sábado, 28 de novembro de 2015

A Viagem Que Não Fui

Arte de Weberson Santiago




Quando eu tinha oito anos, meu avô Augusto Amato – então com 72 anos – organizou uma viagem para Santos com todos os seus netos homens. Eram quatro: Alexandre (14 anos), Gutinho (12), meu irmão Caio (6) e eu.
Era uma tentativa de criar um “Clube do Bolinha” com os homens da família, mas a viagem foi marcada por uma série de apuros para o meu avô. E foi justamente o que saiu fora da programação o que fez a viagem ser engraçada e inesquecível.
Os primos mais velhos eram adolescentes e só queriam descer pra frente do prédio pra paquerar e não colaboravam em nada. Meu irmão Caio só gostava de misto quente e lasanha e meu avô havia programado sopa de ervilha – de saquinho – para alguns jantares. Quando estavam todos os primos, uns enchiam o saco dos outros e às vezes saía alguma briga. Meu avô que já era careca, perdeu mais alguns fios de cabelo naquela semana.
A trégua vinha quando ele armava o guarda-sol na praia e cada um fazia o que queria. Ele abria o jornal e tinha sua hora de sossego. Numa dessas situações, resolvi tomar um banho de mar e sentei onde a água pegava na minha barriga. A correnteza foi me levando para o lado e quando dei por mim não localizava mais o guarda-sol com meu avô embaixo e o jornal aberto. Era alta temporada, havia muita gente na praia. Localizei um salva-vidas, expliquei o que havia acontecido e ele pediu que eu descrevesse como era o guarda-sol. Fomos caminhando na praia até que eu avistei a família e o salva-vidas esperou de longe que eu chegasse até lá. Como meu avô continuava concentrado no jornal, nem contei o que havia acontecido. Só o revelei em um almoço de família muitos anos depois.
Embora nunca tenha reclamado, não foi atoa que ele nunca mais convidou os netos para uma viagem como essa. Deu muito trabalho daquela vez. Era um mais terrível que o outro.
Com essa história na memória, quis retribuir o desprendimento que ele teve ao propor aquela viagem. No começo do ano, comecei a imaginar como seria levar meu avô – agora com 96 anos – de volta para Santos, cidade onde ele passou sua lua de mel e muitas de suas férias, acompanhado de familiares. A última vez que ele esteve lá foi com minha avó em 2010, e poucos meses depois ela faleceu. Ele iria agora com a Natália, a Anelise e eu.
Quando eu propus a viagem, ele aceitou. Tinha medo que ele recusasse ir para evitar as lembranças da minha avó. A Natália e eu fomos programando a viagem, definindo as questões práticas e logísticas. Já tínhamos pensado nas compras, no que iríamos levar e até quais programas poderíamos fazer. A Anelise criou a expectativa de voltar à praia.
Quando faltava um mês para a data combinada, ele desistiu de ir. Deu algumas desculpas como dores nas costas e a questão de irmos em alta temporada. Era a única época em que eu poderia levá-lo por conta de trabalho. Quando vi que eram apenas desculpas para não ir, confesso que fiquei chateado. Não demonstrei para ele, apenas disse que tudo bem.
Queria que tudo o que eu imaginei para esta viagem se tornasse realidade. Queria vê-lo animado com o passeio, esperando alguma coisa boa para logo adiante. Mas é muito difícil obrigar um idoso a fazer o que a gente acha que é o melhor para ele. É quase impossível fazer que um idoso de idade avançada desconsidere suas limitações físicas e se anime para sair da rotina, que se disponha a buscar novas metas. O que a velhice pede é que a gente seja sensível, respeite as vontades e os limites.
Queria mais uma viagem para colocar na minha coleção de boas lembranças das vivências com meu avô, mas o mais sensato é agradecer que ainda temos tido vivências juntos. Viajei na expectativa e para a praia eu não fui.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Pensei que escreveria algumas crônicas sobre as aventuras desta viagem, mas foi não ter viajado que virou crônica.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 28/11/2015, Edição Nº 1383.

sábado, 14 de novembro de 2015

O Medo de Perder

Arte de Weberson Santiago



Às vezes percebo em mim um medo de te perder. Este sentimento começa pequeno, como uma pedrinha que vai parar dentro do sapato. Então, ele persiste como quando a pedrinha fica mudando de lugar dentro do sapato, cada hora fazendo doer uma parte do pé.
A persistência do medo me faz imaginar possíveis motivos que você teria para me deixar. Rastreio possibilidades de motivos ao nosso redor. Se não encontro nenhum palpável, invento um. O medo faz de mim uma caçadora de possíveis motivos. A correria não me permite parar para cuidar deste incômodo. Talvez por isso é que às vezes o medo venha tão forte. Em meio aos meus afazeres sou invadida por um temor enorme de que você não volte mais para mim.
O medo parece um fantasma a me perseguir. O encontro nos lugares menos prováveis, como logo depois de um momento feliz que passamos. Acho que ele é um fantasma do passado. Uma consequência das traições que eu assisti e das traições que eu sofri. Como se nossa história não pudesse ser diferente.
Nossa história já é diferente. Você me faz tão bem e eu te amo tanto. Parece até que aquela música do Chico foi escrita pelo que eu sinto: “Eu sou sua menina, viu? E ele é o meu rapaz. Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz”. Talvez, se você fosse um traste, eu não tivesse tanto medo. Ou tivesse. Mas é que apesar de ser chato às vezes, você é romântico, você me cuida, você me protege.
Quando eu confesso meu medo para você, você me recita aquela composição do João Cavalcanti, integrante de uma das suas bandas preferidas: “Sei que entre um cais e outro há incontáveis corações. Não navego neste mar de ilusões. Não aprendi a velejar, sem um norte a alcançar, sem um lar em terra firme”.
E mesmo você tentando me convencer de que você parte todo dia para regressar, meu medo me faz lembrar o final desta mesma canção: “Eu que cheguei a imaginar, no momento em que pisei, no teu chão tão bem cuidado. Que tinha achado meu lugar, que ali seria o rei e que o mar era passado. Mas a calmaria não convém. Que grande ironia é saber. O coração que é do mar, já nasceu pra navegar e não para em terra firme.”
Tenho medo que você descubra que seu coração é do mar, e não da terra. Não adianta vir com argumentos. Já repeti uma série de racionalidades para mim mesma e não adiantou de nada. Medos não seguem a razão, medos seguem o instinto e a intuição.
Queria ter a mesma segurança que você parece ter. Se para ter você eu preciso conviver com o medo de te perder, eu o aceito.
O medo de perder é um medo de amar. Não um medo de vir a amar, mas um medo de quem já ama. E muito.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Aquele que nunca teve medo de perder, nunca amou de verdade.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 14/11/2015, Edição Nº 1381.