeno entre o balcão da chapa, duas geladeiras de bebidas e o caixa da padaria. Em se tratando de uma padaria na sexta à noite, os grupos de jovens vinham buscar cerveja e algo pra comer em grupos. Para isso faziam exatamente o percurso ao redor de minha mesa. Era pegar a cerveja ou refrigerante na geladeira, pedir o salgado no balcão e pagar no caixa. E não era um fluxo pequeno.

Me senti deslocado, como se eu estivesse numa escrivaninha em plena estação Sé do metrô. Mas como o ímpeto do cronista dura até ver o último ponto final, continuei a tomar a ceveja, comer o misto e a escrever a crônica. Achei a situação engraçada, ri sozinho. Não muito tempo depois, os amigos me ligaram para encontrá-los.

Pensando no ocorrido, me lembrei da dedicatória em um livro do amigo Ricardo Pelosi, que relatava justamente na dedicatória que me presenteava o estranhamento das pessoas que o viam com o caderno e a caneta produzindo o material que constituiu esse livro em pleno bar em São Paulo: “Mococa, abril de 2007. Augusto, nos fins de tarde, começo de noite, pegava os cadernos e ia para o bar, em especial o Original, escrever este livro. No começo as pessoas olhavam com estranheza, depois se acostumaram. Assim é muita coisa em minha vida. Espero que goste dele. Ricardo.”

O bom escritor não desperdiça idéias e saca o que for necessário para registrar, quer o disponível seja a caderneta, o bloco de notas ou até mesmo o verso de estrato bancário, quer seja o notebook, o palmtop ou a página de rascunho das mensagens de celular. O lugar onde ele está não faz a menor diferença.







Crônica dedicada à Rosa (futura psicóloga) e à Geise (que não é a Arruda!).