sábado, 28 de dezembro de 2013

Pedrinhas de Gratidão

Foto de Lélia Oliveira



Num sábado recente resolvi comprar um livro pela internet. Buscava um presente para a Natália, algo especial para uma data importante de nosso relacionamento.

Ao ler a sinopse do livro de Stephen King tive a sensação que havia achado o presente certo para a data. As palavras ainda ressoam em meus pensamentos: Love é uma parábola sobre a imaginação e o amor, e sobre o poder do amor de transformar e salvar.

Recorri a Estante Virtual, um site que passa suas informações ao vendedor e este manda um e-mail explicando sobre a postagem do livro e o prazo de entrega. Nada fora do convencional, são trocas metódicas. Um detalhe nesta compra tornou a história inusitada.

Na tarde do sábado seguinte recebi um e-mail que confirmava o pagamento e informava que o livro seria postado na segunda-feira. Comprava do Beto Chade, o livreiro dos Araçás, que pareceu querer algo mais do que me vender o livro, o que concluí ao ler seu e-mail:

“Há muito pensei uma forma de poder estar mais próximo àqueles que cruzam em meu caminho e parece-me que encontrei uma forma simples, porém muito verdadeira. Então enviarei junto ao seu embrulho, um presentinho, algo que não tem valor material, e sim espiritual. Para se ter a exata dimensão do meu sentir, remeto em anexo uma crônica minha que explicará as razões de toda essa história. Caso tenha tempo, leia.”

Beto criou uma expectativa e minha curiosidade esticou o tempo até a chegada do livro. Fechei o portão na cara do carteiro e logo abri o pacote. Me deparei com o livro, uma pedra branca e um papel dobrado dentro de um envelope, a crônica.

Devorei o texto, queria entender o que ele queria. Beto conta que caminhava pela praia com os pés na areia quando começou e recolher pedras brancas do chão e se lembrou de um livro que leu. O autor defendia que não havia nada mais precioso do que o poder da gratidão. Palavras do Beto:

“É certo que se deve almejar sempre algo mais ou melhor. Mas, por outro lado, não conseguiremos isso maldizendo a vida que possuímos, as coisas materiais que temos, reclamando das pessoas em torno de nós. Um dos autores desse livro queria dedicar um ou dois minutos de seu dia para agradecer por tudo aquilo que a vida lhe entregara, mas, com o atropelo da rotina, quase sempre se esquecia. Um dia, olhando uma gaveta, achou uma velha pedrinha que sua filha, quando ainda era uma criança, lhe deu como presente. Sorriu com satisfação. Era uma lembrança boa. Agradeceu pelos filhos perfeitos que possuía. Pegou a pedra na mão e teve uma brilhante ideia: ‘Vou levar essa pedrinha comigo, em meu bolso, todos os dias’. Todas as manhãs a rotina se cumpria, junto a sua carteira, aliança, celular, lá estava sua pedrinha. Ao pegá-la, agradecia em pensamento tudo aquilo que fazia parte de sua vida. À noite, quando chegava em casa, repetia o ritual ao contrário, pois ao esvaziar os bolsos estava lá o ‘lembrete’ simbolizado pela pedra. E, novamente, fazia seus agradecimentos.”

Enquanto caminhava na praia, Beto resolveu juntar um punhado de pedras e ensinar aquilo que ele passou a fazer depois de ler esse livro. Queria entregar uma pedra branca e um pedaço de papel para aqueles que lhe são caros entendessem o significado e o funcionamento do ritual. Ao imaginar a cena, conta que ficou constrangido com a situação de entregar pedrinhas. Teve medo de parecer bobo. Apesar disso, escreveu esta crônica para contar a história, mas decidiu que esperaria que as pessoas lhe pedissem a sua pedra:

“Porque elas são muito preciosas para estarem nas mãos de pessoas que não as valorizem. Então, escolhi entregá-las à medida que forem sendo pedidas. Sei que muitos daqueles para os quais peguei as pedras irão pedi-las. Posso ter feito mal juízo de alguns, mas podem ter certeza, cada um dos que pedir me trará uma alegria para o coração.”

Eu fui escolhido para receber uma pedra destas junto com meu livro. Depois deste dia, passei a leva-la comigo no bolso, junto com todas as bugigangas que carrego. Quando vou coloca-la no bolso agradeço por algo ou alguém que faz parte da minha vida. Ao final do dia, quando a retiro, faço o mesmo. Um breve agradecimento. Como se tornou corriqueiro, varia o motivo da gratidão. Já agradeci até pelos problemas que me fazer progredir.

O presente da Natália deixou de ser o livro. Ela recebeu o envelope com a crônica e outra pedra branca.

UM CAFÉ E A CONTA!
| Não perca a oportunidade de passar uma coisa boa adiante.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 28/12/2013, Edição Nº 1282.

sábado, 14 de dezembro de 2013

Quando o Forro Se Torna Piso

Arte de Weberson Santiago


Quando eu era criança tinha a mania de deitar no chão e imaginar como seria a vida de ponta cabeça. Passava um bom tempo imaginando como seria andar no teto.

O cuidado para não pisar na lâmpada. A viga no meio da sala seria um obstáculo a ser pulado se caminhássemos no forro, e a luminária seria como uma mesinha com tampo de luz.

Hoje eu entendo que ficar imaginando a casa de ponta cabeça era um exercício de alternar meu ponto de vista sobre a vida.

Ao caminhar no teto em pensamento, me observava fazendo algo. Penso no quão importante é se  observar na vida: como nos comportamos nas situações mais desafiadoras? Como nos relacionamos com as pessoas a nossa volta? Quais foram os sentimentos nas condições vividas?

O autoconhecimento só é possível com uma porção de distanciamento. Ver de fora.

A outra condição importante é se colocar no lugar do outro. O exercício de pensar em como se sente, quem convive com a gente, nos torna capazes de evitar atitudes desnecessárias e contraproducentes.

Exemplifico. Alguém que convive comigo ficou envolvido em um trabalho esperando um resultado que não veio, e ficou com uma baita raiva de ter feito tudo em vão e revoltado com todos os que estiveram envolvidos no resultado negativo.

Se eu fizer o exercício de me colocar no lugar dele, saberei entender seu sentimento diante da frustração. Não irei contra aquilo que ele diz ou faz com argumentos, tentando convencê-lo que a vida tem dessas coisas. Muito menos irei cobrá-lo de qualquer coisa neste momento, ainda que ele tenha prometido fazer algo pra mim há um bom tempo. Eu sei que o sentimento dele vai comprometer nossa comunicação e, talvez, a nossa relação.

Autocontrole é analisar as contingências antes de se comportar, ao invés de pensar depois de já tê-lo feito.

Saiba experimentar o ponto de vista do outro. E saiba que isto não significa assumir responsabilidades do outro ou fazer as coisas pelo outro. É experimentar as lentes dos óculos do parceiro para entender o que ele vive e saber como lidar com ele.

E de uma coisa eu não tenho dúvida. A melhor posição para fazer tudo isso é deitado no chão, olhando para cima.

Deite no chão da sala e olhe para o teto. Deite no chão do quintal e observe as estrelas. Deite na grama e veja as nuvens.

Se você não se permitir este tempo, a hora que você deitar na cama e encaixar sua cabeça no travesseiro, um excesso de pensamentos e sentimentos irão invadir o espaço reservado para o seu sono.

Reserve um tempo em sua rotina para andar no forro da sua casa. Abra uma brecha na agenda para deitar no chão. Tome distância da sua própria vida em pensamento. A hora que seus pés tocarem o chão novamente você estará muito mais preparado para agir.


UM CAFÉ E A CONTA!
| Saiba vestir o figurino das pessoas que convivem com você para saber onde a roupa aperta e onde tem espaço sobrando.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 14/12/2013, Edição Nº 1280. 

sábado, 30 de novembro de 2013

Uma Casa pra Chamar de Nossa

Arte de Weberson Santiago



É, meu bem, e não é que sobrevivemos ao tempo? Sobrevivemos às dúvidas, driblamos os medos e seguimos construindo a nossa história.

Dia destes, quando eu saía do trabalho, me peguei pensado em como é bom voltar pra casa. Mas que casa?
A nossa família é minha morada. É de onde eu saio e é para onde eu volto todos os dias.

Quantas pessoas buscam o que nós dois já encontramos? Alguém para morar. Um coração para ser seu lar. Um seio para me confortar. Um peito para você repousar.

Somos, ao mesmo tempo, porto seguro e navegantes. Somos, os dois, barcos à vela e terra firme. A nossa única certeza é o reencontro.

Agora que já temos um mundo abstrato de amor que nos uniu e nos mantém juntos, sinto que nos falta o que de mais concreto uma família pode ter. Uma casa.

Amar é solucionar um dilema para encontrar outro. Se antes o problema era a dúvida – será que um dia encontrarei meu grande amor? – hoje a questão é onde habitará a nossa união.

Não que a casa que alugamos não esteja boa para nós, mas o problema é que ela não é nossa. Amar é não se contentar com o provisório, quem ama busca o definitivo.

Quero fazer marcações da altura da Anelise atrás da porta conforme ela cresce sem me preocupar com o que vou fazer se a gente mudar de casa.

Eu quero encontrar o nosso pedaço de terra permanente para plantar uma muda e esperar ela virar árvore. Você quer encontrar um lugar para que nossos familiares e amigos possam ser de casa.

Quero vê-la despertar no amanhecer e abrir a janela com os cabelos cuidadosamente desarrumados, espiando o céu enquanto eu vejo seu corpo na contraluz sem mudar a cena de moldura.

E você poderá me ver espreguiçar na varanda da sala no domingo de manhã, se na nossa casa tiver uma varanda. E se não tiver varanda, pegando o jornal do dia na garagem.

A paciência não é minha melhor amiga. A pressa é meu animal de estimação, vive na minha cola, quando não entra na minha frente. Quero ver o telhado sobre as nossas cabeças, não quero acompanhar cada um dos tijolos sendo empilhados. Quero pra ontem.

Nossos alicerces são sólidos para construir um assobradado. Nossos valores são os mesmos. Se trocássemos nossos olhos, veríamos o mundo da mesma maneira. Já temos uma base suficiente.

Me pego sonhando com a nossa casa. Tiro os pés do chão. Vejo-me no futuro cantando pra você, dentro de nossa casa, aquele samba do Martinho da Vila: “Está em você o que o amor gerou. Ele vai nascer e há de ser sem dor. Ah! Eu hei de ver, você ninar e ele dormir. Hei de vê-lo andar, falar, cantar, sorrir.”

Mas como um sonho é feito de um dia após o outro, preciso conter a minha expectativa e trabalhar para isso. E você precisa seguir com seus compromissos para me ajudar a fazer este dia chegar. Então, prossigamos com nossa rotina atribulada, ela fará do nosso sonho uma realidade.

Quando eu acordo para trabalhar você ainda está dormindo. Quando você chega da faculdade, sou eu quem já fui dormir. Nossos desencontros calculados nos enchem de esperança de que um dia encontraremos uma casa para chamar de nossa.

UM CAFÉ E A CONTA!
| Quem casa não quer casa, quer um lar. Telhado é proteção, parede é carinho. Portas e janelas são pontes para a vida.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 30/11/2013, Edição Nº 1278. 

sábado, 16 de novembro de 2013

O Que Você é Meu?

Arte de Weberson Santiago



A segunda coisa que a Natália me contou, quando nos conhecemos, foi que tinha uma filha de dois anos (a primeira foi seu nome). Ela colocou como se qualquer possibilidade de intimidade partiria da aceitação da existência da Anelise. Logo de início precisei aceitar dividir a namorada. Tive de arrumar um lugar na minha vida para duas mulheres, sendo que eu procurava uma. Depois do estranhamento inicial (das duas partes, minha e da Ane), eu descobri as vantagens e os desafios de acompanhar o seu crescimento e ela descobriu que crescer em uma família dá segurança.

Após os quatro anos, Anelise começou a “fase dos porquês”, em que a criança tenta entender o mundo, quem ela é, como as coisas funcionam, que papel cada um tem na sua vida. E não é a toa que elas repetem tanto “por quê?”. É um mundo de coisas acontecendo o tempo todo, enquanto a criança tenta entendê-las. Nós assistimos ao improvável e ficamos responsáveis por explicar o inexplicável. E como uma criança compreende a complexidade? Com a simplicidade de sua capacidade de compreensão. Isto nos surpreende.

Nesta fase, Anelise começou a questionar qual era o meu papel na vida dela. Ela tem uma boa e frequente convivência com seu pai, o que fez com que ela tivesse a sensação de que não havia onde me encaixar em sua vida. A justificativa de que o relacionamento do seu pai com a Natália não deu certo pareceu não ter efeito nenhum para explicar a minha entrada.

Recorri a uma história familiar. Quando alguma situação de educação surge, sem muita reflexão recorremos aos métodos que usaram com a gente. Eu tenho uma irmã adotiva, a Sara, que chegou em nossa casa recém-nascida e que hoje é adolescente. Para explicar sua origem, meus pais contavam a história do castelo encantado onde os pais que queriam ter filhos buscavam uma. E a partir daí, essa filha se tornava filha do coração, e não da barriga, porque ela foi escolhida.

Fiz uma adaptação menos fantasiosa, na medida da inteligência da Anelise, para dizer que eu não sou seu pai, mas que meu amor é como se ela fosse minha filha e que, portanto, ela é minha filha do coração e eu seu pai do coração.

A partir de então ela passou a testar a metáfora. Quando estávamos só nós dois ela me chamava de pai, mas com uma entonação de teste. Como se ela estivesse chamando para ela mesma avaliar se cabia. Chegou a chamar na frente da Natália, mas com a mesma entonação. E morria de vergonha. Fazia como se estivesse brincando de casinha, de família. Quando algum desavisado se referia a mim como pai dela, a primeira coisa que fazia era esclarecer que eu não sou seu pai como se, sendo, inexistisse o outro.

Nesta história, o ponto mais crítico aconteceu quando nós três fomos morar juntos na mesma casa, quando ela estava quase completando cinco anos. A Anelise perdeu o lugar na cama ao lado da mãe e passou a ter que lidar comigo todos os dias, sem trégua. Foi um período de grande turbulência. Me rejeitou, não aceitava coisas que eu fazia há tempos, como levá-la na escola ou passar um tempo juntos. O dia mais difícil pra mim foi quando numa discussão em que ela enfrentava algumas regras que a Natália e eu colocamos, ela virou e me disse: “você não é meu pai!”.

Isso doeu, me senti rejeitado. Era como se ela pisasse em todo o carinho que eu havia lhe dado em três anos de convivência. Eu não consegui me calar, como outros padrastos quando ouvem essa frase. Respondi que não era mesmo e que eu não iria mais fazer as coisas pra ela. Na hora da raiva, respondi com a mesma imaturidade dela.

Tive dificuldade de digerir essa história. Precisei recuar um pouco para dar espaço para os incômodos dela e tempo para eu procurar uma nova maneira de exercer meu papel. Mas logo eu estava lá, nas brincadeiras ou ajudando na lição de casa, preparando algo pra ela comer.

Eu voltei atrás no que eu disse, continuei fazendo as coisas pra ela. Afinal, ela é a criança. Depois disso, passei a me preocupar menos com o título de pai e a curtir esses momentos em que exerço um papel de uma figura importante, acompanhando sua vida. Obviamente a ternura voltou ao seu nível anterior, das duas partes.

Na última noite em que ficamos juntos, enquanto fazíamos compras no supermercado ela me perguntou:

— Augusto, por que eu tenho vergonha de te chamar de pai? – assumindo o que me parecia óbvio.

— Não sei Ane, mas se um dia você tiver vontade de chamar, pode chamar. Eu não tenho vergonha de te chamar de filha.

O dia que ela entender que uma criança pode ter dois pais, que a existência de um não anula a possibilidade do outro ser presente, ela irá chamar. E mais importante do que chamar, é sentir.


 UM CAFÉ E A CONTA!
| Existe uma diferença entre sentir e expressar. Nem sempre expressamos o que sentimos. Nem sempre o que expressamos é o que sentimos.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, primeiro caderno, p. 2, 16/11/2013, Edição Nº 1276. 

sábado, 2 de novembro de 2013

Não Nado por Nada, Nado por Tudo Isso

Acrílico sobre painel de Augusto Amato 


Você já descobriu a sua atividade física preferida? Eu descobri.
A minha atividade preferida é a natação. Comecei a nadar quando criança, orientado por alguns professores. Não foi uma atividade constante em minha vida, mas já faz alguns anos que reservo um tempo da minha rotina para nadar.
Para a educação física, nadar é uma técnica. Movimentos corporais definidos pelo estilo de nado são repetidos para a travessia de um lado para o outro da piscina. Cada parte do corpo tem uma posição correta na intenção de evitar criar uma tensão desnecessária no deslocamento.
É difícil transformar em palavras o que me faz nadar. Vou ignorar a dificuldade e descrever esta minha paixão. Esta é a primeira lição que aprendi com a natação: coragem é o mesmo que ignorar as dificuldades.
Quando voltei a nadar na idade adulta, chegava morrendo após percorrer os 25 metros da piscina nadando crawl. Relatando isso ao Eduardo Cillo, meu amigo e grande psicólogo do esporte em num intervalo de aula da pós-graduação, Edu me recomendou dosar o ritmo. Foi quando eu descobri que nadar não é brigar com a água, é tentar deslizar sobre ela.
Só uma paixão pode ser capaz de me fazer acordar de madrugada e perambular até a raia quatro vezes por semana. Tem dias que tenho a sensação que rolo na cama e, ao invés de me esborrachar no chão, caio dentro da piscina.
A água é meu despertador. A piscina é meu chuveiro empoçado. As braçadas e as pernadas são o meu café da manhã. O mais surpreendente é que praticando com frequência não saio da água cansado, saio mais disposto. A natação é o meu antidepressivo.
Se você não gosta de pensar, não nade. É uma atividade individual. Ainda que a natação seja em turma ou equipe, com ou sem professor, passa-se a maior parte do tempo indo e vindo, sozinho. Se não consegue encarar seus próprios pensamentos, faça hidroginástica ou jogue bocha, entre para um time de basquete ou vôlei, jogue futebol. Não nade.
Durante o vai-e-vem na piscina eu processo meus pensamentos e sentimentos. Recordo os acontecimentos recentes que o excesso de afazeres não me permitiu entender, e vou pensando no que aconteceu. É como se eu retirasse os azulejos do fundo da piscina e recolocasse em outra ordem. Nadar é fazer um mosaico com os cacos das emoções.
A melhor maneira de processar os eventos cotidianos não é parando pra pensar. É pensar nadando, pensar andando, pensar dirigindo. Quem para pra pensar deixa a vida passar. Nunca despreze um pensamento súbito, independente do que esteja fazendo. Ele está pedindo atenção, querendo ser ao menos reconhecido. Deixe que ele volte na primeira brecha possível. Nadar é a minha brecha para dialogar comigo mesmo. A natação é meu solilóquio. Eu nado um quilômetro para que o diálogo solitário não seja interrompido.
E acredite, por volta dos 500 metros nadados, começa a emergir das águas uma incrível habilidade de resolver problemas. É quando eu acho uma saída para um dilema, tenho uma ideia de como resolver um impasse e exercito minha criatividade. Já escrevi uma crônica enquanto nadava. Nadar é meu exercício de brainstorm.
A Natália já me conheceu com essa paixão, por isso nunca criou caso por me ceder pra natação. Nunca foi capaz de implicar com o tempo gasto nos treinos, com mais uma atividade me tirando tempo de estar em nossa casa.
Já de cara foi obrigada a tolerar o cheiro de cloro que fica na pele. Não adianta tomar banho, passar hidratante e terminar com um perfume. O cheiro da natação é como o batom da amante que deixa marcas na gola. Não dá pra disfarçar.
Há um tempo atrás o clube fechou a piscina para reforma. Sem uma previsão exata de quando eu voltaria a nadar, entrei em desespero. Foi como uma crise de abstinência. Sentia que faltava algo para completar minha rotina. Eu sentia falta de nadar, a Natália do cheiro de cloro.
Quando ela me encontrava, percorria meu pescoço em busca de um cheiro que não existia mais. Foram quase duas semanas de embate com sua memória olfativa até uma nova habituação.
Até que um mês e meio depois a piscina foi reinaugurada. No primeiro dia que eu voltei a nadar, quando ela chegou em casa e me cumprimentou, a primeira pergunta que ela fez foi:
— Que cheiro é esse de água sanitária? Você fez faxina?
— Posso dizer que sim. Arrumei a bagunça dos seus pensamentos enquanto voltava a nadar.

UM CAFÉ E A CONTA!
| Prefiro um mergulho nos sentimentos do que boiar num mar de emoções. Nadar é o que mais me aproxima de voar.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, primeiro caderno, p. 2, 02/11/2013, Edição Nº 1274. 

sábado, 19 de outubro de 2013

Mais Pílulas de Infância

Arte de Weberson Santiago



Eram pouco mais de 9 horas da manhã quando saíamos de casa, num sábado, em direção ao centro da cidade. O céu coberto por nuvens acinzentadas. No nosso bairro ninguém na rua. Anelise, 5 anos, comenta:
— Nossa, parece que o mundo acabou!
— Não tem ninguém na rua, né?
— Esse céu é de filme de terror, parece que tá todo mundo dormindo nas casas.
Ensino que o céu coberto de nuvens chama-se nublado, ela se interessa e repete a palavra aprendida.  Conforme nos aproximamos do centro da cidade, avistamos pessoas nas calçadas. Anelise solta:
— Ufa! Tem um homem em pé ali, o mundo não acabou não!

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Ouvíamos um samba do Moyseis Marques. Ao final da música, o autor recita alguns versos. No meio da poesia Moyseis diz: “E em matéria de realidade, eu vou legal: tijolo por tijolo, degrau por degrau, tirando leite das pedras e construindo minha história”.
Ao final dos versos, Ane me pergunta:
— Augusto, como que tira leite de pedra se pedra não é vaca?
Respondi que tirar leite de pedra é uma expressão, que quer dizer fazer coisas difíceis ou chatas que não podemos deixar de fazer senão não conseguimos aquilo que queremos. Disse que existem pessoas mal educadas ou mal humoradas que temos que aguentar e tratar com educação, mesmo que elas nos tratem mal, pois isso faz parte da vida. Viver, às vezes, faz a gente enfrentar coisas ruins – concluí.
— Mas, Augusto, eu tenho uma vida tão boa! – retrucou.
— É verdade, né, Ane! Você tem uma vida muito boa! Aproveite... Um dia você vai ter que aprender a tirar leite de uma pedra.

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Anelise foi passar um fim de semana na casa da minha mãe. Na primeira noite, a Vó Eliana estava assistindo televisão acompanhada de um pratinho com uma deliciosa mexerica ponkan quando a Ane chegou:
— Vó, como você não me conta que tem mexerica nessa casa?
— Você gosta Ane? Eu não sabia...
— Eu não gosto, eu amo. Eu amo frutas, você não sabia?
— Não, não sabia, mas você gosta de todas as frutas?
— De todas, mas pensando bem, só não gosto de azeitona e amendoim. O resto das frutas eu como todas!

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Anelise: Augusto, já que você é o sabe tudo dessa casa, deixa eu perguntar uma coisa. Por que quando eu acordo tem essa casquinha no canto do meu olho?
Augusto: Enquanto a gente tá dormindo, durante a noite, vai saindo um pouquinho de lágrima nos cantos dos olhos.
Ane: A gente chora durante a noite?
Gusto: É só um pouquinho, para que o olho não fique seco. Essa casquinha se chama remela. Entendeu?
Ane: Entendi.
Gusto: A remela é uma lágrima que a gente não chorou.
Ane: Por que estava dormindo?
Gusto: Não, porque não teve coragem de chorar enquanto estava acordado.

UM CAFÉ E A CONTA!
| Não tenho saudades da minha infância. Tenho saudades de viver com menos responsabilidades.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, primeiro caderno, p. 8, 19/10/2013, Edição Nº 1272. 

sábado, 5 de outubro de 2013

Faça as Pazes com sua Consciência

Arte de Weberson Santiago


Você sabia que existe uma forma de guardar boas memórias e diminuir as lembranças desagradáveis?

Algumas das lembranças mais desagradáveis são os registros de episódios em que nos comportamos de maneira inadequada e que, quando são recordadas, evocam sentimentos de pesar e de culpa por ter feito algo a alguém ou por ter falhado no autocontrole.

Para preservar boas memórias é preciso esforço para evitar ser desumano ou insensível.

Eu procuro respeitar as pessoas com as quais convivo, acolhendo suas opiniões e ouvindo o que elas têm a dizer. Para isso, preciso desocupar o lugar de dono da verdade, desacreditar de que sou conhecedor de todas as coisas e abrir mão da uma posição ilusória de que sou o centro do universo e de que as pessoas devem orbitar em torno das minhas necessidades.

Para algumas pessoas a insensibilidade é um estilo de vida. Sustentar a posição de supostamente saber tudo é se tornar uma ilha afastada do continente. Não há via de mão dupla para a comunicação, já que o “sabe tudo” não está disposto a ouvir o que o outro pensa. As pessoas se afastam e fingem que acatam sua posição, esperam que o dono da verdade se distancie e fazem aquilo que elas consideram ser o melhor a se fazer.

O dono da verdade tem sempre uma metralhadora de acusações. Vive apontando culpados pelos problemas e os maltratando. Nunca aceita quando foi de fato o responsável pelo problema e não é capaz de ouvir quem tem uma alternativa para lidar com a situação. Ignora justamente quem sabe a solução do problema.

Busco avaliar amplamente uma situação antes de acusar alguém por não ter feito o que é sua responsabilidade, analisando as variáveis que possam ter contribuído para essa falha. Algumas cobranças são perdas de tempo e não tem justificativa. Explico.

Se uma pessoa trabalha atendendo ao público o dia todo, seria injusto acusá-la de ter errado na conferência de alguns documentos. A natureza de seu trabalho de atendimento é incompatível com a concentração necessária para realizar uma conferência. Cobranças recorrentes sobre os erros de conferência seriam perdas de tempo, enquanto propor que ela indique uma proposta de minimização de erros como, por exemplo, a redução de meia hora na jornada diária de atendimento, saindo do balcão para realizar a conferência com mais precisão seriam, de fato, uma solução.

Às vezes assisto, perplexo, à incapacidade das pessoas em pensar junto para tomar uma decisão. Quem pensa junto divide a responsabilidade pelas consequências da decisão. Erra junto, aprende junto, acerta junto e comemora junto. Ninguém é altamente eficiente sozinho. Eficiente é aquele mantem a colaboração em vigor nas suas relações.

Evite colecionar conflitos, arquivar grosserias, tomar decisões arbitrárias com os outros sem ouvir o que as diversas partes têm a dizer sobre o que aconteceu. Aprenda a ouvir a opinião das pessoas, sobretudo quando se trata de uma realidade em que você não tem disponibilidade ou possibilidade para se aproximar para conhecer a fundo.

Observar como você se relaciona com as pessoas não lhe exime de errar em algumas situações, mas preservará na memória relações de apoio mútuo e de respeito, ainda que em meio a situações complexas e turbulentas. Deixar de criar casos no presente é o que permite preservar boas memórias do passado.


UM CAFÉ E A CONTA!
| Um cenário problemático não justifica agir com brutalidade.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, contracapa (p. 2) do primeiro caderno, 05/10/2013, Edição Nº 1270. 

sábado, 14 de setembro de 2013

Recomendações para Usuários do Facebook

Arte de Weberson Santiago


Existem dois comportamentos básicos dos usuários do facebook: o acompanhar o que os outros postam e o comportamento de postar alguma informação.

O primeiro é mantido pelo que descobrimos a respeito dos outros vasculhando o que ele faz ou fez.

O segundo é mantido principalmente pelas curtidas que uma atualização rende, embora possa ser mantido também pela simples função de nos livrarmos de algo que está incomodando, como um desabafo.

Quem me adicionar no facebook verá que eu não tenho vergonha de ser quem eu sou e que sou um tanto quanto exibido.

Não tenho o menor pudor de expor meus sentimentos, como o meu amor pela Natália. Publico bilhetes, cartões, declarações de amor. Posto momentos de intimidades gastronômicas, quando estou cozinhando ou jantando um prato diferente em um restaurante.

Eu não sei mais o que é viver sem me expor, nem começo direito a viver alguma coisa e já estou contando pra todo mundo o que aconteceu.

Me verá no facebook divulgando aquilo que eu produzi que pode agregar alguma coisa a quem escolhe me acompanhar: meus versos em forma de poesia, as crônicas que escrevo, algum texto bacana que li, alguma notícia de jornal que possa interessar aos meus amigos ou alunos, os lugares bonitos que eu visitei, uma coisa diferente que comi.

Mas existe uma lista de coisas que eu me recuso a fazer.

Não me verá levando problemas de relacionamento interpessoal para a rede social. Quem lamenta a decepção com uma pessoa quer buscar a atenção de outra para compensar o distanciamento da primeira.

Não me verá compartilhando foto de pessoas doentes, com deformações no corpo. É mentira que o facebook dará alguns centavos pelo seu compartilhamento, apenas usam seu sentimento para que você compartilhe e a imagem atinja mais pessoas.

O que é fora do padrão chama a atenção. Perceber que não sofremos daquilo que está estampado na imagem não nos torna melhores. Não promovo o sentimento de dó ou piedade. Prefiro compartilhar a informação que promove o desenvolvimento, a autonomia ou a história de quem ignora as limitações impostas.

Não me verá vomitando sentimentos negativos resultantes da minha rotina. Não me permito reclamar de cansaço, esbravejar angústias, transformar o medo em raiva e atacar algo ou alguém. Não é porque eu não tenho em mim este tipo de sentimento, mas porque não cabe ao outro lidar com o que há de pior em mim.

Não me verá brincando de seduzir nas redes sociais. Não apenas porque eu sou casado, mas porque brincar com as emoções é perigoso. Eu não abro a porta do envolvimento para não ter que lidar com a confusão mais adiante. Não é só uma questão de princípios, mas uma vasta noção de consequências.

Na teoria é simples. Quem não quer se expor que se esconda. Quem não gosta do que compartilho que deixe de receber minhas atualizações, o que pode ser feito sem desfazer a amizade e sem que eu saiba que você fez isso.

Na prática, sonegamos a parte mais comum de nossa vida e exibimos o que achamos mais interessante, ao mesmo tempo em que nos satisfazemos assistindo a vida dos outros.

UM CAFÉ E A CONTA!
| Como é seu uso, qual é o seu abuso e do que você é dependente na internet?

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, contracapa (p. 2) do primeiro caderno, 21/08/2013, Edição Nº 1268.