sábado, 23 de janeiro de 2016

O Samba da Rosa Maria

Foto de Augusto amato Neto


O boteco é o lugar onde se passa a vida e onde a vida passa.
André frequentava a roda de samba do Bar do Chorinho desde quando estava na barriga de sua mãe. A batida do coração da Angélica se juntava a batida do tan-tan formando o conforto mais barulhento que um bebê poderia experimentar. Angélica ficava feliz e rodopiava ao ver o samba tocar e André sentia essa felicidade pulsante de dentro de seu ventre.
Foi lá, naquele bar, que seus pais se conheceram. Jader cobiçou Angélica desde a primeira vez que lhe viu com as amigas. Naquele dia já imaginava suas mãos percorrendo as suas coxas como as mãos escorregam pelo pandeiro.
Foi naquela roda de samba que Jader e Angélica deram seu primeiro beijo. “O mar serenou quando ela pisou na areia. Quem samba na beira do mar é sereia” foi o verso que embalou o pega na porta dos banheiros.
Algumas semanas depois André foi concebido na saída da roda de samba, numa noite quente de verão, quando os dois passaram a primeira noite juntos na casa dos pais de Jader. A gravidez caiu como uma bomba na vida dos dois. Jader nunca havia mantido um relacionamento por mais de três meses. Angélica sempre quis se casar, mas não sabia se um dia iria querer ser mãe. E quando se lembrou disso já era.
Os dois resolveram passar por cima dessas individualidades e tentaram ficar juntos em nome do menino. Falando em nome, o pai queria chama-lo de Noel, para homenagear o Rosa. Mas a mãe foi contra. Imaginou que esse nome seria motivo de chacota pelos colegas. Escolheu e bateu o pé para chama-lo de André. O pai cedeu.
André esteve de volta no Bar do Chorinho depois que saiu da barriga aos seis meses, na roda de choro de segunda-feira. Voltava todo mês nas rodas de samba de quinta, sexta ou sábado. Depois que completou um ano, seus pais praticamente voltaram a frequentar a roda como antes de ter o menino.
Mas como a vida não é feita somente de samba-exaltação, a letra do samba entristeceu com os problemas de relacionamento. Jader bem que tentou se controlar e se manter fiel a Angélica, mas teve lá suas recaídas. Angélica não se sentia segura, mesmo não tendo prova cabal da infidelidade do amado.
As brigas por motivos levianos eram frequentes. A primeira briga que levaram pra roda de samba foi quando uma angolana de sessenta e poucos anos tirou Jader pra dançar. Conhecida como a Raimunda do samba. Feia de cara, mas boa de bunda. Não tinha a intenção de roubar homens comprometidos, só de se sentir a musa do samba. Pediu licença a Angélica para dançar com seu homem. Angélica consentiu, mas se contorceu na cadeira vendo o marido dançar com outra.
Ela amarrou a cara, emburrou. Na hora que ele se sentou, a discussão começou. Jader não se conformava com o ciúme. Ela foi ficando cada vez mais irritada. Os dois foram embora antes da roda terminar, carregando André e discutindo pelo caminho. As brigas e discussões se intensificaram, André já tinha cinco anos. Decidiram então se separar.
O samba-canção deu lugar ao samba-choro. A partir daquele momento, Angélica preferiu evitar o samba para não reencontrar o Jader. O menino sofreu. A roda de samba era a sala da sua casa. E não faz sentido ocupar a sala se a família não está completa. Sentia como se abandonasse a mãe ao ir para o samba só com o pai. André pegava a mãe chorando pelos cantos da casa aos finais de tarde quando costumava estar na roda.
Um dia, enquanto estava na roda com o pai, ouviu tocar um samba escrito em 1948 por Aníbal e Eden Silva, que de vez em quando ele ouvia tocar na roda ou em casa. Largou o jogo do tablet na mesa e foi pra junto da roda, cantar: “Um dia encontrei Rosa Maria, na beira da praia, a soluçar. Eu perguntei o que aconteceu, Rosa Maria me respondeu: o nosso amor morreu.”
Foi a única vez que André deixou de sentir a falta da presença da mãe. Era como se ela estivesse presente na roda de samba com a música. A partir daquele dia ele resolveu dividir. A roda toca das 19 às 22 horas. No intervalo das 20:30 ele vai embora fazer companhia para a mãe.
E toda vez que toca “Rosa Maria” e só quando esta música toca, ele se levanta e vai até a roda cantar.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Uma boa música pode ser um remédio para curar uma dor.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 23/01/2016, Edição Nº 1391.
* Esta é uma crônica de ficção baseada na livre criação artística e sem compromisso com a realidade. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

sábado, 9 de janeiro de 2016

Férias de Verdade

Arte de Weberson Santiago



Depois de longos meses de trabalho, recebi o aviso de férias. Nele aparecia a data de quando eu descansaria. O dia em que as obrigações dariam trégua, quando estaria livre das amarras dos compromissos.
O que eu fiz? Comecei a imaginar o que eu faria a partir desta data. Sem pestanejar, comecei a fazer uma lista de afazeres para as minhas férias.
Preciso consertar aquelas coisas pequenas que me incomodaram durante o ano, mas que não tive tempo de arrumar. Inclui:
Prender com aquele ferrinho a maçaneta da porta para que ela não saia mais na minha mão;
Parafusar o porta toalhas do lavabo para que ele não caia de vez;
Dependurar o quadro que ganhei de um amigo;
Retirar o globo dos lustres que a Natália me cobra há meses para que a faxineira possa remover o cemitério de insetos;
— Substituir algumas telhas da lavanderia por telhas de vidro, que foram compradas há três meses, mas ficaram amontoadas no quartinho do fundo;
— Trocar as plantas de vaso para aliviar as raízes do sufoco e podar a árvore da calçada para que ela não continue crescendo desordenadamente;
Quando a lista de afazeres já havia atingido o comprimento de um pergaminho, notei que estava substituindo minha rotina de trabalho por uma rotina de afazeres em casa. Percebi que estava evitando entrar em contato com o tempo ocioso e que não estava me permitindo fazer coisas que gosto. Queria resolver pendências, mas boa parte do que faço na rotina de trabalho é resolver pendências. Passar as férias fazendo o que se faz quando não se está de férias, não é férias de verdade. Férias de verdade devem incluir coisas que dão prazer e que não temos disponibilidade de fazer enquanto estamos trabalhando.
Como somos humanos e não temos um botão de liga e desliga, sair do ritmo alucinado da repetição do cotidiano e ocupar a ausência total de tarefas das férias é um processo que exige tempo. Alguns dias são necessários para se adaptar. Ir desacelerando, mudando de ritmo. Por isso é que a primeira e a última semana das férias, ou os primeiros e últimos dias, são os mais difíceis. São os dias de transição.
Quando saímos de férias, nos deparamos com o vazio da rotina. Me pergunto: quem sou eu sem todos aqueles compromissos? Quando as férias estão se aproximando do fim, nos deparamos com a ansiedade do retorno. A questão é: vai voltar tudo outra vez! Será que eu dou conta?
O meio das férias é a melhor parte, é quando conseguimos aproveitar mais. Por isso, as férias não podem ser curtas demais, para dar tempo de aproveitar.
As férias são um distanciamento da rotina que serve para se desligar e para descansar. Só voltaremos verdadeiramente renovados para a rotina se nos permitirmos desligar e descansar.
Sua vida só anda se você parar. Pelo menos uma vez ao ano.
UM CAFÉ E A CONTA!
| As pessoas olham o descanso e as férias com maus olhos. Ignoram o fato de que a qualidade do trabalho cai se não há trégua.
Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 09/01/2016, Edição Nº 1389.