sábado, 27 de dezembro de 2014

Palpites para o Seu 2015

Arte de Weberson  Santiago


Se você me permitisse palpitar na sua lista de resoluções para o próximo ano eu lhe daria as seguintes recomendações:
— Em 2015, aprenda a descansar. Existe uma doença a solta por aí cujos sintomas são: vício em trabalho, sentimento de culpa em parar de produzir e pensamentos persistentes em assuntos ligados ao trabalho. O vírus acomete a humanidade há alguns séculos, mas suas mutações recentes tem causado sintomas mais graves. A doença é contagiosa, tem acometido cada vez mais pessoas. Os doentes costumam achincalhar quem defenda breves períodos de descanso, como se isso fosse sinônimo de vagabundagem. É tão grave que o doente pensa que tirar férias é um pecado mortal. Quem é acometido por esta doença costuma ignorar o seu próprio limite físico e emocional. Não percebe que este desrespeito consigo mesmo tem como consequência a S.E.P. – Síndrome do Emputecimento Progressivo. A S.E.P. é um conjunto de sintomas de impaciência e intolerância em nível crescente. Pessoas com S.E.P. costumam atribuir a culpa de seu arrombo de agressividade aos outros. O único remédio para esta doença é aprender, iniciando com doses homeopáticas e aumentando o tempo gradativamente, a descansar. É seu direito. Em 2015, faça ele ser respeitado.
— Em 2015, se você tiver filhos, quando se encontrar com ele(s) no fim do dia e perguntar como foi o dia na escola, não se contente com a resposta “legal” ou “tudo bem”. Pergunte coisas que ele ou ela se interesse em responder como, por exemplo: “se você pudesse ser um de seus colegas, quem você escolheria?” ou “Que palavra diferente a sua professora te ensinou hoje?” (a americana Liz Evans publicou no seu blog ‘25 maneiras de perguntar a seus filhos ‘Como foi a escola hoje?’ e obter respostas”, pesquise no Google e se inspire). Em 2015, converse mais com seus filhos e acompanhe suas dúvidas, dilemas e inseguranças.
— Em 2015, se você tem avós, estabeleça uma frequência possível de estar ao lado deles. Arrume um tempo para ouvir as histórias da vida de seus avós. Pergunte como eram as coisas na época em que eles eram jovens. Descubra as histórias de amor de seus avós e de seus bisavós.  Pesquise sua origem e a trajetória de sua família pelo mundo. Descubra as profissões de seus antepassados. Você certamente entenderá como alguns de seus comportamentos têm uma base no comportamento de seus ascendentes. Sua vida terá muito mais sentido com essas informações. Se seu pai ou mãe é idoso, vale o mesmo palpite. Em 2015, não desperdice a oportunidade de aprender com seus avós, pois esta oportunidade pode não estar disponível mais adiante.
— Em 2015, se apaixone por uma atividade física (se é que você já não vive uma paixão). Saia do sedentarismo encontrando o seu esporte favorito. Manter-se ativo é a melhor maneira de evitar doenças físicas e emocionais. Atividade física, quando praticada com regularidade, é um antidepressivo natural. É um jeito de fazer amigos e expandir seus relacionamentos. Você pode estar pensando que já tentou e não conseguiu manter-se na prática regular. Pense em como você agiu na situação. A grande maioria das pessoas que desistiu da atividade física começou mirando resultados rápidos de mudança no corpo, exagerou no tempo e na frequência do exercício inicialmente, sem permitir uma adaptação gradativa do organismo. Comece estabelecendo dias e horários que poderá de fato encaixar a atividade física e se manter praticando, sem criar condições para desistir. Seja realista. Pense em alguma atividade que lhe dê prazer, existe uma infinidade de opções. É possível que no começo tenha de se obrigar, mas depois não conseguirá ficar mais sem. Em 2015, movimente-se.
— Em 2015, viaje. Faça pelo menos uma viagem ao ano. Se possível duas. Saia da sua rotina para voltar mais inspirado. Conheça lugares diferentes daquele onde você vive. Entre em contato com outras culturas, outros hábitos. Falta de dinheiro não é uma boa desculpa. Percorra a distância que seu bolso permite. Planeje e, em 2015, faça uma viagem.
— Em 2015, persiga o equilíbrio. E ainda que siga desequilibrando, mire como meta o equilíbrio. Como diz o ditado: nem tanto ao mar, nem tanto a terra. Deixe de lado o oito ou oitenta. Teste o quarenta e três, depois o cinquenta e sete. Se só conseguir agir no doze e no setenta e sete, terá sido melhor do que no oito e no oitenta. Você tem o resto da vida para se aproximar do equilíbrio. Em 2015, persiga o equilíbrio.
UM CAFÉ E A CONTA!
|Em 2015, que você consiga resgatar a sua inspiração.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois,27/12/2014, Edição Nº 1337.

sábado, 13 de dezembro de 2014

Dançando com a Vida

Foto do Arquivo Pessoal



Noutro domingo, resolvi passear em Ribeirão Preto com as minhas meninas. Tinha ouvido falar de um evento chamado Projeto Café com Choro. Trata-se de um baile que ocorre há 20 anos no meio do campus da USP de Ribeirão Preto.
Todos os domingos, das dez horas da manhã ao meio dia, as pessoas se reúnem para dançar ao som do Grupo Rouxinóis. Pessoas de todas as idades se encontram na pista ladeada de bancos de alvenaria em frente ao par de coretos, sendo que o maior deles abriga a banda. Fica bem do lado do Museu do Café e um pouco atrás do casarão sede da antiga fazenda que se tornou campus universitário, cujo prédio hoje abriga um Museu Histórico.
É um lugar carregado de história e que continua fazendo história com o baile que se repete aos domingos durante o ano todo. Além dos músicos e casais pés-de-valsa, muitos turistas comparecem para admirar a simplicidade cativante do evento. São recebidos com suco, café, chá e bolachas, daí o nome Café com Choro. Já adianto que a beleza está na simplicidade. Se não é capaz de enxerga-la ou senti-la, prefira o shopping.
Descemos do carro e fomos em direção ao som. Ficamos encantados com o que vimos. Uma banda composta por cabeças brancas e alguns novatos. Entre os dançarinos, jovens com habilidade para dançar o forró, casais de meia idade em sintonia na dança de salão e exemplares casais de idosos esbanjando disposição.
Procuramos lugar nos bancos em volta. Observei uma toalha esticada no assento e supus que tinha alguém sentado ali. Ao lado uma garrafa de água. Percebi que os frequentadores trazem um kit e tem seu ritual para participar do baile.
Achamos dois lugares, onde a Natália e a Anelise se sentaram, enquanto eu subi numa parte superior atrás do banco e comecei a tirar fotos. Não fazia nem cinco minutos que estávamos ali. Uma senhora de cabelos brancos, vestido marrom e sapato de salto preto, que estava dançando, saiu da pista quando a música terminou, se aproximou da Natália e disse: “Adorei o seu vestido” – referindo-se ao vestido preto com rosas amarelas e vermelhas dela. “Ah, obrigado. O da senhora também é muito bonito”, respondeu prontamente a Natália. Outra senhora que estava do lado resolveu participar: “A Ivone sempre está bem vestida, acho que a filha dela é dona de boutique!”.
Percebi que estava num lugar diferente e com pessoas felizes, algo raro nos dias de hoje. Respirei aliviado por existirem lugares assim. Agradeci por estar naquele lugar.
Enquanto observava os casais dançando, me chamou a atenção a postura ereta de uma senhora elegante. Ela tinha uma postura fina ao dançar e um semblante alegre. Quando a música terminou, ela começou a conversar com seu parceiro, um senhor de chapéu de palha, camisa preta e cruz de prata no peito. Ele listava os bailes da cidade que já participou, perguntando se ela os conhecia. Ela respondeu: “Faz apenas cinco anos que eu saio. Passei a vida toda cuidando da casa, dos filhos. Descobri a dança faz pouco tempo.”
O dono da toalha parou de dançar e sentou-se ao lado da Natália. Um senhor barrigudo, de camisa azul e dois botões abertos. Retirou do bolso uma bala de menta e ofereceu pra Anelise. Ela não aceitou, seguindo a regra que repetimos de nunca aceitar bala de estranhos. Eu queria poder explicar pra ela que tem lugares como aquele que ainda se pode aceitar uma bala de um estranho, mas me mantive observando. Ele insistiu, ela negou, então ele abriu e chupou a bala.
Envolvidos pelo clima, Natália e eu resolvemos arriscar um dois-pra-lá, dois-pra-cá. Alguém da banda tirou umas fotos nossas. Quando a música terminou, voltamos pro banco e perguntei: “Anelise, quer dançar?”
Ela ficou encabulada. Aquela senhora de postura esguia e que aprendeu a ir ao baile há cinco anos se aproximou e perguntou o nome dela. Disse-lhe com uma voz doce, num ritmo cadenciado: “Anelise, dança com ele! A dança é uma coisa muito boa, é uma alegria, a gente se sente leve, se sente bem. Na vida a gente precisa aprender a dançar!”
Eu sempre imaginei que a dança fizesse bem, mas naquele dia eu tive a certeza.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Mais um objetivo na vida: aprender a dançar. Um dia vou encontrar tempo para fazer aulas semanais.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 13/12/2014, Edição Nº 1335.

sábado, 29 de novembro de 2014

Coxinha Injustiçada





“O Augusto é coxinha”. Já tinha ouvido por aí alguns caras serem chamados de coxinha, mas foi quando o meu nome foi associado ao salgado que resolvi investigar a fundo o que é um homem coxinha.
Depois de muita investigação e leitura pude concluir que o coxinha é um mauricinho-versão-atualizada. O coxinha é um cara tão certinho que irrita. É um almofadinha que se preocupa com sua imagem e com o que os outros pensam dele. O coxinha é vaidoso, mantem o cabelo sempre impecável. Evita qualquer atividade que desmanche o seu topete. Não frequenta qualquer ambiente e não se mistura muito, mas quer que os outros pensem que ele é descolado e que é popular entre seu seleto grupo de amigos.
O coxinha não se arrisca, não ousa. Prefere tudo no seu lugar. Desde a camisa pólo por dentro da bermuda bege até a foto de família-tradicional-feliz. O coxinha é o orgulho dos pais: nunca repetiu de ano, sempre soube dividir o tempo entre o namoro e os estudos para o vestibular e por isso entrou cedo na faculdade. Casou logo, já que o coxinha é o sinônimo da estabilidade futura no mercado das solteiras.
Alguns blogueiros teóricos, dedicados a chegar ao perfil exato e definitivo do coxinha, defendem que eles estão por todas as partes, em diversas profissões, grupos e classes sociais. Eu fiquei confuso com a divergência entre as definições, porque o coxinha pode ser muita coisa. Pode-se ser chamado de coxinha quando discute futebol, quando dá opinião sobre política ou até se for falar de amor. O cara te incomodou? Chama de coxinha.
Quando ouvi esse papo de coxinha, confesso que me pareceu engraçado. Mas quando fui pensar a respeito da comparação, achei injusto um salgado gostoso ser equiparado a tantas características sem graça. O que o salgado dourado e crocante, recheado de frango e catupiry tem a ver com todos esses tipos de comparação pejorativa? O que está por trás desta injustiça com a coxinha, caro leitor?
Recentemente a coxinha ganhou sobrenome gourmet em versões variadas de recheios e massas. Tem até coxinha de pato. Versão de sobremesa com massa de brigadeiro e recheio de morango. Acredito que se trata de um complô dos outros salgados, invejosos do status que a coxinha conseguiu alcançar nos últimos tempos. Cidades tornaram-se ponto turístico por venderem coxinhas. A coxinha está sendo boicotada em seu momento mais glorioso.
Defendo a igualdade entre os salgados. Ou a coxinha deixa de ser xingamento ou todos os salgados devem ser usados para a difamação.
Se você não concorda com a minha teoria, não adianta me chamar de coxinha. Você pode se enquadrar no que eu chamo de rissoles: aquele tipo de pessoa que quando você espreme (pressiona), o recheio pula pra fora (não dá conta). Pode ser que você seja um quibe: o que o vernáculo das gírias outrora denominou de cagão (medroso). Pode ser ainda que você se enquadre no perfil do empadinha: parece alguém de gosto requintado e elegante, mas que quando você chega perto percebe que é gorduroso e o recheio é popular. Afinal, a tampinha sempre esconde o recheio de frango ralado, palmito e azeitona.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Se você for chamado de coxinha não questione. Um coxinha nunca aceita que é coxinha.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 29/11/2014, Edição Nº 1333.

sábado, 15 de novembro de 2014

Educação para a Morte

Arte de Weberson Santiago



Nunca estamos totalmente preparados para lidar com a morte, mesmo que anunciada por uma doença que se arrasta lentamente. Quem dirá quando é repentina, inesperada.
A Natália e eu temos o costume de deixar a Anelise participar das situações de perda que vivemos. Ela foi ao velório do pai da Natália no ano passado e mais recentemente no de minha avó materna, que morreu de repente.
Acreditamos que, se ela viver os rituais envolvidos na morte de um ente querido, estará mais preparada para viver outras perdas no futuro. Estou falando de educação para a morte.
Educar para a morte é o contrário de poupar a pessoa de viver situações que envolvem a perda. Não sou a favor de expor uma criança a uma situação de sofrimento que seja mais forte do que ela pode aguentar e que a faça ter pesadelos de que está perdendo seus pais, por exemplo. Mas que ela seja gradativamente exposta a este assunto que faz parte da vida.
Na verdade, optamos por não ensinar nossos filhos a lidar com a morte porque nós mesmos não sabemos lidar com ela. Preferimos evitar o assunto em qualquer ocasião, inclusive numa conversa familiar longe da ocorrência de uma perda próxima.
Aceitar a perda é um processo, com começo (a morte), meio (alguma forma de sofrimento geralmente acompanhada de questionamentos que de fato não tem resposta: por que com ele ou ela? Se eu tivesse feito tal coisa a morte seria evitada?) e o fim (a aceitação que deve vir acompanhada de um novo sentido para a vida sem a pessoa que se perdeu).
Algumas pessoas tem muita dificuldade de aceitar a perda. A tristeza faz parte do processo de aceitação. O problema é quando se para na tristeza, patinando sobre ela sem conseguir sair. É preciso algum esforço para ultrapassá-la. Quando não se consegue sozinho é preciso pedir ajuda.
Cerca de dez dias após a morte da minha avó, enquanto tomávamos café da manhã, a Anelise me perguntou:
— Quando a gente morre continua a fazer aniversário?
— A gente que fica se lembra do aniversário de quem morreu, mas não canta parabéns. Agora, lá no céu eu não sei. Imagino que as pessoas que morreram comemorem juntas lá, mas como a gente não tem como ir no céu pra ver, não dá pra ter certeza.
— Queria tanto que a gente pudesse ir lá no céu pra ver como é que é, e depois pudesse voltar pra nossa casa! – disse ela.
— Seria bem legal, né, Ane? Uma pena que não tem como... Quando eu era criança e ouvia o padre falar de como é o céu, também tinha vontade de dar uma espiada e ver se era tão bom quanto ele falava.
E assim ela vai ficando amiga do fantasma que é a morte.

UM CAFÉ E A CONTA!
| Pessoas que viveram em ambientes em que a morte era um tabu, geralmente são as que não sabem o que fazer com ela quando perdem alguém.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 15/11/2014, Edição Nº 1331.

sábado, 1 de novembro de 2014

Enxoval de Esperanças

Arte de Weberson Santiago



Luciana se enchia de esperança a cada novo relacionamento. Bastava o primeiro encontro e o telefonema do rapaz na semana seguinte para que ela começasse a se imaginar casando. Conforme o relacionamento avançava, ela que trabalhava no comércio, começava a comprar coisas em lojas de departamento: utensílios domésticos, roupas de cama, mesa e banho.
Quando Carlos, o primeiro namorado, descobriu a compra, se assustou com o tamanho do passo, com a rapidez da evolução. Fugiu do compromisso e abandonou o relacionamento. Luciana ficou muito chateada, perdeu a esperança de se casar, mesmo com as amigas lhe dizendo que ele partiu porque não gostava dela de verdade. Sentiu-se culpada.
Ainda assim, bastava que ficasse com outro rapaz em uma festa e ele demonstrasse a intenção de marcar outro encontro, para que ela fosse tomada por uma coceira incontrolável para comprar algum objeto para quando viesse a se casar. Era uma vontade persistente, que se sustentava em um sonho muito desejado.
Como percebeu que as compras tinham assustado o seu namorado anterior, Luciana passou a adiar mostrar todos os objetos que ela dispunha para usar após o casamento. Mantinha-os em um quartinho na casa de sua mãe. Quando o novo namorado Fábio, conheceu o enxoval, também pulou fora da relação. E foi assim com o Lucas, o Paulo e o Edgar.
Luciana já tinha uma casa completa dentro daquele quarto, entre móveis, enxoval e utensílios de cozinha, mas lhe faltava a esperança. Pouco a pouco ela foi diminuindo, chagando a pensar que não usaria nada daquilo que foi juntando, pois seus namoros não evoluíam.
Até que Luciana conheceu o Marcos, um cliente que atendeu na loja onde trabalhava. Ele era auxiliar administrativo em uma imobiliária do centro da cidade e havia acabado de receber as chaves de um pequeno apartamento que tinha financiado desde a planta. Ele havia entrado na loja para comprar as primeiras coisas pro novo apartamento.
Luciana lhe vendeu um jogo de cama de casal e entendeu que ele tinha a cama, mas não tinha a companhia. Observou as mãos e não encontrou nenhuma aliança. Ele achou ela bonita, mas só tomou alguma iniciativa quando lhe encontrou num restaurante por quilo e a convidou para sentar na mesa dele.
Pronto. Ele tinha o apartamento e ela era dona de tudo o que era preciso para transformar aquele espaço em um lar. Era a panela conhecendo a sua tampa. As metades da laranja que se completavam. Os opostos se atraindo na intensidade de um imã.
— Você não se importa de usar todas aquelas coisas que eu comprei em outros relacionamentos? – perguntou Luciana.
— Não – respondeu Marcos sem titubear – você comprou pra usar com seu marido, mas nenhum deles merecia ocupar este lugar. Você já comprava pra nossa casa, só que ainda não sabia disso.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Relacionamentos que não deram certo devem nos ensinar algo para quando estivermos diante de um relacionamento que pode dar certo.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 01/11/2014, Edição Nº 1329.

sábado, 18 de outubro de 2014

Aniversários

Arte de Weberson Santiago



O que você faz no dia do seu aniversário? Você comemora ou prefere que a data passe batida?
O aniversário é o ano novo do calendário individual. O fim de um ciclo e o início de outro, embora muitas coisas continuem iguais após o aumento da idade.
Aprendemos a comemorar este dia especial com uma festa que reúne familiares e amigos em nossa própria casa ou em salões de festa. Geralmente comemos salgadinhos e cachorro-quente. Por último fazemos uma roda em volta de um bolo duplamente recheado e coberto, contornado por brigadeiros e outros docinhos para cantar a famosa música que deseja felicidades e vida longa. O aniversariante e sua família oferecem a festa e os convidados retribuem com presentes.
Essa é a prática cultural dominante e padrão de como passar por esta data. Por meio desta prática, crianças aprendem a comemorar os seus anos completos e contam os dias para receber os presentes. Mas será que este ritual faz sentido para um adulto?
Para muitos deles sim. A Natália, por exemplo, adora fazer a reunião em casa. Gosta da festa tradicional, com os comes e bebes clássicos, se deixarem distribui até chapeuzinhos.
Já este que lhes escreve não. Não gosto de comemorar aniversário fazendo a festa clássica em casa. Quando tive a oportunidade, tirei o dia para fazer uma viagem curta, almocei em um restaurante gostoso e voltei pra casa. Mas também já trabalhei o dia todo sem contar para ninguém que era o “grande dia”.
Não me sinto mal nesta data, gosto da sabedoria extraída das experiências que vem com o passar dos anos. Só não gosto de marcar uma reunião neste dia. Em períodos de finalização e recomeço, costumo ficar reflexivo e gosto de me recolher. Não me isolo por ser antissocial, mas por respeito aos meus próprios sentimentos. Não abro mão da companhia da Natália e da Anelise, mas as duas já bastam para que eu me sinta comemorando.
Provavelmente quem gosta de comemorar está me achando um chato. Quem também não gosta está se sentindo bem por não ser o único.
Quando alguém com quem convivo me diz que sua data está chegando, pergunto o que ele ou ela irá fazer. Se a resposta é uma dúvida, sempre digo a mesma coisa: faça o que você gosta, faça alguma coisa que lhe dê prazer. Afinal, é o seu dia! Comemore do jeito que lhe faz se sentir bem!
Só não vale fazer a festa e depois ficar reclamando da mancha da comida que o filho do convidado deixou cair no seu sofá. Ou ir dormir chorando por conta da troca de farpas que rolou entre os familiares que não se dão bem.
A festa tem que ser feita porque faz sentido para você e é assim que você quer comemorar, não porque você precisa fazer para agradar aos outros. Lembre-se: é o seu dia!
UM CAFÉ E A CONTA!
| Para vocês o aniversário é um dia especial ou um dia comum?

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 18/10/2014, Edição Nº 1327.

sábado, 4 de outubro de 2014

A Caixa de Cartas

Arte de Weberson Santiago



Tínhamos acabado de almoçar num sábado, meu avô Tino, com 94 anos, e eu. Tomávamos um café enquanto ele contava uma história do passado, ilustrada com uma foto antiga tirada na época do ocorrido. Papo-vai-papo-vem, questionei como foi o começo do seu namoro com a minha avó Rosa, que infelizmente faleceu há alguns anos.
Ele começou a descrever a paquera sutil em volteios ao redor da fonte dos amores, na praça central de Mococa, os homens no sentido horário e as mulheres no sentido anti-horário. Um namoro muito diferente dos que vemos nos dias de hoje. A relação avançava a passos lentos como os de uma tartaruga. Era uma eternidade para se pegar na mão. Relatou o pedido de casamento para o sogro, a resistência dos irmãos. Pediu-me um minuto e foi para o quarto.
Voltou com uma caixa forrada do lado de fora com papel xadrez, desbotado. As laterais da tampa levemente rasgadas pelo efeito do tempo, mas cuidadosamente preservada inteira há quase setenta anos. Quando ele abriu, percebi que a caixa estava cheia de cartas que eles trocaram durante o namoro.
Papeis envelhecidos, cor-de-café-com-leite. Dobrados em quatro. Posso ver? – perguntei. Claro – respondeu. Abri a primeira, era dele para ela. No papel tinham marcas redondas mais escuras por detrás da tinta. Perguntei o que era. Ele disse que deveria ser a marca do perfume. Contou-me que não tinha perfume quando era jovem, mas que vez por outra pegava a colônia do pai escondido, molhava a ponta do dedo e encostava no papel. Pensei que o perfume da carta deveria fazer a Rosa imaginar o cheiro do seu cangote. Não podendo senti-lo de verdade, restava-lhe a imaginação. Palavras singelas, descompromissadas.
Dobrei e guardei, retirando outra. Era dela pra ele. Comentava amenidades. Alguns pontos com excesso de tinta sugeriam longos suspiros enquanto ela escrevia. Fiquei encantado com aquelas cartas, viajei no tempo, voltei para o início da história deles, mas não quis ver todas, nem ler todas as linhas. Temia ser invasivo. O mais importante foi ter compartilhado da intimidade dos meus avós, me senti privilegiado em ser uma espécie de confidente do meu avô.
Quando fui embora de sua casa, no trajeto de carro, senti um calafrio na barriga. Onde estão os cartões que a Natália me escreveu? – pensei. Não sabia. Nunca me preocupei em recolher os bilhetes carinhosos, os mimos. Cheguei em casa e comecei a procurar. Não achei nenhuma. Senti o peso da displicência. Lia o cartão que ganhava e deixava sobre a mesa da cozinha ou na sala. Esquecia dentro da sacola do presente. Valorizava o presente e abandonava o carinho do recado.
Decidi que começaria a guardar estes registros de sentimento quando ganhasse o próximo. Queria poder mostra-los aos meus filhos ou netos, como fez o meu avô.
Os dias se passaram e alguns finais de semana depois do ocorrido a Anelise teve dor-de-garganta e febre. Cuidávamos da pequena e a Natália me pediu para que pegasse um lenço na sua gaveta de lenços para embeber no álcool e colocar no pescoço da Ane. Enquanto ela dizia qual queria, eu descrevia os que encontrava e vasculhava sua gaveta em busca do que ela queria. Foi quando encontrei, lá no fundo, uma caixa vermelha, em formato de coração.
Abri por curiosidade. Lá estavam todos os nossos, bilhetes, cartões, recados. Ela havia recolhido tudo o que eu larguei jogado e guardou. Respirei aliviado por não ter sido fato consumado o desperdício imaginado.
Amar de verdade é ser um perito dos sentimentos. Amar é colecionar provas do carinho. Ela me ama tanto que tolerou meu desleixo para preservar as memórias do nosso amor.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Mantenha o hábito de escrever um cartão, deixar um bilhete ou uma carta. Mensagens reais valem muito mais do que as virtuais.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 04/10/2014, Edição Nº 1325.

sábado, 20 de setembro de 2014

A Luta Contra a Obesidade

Arte de Weberson Santiago


Augusto-Magro,
Quem escreveu esta carta e escondeu para que você a achasse é o Augusto-Gordo com 13 anos de idade. Escrevo pra te contar que estou cansado de ser gordo. Já apelei para todos os médicos e nutricionistas da cidade e da região, e sempre é aquela coisa de emagrecer durante um período e engordar tudo e mais um pouco depois. Desde criança com este excesso de peso. E é desde criança que as piadas e brincadeiras me enchem o saco. Outro dia os colegas da sala pularam todos juntos quando eu sentei, igual acontece na escola do Chaves quando o Nhonho se senta. As risadas em seguida – inclusive a da professora – me deixaram muito chateado. Saí da sala e fui chorar escondido atrás da árvore do pátio da escola. Voltei quando consegui fingir que não tinha ligado. Passei a prestar mais atenção nos defeitos dos outros depois disso. Eu posso ser gordo, mas sou inteligente. Quem me chama de gordo também tem defeitos e se alguém fala do meu defeito, rebato com o dele. Já tem alguns colegas que namoram, acho que eu nunca vou conseguir beijar sendo gordo. Começou uma moda de bailinhos na casa dos colegas. Para sair à noite, fui comprar roupa com a mãe numa loja de roupas para gordo. Nas lojas normais não encontro nenhuma que me caiba. Ainda bem que tem uma loja que vende roupa para gordo aqui na cidade, mas precisava ser tudo igual roupa de velho? Todos os amigos usam roupas fosforescentes - 90s rules man! - enquanto eu uso roupa de velho. Até tenho sido convidado para os bailinhos, dizem que eu sou engraçado, mas tenho passado a maior parte do tempo dançando com a vassoura. Outro dia dancei com a Maria Fernanda por três minutos até o Luiz Eduardo roubá-la de volta. Foi tão rápido, mas mesmo assim nem consegui dormir direito naquela noite. Como eu sei que você ficaria magro? Você sempre quis tanto isso pra passar o resto da vida sem conseguir.
Augusto-Gordo,
Tudo o que você queria aconteceu, e o que não queria também. Você ficou magro, mas se tornou empresário como seu pai e o seu avô. A sua obesidade foi resolvida quando a cirurgia bariátrica chegou no Brasil. Ainda bem que alguém inventou de amarrar o estômago e fazer uns desvios no intestino! Todos os elogios de aparência que você não ouviu, eu ouvi durante o ano a meio que emagreci aos poucos. Até experimentei ser pegador, mas não sirvo pra isso. Prefiro viver com intensidade uma única relação. Ainda me dá um trabalhão permanecer no peso ideal, não me livrei da nutricionista e a natação que você experimentou por um mês no ano em que me escreveu e não teve disposição para continuar é a minha grande paixão. Caio na piscina três vezes por semana e isso ajuda bastante a enfrentar o estresse da vida de empresário e a não engordar novamente. Para se aceitar e ajudar as pessoas a mudar você escolheu a Psicologia como profissão e gosta muito de trabalhar com isso. A rejeição social que você passou hoje é chamada de bullying, mas ainda é um desafio acabar com isso. Não só para com os gordos, mas para todas as diferenças que existem na sociedade. Todo mundo acha que aquilo que é ou aquilo que tem é melhor do que o dos outros. Os colegas que lhe tiravam sarro hoje fazem psicoterapia ou usam antidepressivos. Eles lhe ensinaram a respeitar todas as pessoas e as suas singularidades, simplesmente para evitar que elas tenham sentimentos como os que você teve. Aquelas mágoas e a raiva que você foi acumulando nas situações que te machucaram foram sendo resolvidas em quase doze anos de psicoterapias. Hoje você está casado com a Natália, tem uma filha de coração adorável e está muito feliz com a casa nova. A obesidade ficou no passado e talvez seja por isso que eu tenha orgulho dela ter feito parte da nossa história de vida, pois foi com ela que descobrimos a superação. Como isso foi resolvido, você arrumou uma série de ocupações e preocupações para se manter ocupado.


UM CAFÉ E A CONTA!
| Trocar de problemas é uma forma de evoluir.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 20/09/2014, Edição Nº 1323.

sábado, 6 de setembro de 2014

Onde Mora a Minha Casa, Habita a Minha Alma

Arte de Weberson Santiago



Gostaria de morar num bairro onde as pessoas não esperam o poder público arrumar a praça. Um lugar onde cada morador retira uma muda de seu quintal e planta no espaço coletivo. Sonho com um jardim coletivo para além dos muros que separam as casas, que encante a ponto de um morador doar um banco para quem quiser contemplar o lugar. Um lugar conservado por diversos pares de mãos, em que não haja coragem para sabotar, raiva para destruir, apenas vontade de colaborar com mais uma planta ou com a iniciativa de arrematar o trabalho com um comedouro que mantenha os pássaros por perto sem apelar à gaiola.
Gostaria de morar numa bairro que tivesse um mercadinho daqueles que vendem de tudo, mas por um preço justo. Onde eu possa recorrer quando tiver chegado do supermercado e constatado a falta de um ingrediente para conseguir cozinhar um prato. Um mercadinho com caderneta de papel com meu nome na primeira linha da folha e com os valores gastos nos dias do mês abaixo. Para que eu possa receber meu salário e ver o dono rabiscando os valores quitados.
Gostaria de morar num bairro onde existisse uma casa agropecuária para eu comprar ração para a nossa gata, comida para os nossos peixes, painço pro nosso periquito australiano e semente de girassol para a nossa calopsita. E lá encontre a ferramenta que se fizer necessária para um conserto ou manutenção e que ainda não exista em minha caixa de ferramentas. Um lugar onde eu possa confiar nas dicas sobre qual dos produtos deva escolher e que me ligue quando tiver acabado de chegar o que eu procurei e não tinha mais.
Gostaria de morar num bairro onde no fim se semana passa um sorveteiro apertando a buzina, que aos meus ouvidos vai aumentando de intensidade e sinaliza que ele se aproxima do meu portão com seu carrinho cheio de sorvetes. Para que eu possa levantar correndo a procurar por moedas espalhadas em potinhos, bolsos, carteiras e no coxim do carro e encontre um valor suficiente que possa alegrar nossa tarde com um trio de picolés, antes que a buzina vá se distanciando e vire a esquina.
Gostaria de morar num bairro onde as pessoas trocam aquilo que tem em excesso em suas despensas. Que eu ganhe mangas do quintal e a Natália oferecesse um pedaço de bolo que acabou de assar como expressão do nosso agradecimento.
Gostaria de morar em um bairro onde eu possa oferecer a penca da bananeira do meu quintal que pende pro terreno do vizinho à sua família. E como retribuição, ele permita que os galhos da sua primavera branca ultrapassem e invadam a minha fachada e deixem o semblante da minha casa mais feliz.
Gostaria de morar num bairro com um morro onde exista um Cristo Redentor – ou “Rebentor” como dizia a Anelise quando era menor – de braços abertos para o novo dia, espiando lá de cima, com fé na minha partida para mais uma jornada e abençoando meu retorno.
Gostaria de morar num bairro onde há uma sinfonia de galos na alvorada, para que eu possa acordar lentamente conforme eles forem cantando nos quintais e galinheiros da redondeza. Prefiro o canto dos galos ao despertador que imita um galo eufórico sem intervalos.
Mas eu moro num bairro assim. Por que todo mundo não pode morar num bairro assim?
Por que nem todo mundo tem como sonho viver em um bairro assim. Sem sonho não há comprometimento em construir uma nova realidade. Um sonho compartilhado é o projeto de uma nova realidade, em que basta que o primeiro tome a iniciativa para que os outros imitem a atitude. E a nova realidade começa a tomar forma e funcionar.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Enquanto houver lugar para os relacionamentos humanos nos bairros da cidade, haverá a esperança da cooperação superar o individualismo em nossos espaços de convivência.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 06/09/2014, Edição Nº 1321.

sábado, 23 de agosto de 2014

O Perfume do Marcelo

Arte de Weberson Santiago


Meu amigo Marcelo era o cara tímido da turma. Vivia sendo chamado de nerd pelos meninos mais velhos da escola. No intervalo sentava sempre no mesmo lugar do banco que ficava no corredor entre as portas das salas de aula. Por lá passavam todos os alunos rumo ao pátio, mas Marcelo conversava sempre com os mesmos colegas durante o recreio.
Quando chegamos à idade mínima permitida para frequentar as boates do clube, passava pela casa do Marcelo e descíamos a pé até lá. Foi num dia desses que descobri uma mania do meu amigo. Já tínhamos caminhado duas quadras da casa dele quando ele me fez voltar, dizendo que havia esquecido o dinheiro. Pediu que eu o esperasse na porta, mas tive vontade de ir ao banheiro e entrei logo depois. Quando passei na porta do seu quarto, Marcelo estava passando perfume.
Ele não havia esquecido o dinheiro, havia esquecido de passar o perfume. Sabia que meu amigo nunca havia beijado uma garota – ou como diziam os garotos naquela época, nunca tinha “ficado ou pegado uma mulher”. O perfume era o ritual que mostrava que a cada sábado Marcelo renovava a esperança que de aquele seria o dia especial. O dia em que ele teria a sorte de ser escolhido por uma garota, com alguma característica que ele achasse interessante. Sua mão transpirava e o coração disparava só de imaginar. Tinha medo de não saber o que fazer, da garota perceber a sua inexperiência. Usava aquele perfume, presente de Natal de seu padrinho, apenas para sair à noite. Economizava para que não acabasse logo, mas usava quando tinha alguma ocasião especial.
Quando o primeiro beijo aconteceu – e ele me confessou que tinha sido o primeiro – aquele frasco de perfume já havia acabado. Marcelo era estagiário em uma loja de informática no período depois da escola e tinha juntado dinheiro para escolher o seu cheiro. E foi o cheiro escolhido que atraiu a morena de lábios vermelhos, quatro anos mais velha, que lhe ensinou não só a beijar aos dezoito anos.
Os anos se passaram e ele ganhou dinheiro dando cursos de informática para iniciantes, depois montou sua própria loja de produtos de tecnologia e de manutenção de computadores. Mais adiante, viu na ineficiência da banda larga a oportunidade de oferecer serviço de internet em de alta velocidade. Cobriu o bairro que cresceu de fibra ótica, depois a cidade toda.
Hoje ele leva uma vida típica de empresário, mas mantem a mesma timidez e simplicidade. Ironicamente, Marcelo está muito melhor do que aqueles que se gabavam de ser “pegadores”, o chamavam de nerd e aplicavam um pescotapa na nuca quando passavam por ele no corredor da escola. Casou-se com Débora, a segunda mulher de sua vida, e tiveram dois meninos.
Mesmo com tanta mudança, Marcelo mantem o ritual do perfume. A função e a frequência são diferentes daquelas. Todo dia de manhã escolhe entre meia dúzia de perfumes importados o que usará naquele dia. Com as responsabilidades de sua vida profissional e familiar, Marcelo me confessou na última vez que estivemos em sua casa que tem a sensação de que mata alguns leões por dia. Agora e função do perfume é manter a disposição diante dos desafios diários. Marcelo se apronta hoje para o trabalho como se preparava para sair no sábado. O perfume ainda é a esperança de que tudo vai dar certo naquele dia. O perfume é sua proteção, o perfume é sua única superstição. Ele espera que a fragrância espante os problemas, os empecilhos e os obstáculos.
Na adolescência Marcelo passava seu único perfume para tentar atrair a sorte. Na vida adulta, Marcelo passa um dos seus perfumes como repelente de azar.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Sorte daquele que tem um ritual para manter viva a esperança. O ritual é a disciplina da espera de quem alcança.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 23/08/2014, Edição Nº 1319.

sábado, 9 de agosto de 2014

Meu Pai e O Seu Sax

Arte de Augusto Amato Neto


Tenho a sorte de ter um pai músico. Minha infância foi embalada por uma coleção de discos de vinil com clássicos do jazz e do blues e pelo som dos seus saxofones, o tenor e o soprano.
Em casa, rolavam alguns dos ensaios. Os meus ensaios preferidos eram os do meu pai com o Kiko Zamarian de noite no quarto de som, cômodo da casa com uma estante de ferro que ocupa toda a parede e que abriga seus discos numerados e catalogados, cada um em um saco plástico transparente. Prateleiras que abrigam seus aparelhos de som e caixas acústicas, onde ele guarda, na parte de baixo com portas, seus saxofones e sua intocável caixa de ferramentas – aquela que eu sempre soube onde ele escondia as chaves e que ele sempre soube que eu usava e tentava parecer que não tinha usado.
Ali tinha um sofá cheio de almofadas, em que meu pai e o Kiko sentavam na ponta para ensaiar. Eu chegava de mansinho, passava por trás do meu pai e deitava no meio das almofadas. Foram as melhores músicas de dormir que uma infância poderia ter. Ao vivo, dentro de casa, meus sonhos como plateia. Não gostava quando o som parava, o silêncio voltava e quando eu ouvia o som dos fechos de metal dos cases dos instrumentos.
À noite ou aos finais de semana, meu pai recebia em casa um casal apaixonado com casamento marcado. Para complementar a renda familiar ele tocava sax em casamentos. O primeiro desafio era conciliar o gosto do casal com o seu bom gosto musical. Eliminar músicas bregas ou clichês do Kenny G, sem causar descontentamento nos contratantes. Se fosse necessário, ele tirava a música no sax para agradar a noiva no seu dia especial.
E quando chegava o grande dia, lá ia eu acompanhar meu pai, às vezes o Kiko também tocava violão, às vezes ele segurava sozinho a trilha sonora da cerimônia inteira. Me lembro do frio na barriga que sentia ao esperar a hora certa da música começar, eu não sabia qual era, mas ele acertava a hora exata e mandava seus improvisos. Aliás, a sua grande qualidade como saxofonista é improvisar e o som parecer ensaiado de tanto que encaixa no contexto.
Eu assistia a reação da família e dos convidados lá daquele mezanino que tem nas igrejas. Via a cerimônia de cima, mas achava que a benção do casamento era dada também pelo meu pai e pelo som forte e emocionado de seu saxofone.
A única coisa que eu não gostava eram das noitadas que eu ainda não conseguia acompanhar. Quando eles faziam shows em bares da região e eu ia junto, não conseguia aproveitar porque era muito pequeno. Logo já me dava sono e eu ia pro carro dormir. Queria que essa fase tivesse ido até a minha adolescência para que eu pudesse ter aproveitado mais.

UM CAFÉ E A CONTA!
| Pela minha formação musical, sertanejo universitário não consegue tirar o diploma.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 09/08/2014, Edição Nº 1317.

sábado, 19 de julho de 2014

O Que Ninguém Vê

Arte de Weberson Santiago


Onde eu vejo um problema, alguém vê a solução. E o outro enxerga o fim do mundo.
Onde eu vejo a amizade, alguém vê o interesse. E o outro vê que bons relacionamentos são uma via de mão dupla.
Onde alguém vê uma pequena divergência, eu vejo a semente do conflito. E o outro vê o início de uma negociação onde cada um precisará ceder um pouco.
No entardecer em que eu vejo a angústia, alguém vê a sensação de dever cumprido. E o outro vê que as pendências nunca chegam ao fim.
Onde eu vejo a fome, alguém vê a miséria. E o outro vê a possibilidade de dividir o que se tem.
Onde eu vejo a bagunça, alguém vê a possibilidade de encontrar tudo o que precisa. E o outro vê na desordem o efeito colateral da produtividade.
Onde eu vejo a dificuldade de um idoso, alguém vê com pena. E o outro vê a oportunidade de exercitar a gentileza.
Onde eu vejo um pássaro sentado no fio, o artista vê uma bela fotografia. E o músico enxerga uma partitura cheia de notas.
Onde eu vejo preguiça, alguém vê acomodação. E o outro vê a falta de alguém que reconheça e incentive.
Onde eu vejo o medo de decepcionar, alguém vê a vontade de agradar os outros. E o outro vê uma pontinha de coragem de deixar tudo isso de lado.
Onde eu vejo persistência, alguém vê teimosia. E o outro vê perda de tempo.
Onde alguém vê deficiência, eu vejo a necessidade de apoio. E o outro vê a superação das limitações no tempo em que a pessoa é capaz de se superar.
Onde eu vejo cem oportunidades, alguém se vê sem oportunidades. E enquanto um aproveita a oportunidade, o outro trava com tantas possibilidades.
O que eu vejo é o que eu me permito enxergar. O que alguém vê depende do que viam os modelos com os quais ele convivia. E o que o outro vê é o que a história de vida dele o ensinou a ver.
E no final, tudo se resume a um ponto de vista sobre algo que é possível ser visto sobre diversos pontos de vista.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Se o ponto de vista é condicionado ao lugar de onde se vê, devemos exercitar a mudança de lugar para enxergar de outro ponto. E não é que a coisa muda?

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 19/07/2014, Edição Nº 1313.