sábado, 24 de setembro de 2011

Perdas e Ganhos


Arte de Weberson Santiago



Eu falo e perco a oportunidade de ficar quieto. Sou notado e perco a chance de passar batido. Quando eu ganho um dilema, eu perco a paz.

Eu ganho uma crônica quando perco uma folha em branco. Perco a linha para descobrir outros caminhos que me levam até o mesmo lugar. Coloco um ponto para ganhar um fim.

Eu uso uma interrogação para perder a dúvida. Boto uma vírgula para ganhar um folego. Perco as reticências para ganhar uma exclamação.

Eu perco a memória para ganhar um esquecimento. Guardo uma foto para não perder a lembrança. Armazeno um fato para preencher uma lacuna.

Resgato uma invenção para deixar o tédio. Perco um tempo para receber um sorriso. Faço uma careta para abafar o aborrecimento.

Quem ganha muito dinheiro perde a medida. Quem perde muito dinheiro ganha a culpa. Quem vive para ganhar não tem tempo para gastar. 

Eu perco a pontaria para acertar em outro alvo. Deixo o medo para manter minha coragem a salvo.  Perco o fôlego para ganhar uma emoção. Perco o foco para conquistar a imaginação.

Quem perde o chão pode cair no inferno. Quem tira o pé do chão pode voar no céu. Quem perde a realidade ganha loucura.

Eu perco a verdade para omitir um sentimento. Ganho uma mentira para eliminar a desconfiança. Abandono a sinceridade para ganhar aceitação.

Quem ganha um amor perde o medo do presente. Quem perde os ciúmes ganha a incerteza do futuro.  Quem perde um amor ganha a solidão.

Eu perco a pose para ganhar conforto. Perco a calma para ganhar a irritação. Perco a credibilidade para ganhar a descrença.

Quem perde o trabalho ganha o desemprego. Quem ganha um emprego perde o sossego. Quem perde a motivação ganha o desinteresse. Quem perde a preguiça ganha a produtividade.

Eu perco o apetite para ganhar a insatisfação. Perco a fome para omitir um não. Quando a fome ganha, eu perco a forma. Quando eu perco o controle, eu ganho peso.

Quem ganha um problema perde o sono. Quem perde a hora ganha o atraso. Quem perde a noite ganha a fadiga no dia seguinte.

Um casal ganha um filho para perder a liberdade. Um casal perde a liberdade para ganhar uma família. Um filho ganha um pai para perder o abandono. Um filho ganha uma mãe para aprender o que é colo.

Uma mãe perde um filho para ganhar um anjo. Um filho perde um pai para ganhar mais responsabilidade. 
Um filho perde uma mãe para ganhar uma santa que interceda nas suas orações.

Quem perde a vida ganha uma existência além da morte. Quem escapa da morte ganha uma segunda vida. 
Quem ganha uma vida ou perde com a morte quer entender o significado.

Só querer ganhar é perder o juízo. Só enxergar o que se perde é o mesmo que não ter sentido. Eu me perco para me reencontrar. Eu ganho de mim mesmo para me superar.

UM CAFÉ E A CONTA!
| Toda perda é o avesso de um ganho. Todo ganho é o verso de uma perda.


Publicado no Jornal Democratacoluna Crônicas de Padaria

Publicado no Caderno Cultura, p. 3, 24/09/2011, Edição Nº 1166.




sábado, 17 de setembro de 2011

Amizade Não Tem Idade

Augusto Amato (Tino), 91 anos



O meu avô é o meu melhor amigo.
Recentemente tenho tido o prazer de conviver diariamente com o pai do meu pai e, neste tempo, descobri um amigo de infância. Eu não acompanhei a infância dele, mas ele acompanha a minha vida desde que eu nasci. E mesmo que eu não tenha participado dos seus primeiros sessenta e quatro anos de vida, tenho tido o privilégio de saber o que ele viveu nestes anos e de dividir todas as suas aventuras. A grande diferença nos números da idade não atrapalha a parceria, mas incentiva a troca de experiências.
Chego a me confundir sobre quem sente o peso da idade. Enquanto eu estou sempre sobrecarregado com a rotina, ele esbanja disposição. Acorda todos os dias as seis da manhã e não sai do quarto sem estender os lençóis. Não deixa a empregada arrumar a cama. Faz questão de estabelecer a ordem nos primeiros comportamentos do dia. Se é no sono que registramos nossas memórias, nada como preparar a cama para as novas lembranças com a confiança de quem chegará ao final de mais um dia produtivo.
Eu tenho buscado aprender as lições contidas nas entrelinhas das páginas de sua história. Admiro como ele busca no cumprimento de todas as suas regras um estilo único, como ele consegue o aprimoramento através do método que ele cria para fazer todas as coisas, desde as mais simples. Preserva um espaço para o trabalho na rotina diária, como o faz desde moleque. Não por isso pensa apenas em si mesmo. É membro de algumas entidades sociais e religiosas e não perde as reuniões em hipótese nenhuma. Foi observando a forma que ele leva a vida que eu revi minha busca pela máxima atividade possível, o que eu julgava inteligente.
Inteligente é a maneira com que ele lida com as suas próprias emoções. Parece que ele faz amizade com suas dúvidas e dilemas. Se adapta com rapidez inclusive com o que não vai de encontro às suas expectativas. Embora seja descendente de italianos, tem paciência de oriental. Pratica Yoga há mais de quarenta anos e dificilmente se deixa abalar mais do que o necessário pelos trancos e barrancos da vida. Meu avô Tino é uma espécie de mentor da experiência vivida, um sábio que não cansa de repetir as histórias de sua vida porque sabe que sua trajetória tem muito a ensinar para quem as ouve. Ninguém é capaz de fazer uma narrativa como ele. Suas crônicas faladas se destacam nos grupos que frequenta, com os familiares e até já fizeram sucesso na televisão, quando ele falava semanalmente sobre economia e terminava sua coluna com “Tenho dito!”, como eu termino minhas crônicas de padaria pedindo “um café e a conta!”.
Seu otimismo implícito o torna uma boa companhia para qualquer programa. Temos nossos encontros agendados para os almoços. Conferenciamos o passado, debatemos o presente e especulamos o futuro. Se a paciência é um dos seus segredos, a longevidade é devida aos hábitos na mesa. Desde que eu me conheço por gente ele não sabe comer com pressa. Enquanto ele ainda está na salada, eu já estou devorando a sobremesa. Termino antes por mal hábito, mas aproveito o costume para puxar mais um papo.
Outro lado de sua maneira de levar a vida é a jovialidade com que ele encara seus desafios. Para meu avô não tem tempo ruim. Acontece que o excesso de espírito jovem acaba, de vez em quando, em rebeldia. Como dirigir na estrada contra toda a família, atitude que eu admito ter dificuldade para reprimir toda vez que ele volta inteiro. Muitas vezes pegou o carro escondido para ir a Ribeirão Preto para levar a minha avó. Ela o protegia, guardava o segredo de suas aventuras adolescentes, mas não piscava o olho no trajeto. Ela sabia das suas ousadias.
O que aconteceu numa destas viagens às escondidas ele me confidenciou dia destes. Em determinado trecho da estrada, a faixa contínua dividia a pista de mão dupla e identificava a ultrapassagem como proibida. Ele deu seta para se deslocar até a frente de um caminhão quando minha avó, atenta, interpelou:
― Tino, você não vai passar o carro aqui, vai, maridinho?
― Rosa, eu estou vendo que não vem carro nenhum do outro lado! – respondeu, levando o carro para o lado do caminhão.
― Não está vendo que é proibido? Olha a faixa! – brava numa tentativa frustrada de impedi-lo.
Assim que ultrapassou o caminhão, meu avô deu de cara com um carro da polícia no acostamento. O policial fez sinal para que ele parasse e disse:
― O senhor fez uma ultrapassagem em local proibido. Terei de multá-lo!
― Eu vi que não vinha ninguém no sentido oposto e não reparei na faixa – defendeu-se.
Minha avó, brava com a falta de prudência, não se conteve:
― Eu bem que falei para ele não ultrapassar, mas sabe como é... Ele não me ouviu! Apontei a faixa, disse para esperar, mas ele não quis. Pode passar a multa, seu guarda! Quem sabe assim ele aprende a não ser tão teimoso!
O policial não conseguiu manter a postura na abordagem e esboçou um sorriso. Vendo o preço que ele pagaria no restante do caminho e talvez nas próximas viagens, achou que multa era irrelevante e mandou que prosseguissem a viagem.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Permanecer próximo das pessoas queridas é uma via de mão dupla. Ensinamos e aprendemos a chegar a algum lugar.


Publicado no Jornal Democratacoluna Crônicas de Padaria

Publicado no Caderno Cultura, p. 3, 17/09/2011, Edição Nº 1165.


sábado, 10 de setembro de 2011

Marcas de Tinta


Arte de Weberson Santiago



Uma das minhas manias é a do desenho e da pintura.
Na escola costumava dividir as páginas do caderno, reservando uma parte de cada folha para minhas anotações em forma de rabisco. Não registrava as explicações da professora em palavras, desenhava o que eu entendia. Achava o espaço na página um desperdício quando os escritos não ocupavam toda a extensão da linha. Se sobrava um espaço, cabia um desenho.
A mania não ficava apenas na escola, boa parte do meu tempo livre em casa era gasto nos papéis. Na contramão da infância, ao invés de me dependurar na goiabeira, desenhava como eu via a árvore. Esperava o aniversário para ver se ganhava um papel diferente ou uma nova caixa de lápis. Logo avancei do desenho para a pintura.
Minhas aventuras no mundo das tintas tinham suas consequências. A cada semana, quando minha mãe chegava do trabalho, eu tinha manchado mais uma toalha do seu enxoval. Ela esperava perder seus jogos felpudos com as iniciais do casal bordadas pelo uso e ficava brava com as manchas permanentes. Naquela época não havia tira-manchas efervescente.
Ela apelava para a “Sebastiana Quebra Galho”, um manual com segredos para resolver os problemas comuns à maioria das donas de casa em um tempo em que não se podia recorrer ao Google. Não havia receita mágica que tirasse a tinta a óleo da toalha. Minha preferência eram as toalhas pequenas que compunham os jogos de antigamente. Eram menores que as de rosto e eram perfeitas para tirar o excesso de tinta dos pinceis. Custaram as toalhas de minha mãe, mas foi assim que eu desenvolvi a minha criatividade.
Como educar é passar adiante as coisas boas que aprendemos na vida, resolvi ensinar o que é a pintura pra Anelise. Comprei um painel de vinte por vinte centímetros planejando aquela que seria a primeira obra de arte da pequena.
No sábado, quando ela fez o convite para brincar, disse que havia preparado uma atividade diferente. Vamos pintar! - disse. Ela se empolgou. Separei uma dúzia de tintas de diversas cores, peguei três pinceis e um perfex, para prevenir a preservação das toalhas. Enquanto eu separava o material, Anelise tomou a iniciativa de buscar uma cadeira para pôr ao lado da sua. Como todo bom aprendiz, demonstrou disposição a aprender.
Ensinei que ela deveria usar uma cor de cada vez e que, enquanto ela escolhesse a próxima cor, eu lavaria o pincel. A primeira lição seria livre, sem nenhum desenho definido. Me segurei para não fazer por ela aquilo que ela achava complicado, pois é aí que está o valor de uma nova atividade. A descoberta e a superação das dificuldades. A dela foi manusear o pincel pela primeira vez, mas depois da metade já havia percebido que o vai e vem das cerdas era mais eficiente que o movimento circular para cobrir o branco e que quando a tinta acabava de um lado, bastava virar o pincel e usar a tinta que ficava do outro.
Ia mostrando onde os excessos se acumulavam na tela e apontava onde o branco do fundo ainda aparecia. Ela se incomodava quando a mão ou o braço se sujavam de tinta e eu a acalmava dizendo que depois a gente iria lavar. Durante todo processo, ela perguntava se estava ficando bonito. Queria um incentivo para continuar. Como fazia pela primeira vez, a avaliação tinha de vir do outro.
Anelise se envolveu tanto que, quando cobriu toda a tela com as cores vivas e alegres que escolheu, queria pintar tudo de novo por cima. Aí eu tive de contê-la. Disse que se pintasse mais, iria cobrir as cores bonitas que havia usado. Sugeri que chamássemos a sua mãe para ver como tinha ficado. A Natália achou lindo. Eu também. Sua obra abstrata tinha uma harmonia de cores.
E diante da tela em branco ela experimentou a responsabilidade e a liberdade de cobrir com as cores, de experimentar um novo comportamento, o da pincelada, com a ajuda e a possibilidade de aprovação da sua família. Ela entendeu que produzir e criar custa tempo e disposição, que faz sobrar bagunça e sujeira, mas vale a pena. A primeira coisa que ela perguntou quando acordou no domingo foi se a tinta já havia secado. Fomos ver e ela se certificou que estava seco colocando a mão na tela. Confiante com o resultado, ela emendou a pergunta:
Qual parede a gente vai colocar?

UM CAFÉ E A CONTA!
| O pincel se lambuza da tinta para percorrer a tela. O pintor se suja de tinta para ir além do que é visível na vida.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria

Publicado no Caderno Cultura, p. 3, 10/09/2011, Edição Nº 1164.


sábado, 3 de setembro de 2011

Efeitos do Defeito

Arte de Weberson Santiago



Insistimos em acreditar que insinuação sexy com direito a cruzada de pernas, olhada fulminante ou piscada são maneiras de sugestão, enquanto o que seduz é a imperfeição. A grande arma de sedução é o defeito. Uma mania que soa como convite. Que apela para descobrir de perto, que incita a revirar o defeito por todos os lados e confiar na sua repetição.

Tenho um amigo que se apaixonou quando assistiu uma mulher fazendo as unhas no meio do expediente. Disse que ela era tão graciosa que podia usar a reunião para cuidar de sua aparência, já que aquilo não era abuso para quem tem um dia corrido de trabalhos e estudos. Não adiantou o questionamento do lugar apropriado. Para ele, continuar mantendo sua beleza encantadora não precisava de lugar.

A mania começa a soar como persistência. O defeito que se repete passa a ser entendido como correspondência. É de um sorriso no rosto, de uma coincidência de datas, gostos e músicas que precisa a aproximação. Qualquer tipo de esbarrada é confirmação da existência do desejo. Sempre por vias tortas, numa estrada cheia de curvas, com destino incerto.

Descobri outro dia que meu caderno era cobiçado. Me ver escrevendo suscitava nela a pergunta: o que será que ele tanto escreve naquele caderno? Cada hora passada na frente dela com os olhos voltados para o bloco de papel evidenciava o quanto ela esperava a mania. Queria espiar as palavras para ver o mundo com os meus olhos. Descobrir minhas reticências, despistar algumas vírgulas. Estar escrita no amanhã. Ninguém ousa reprimir a iniciativa do diário, mas não suporta saber da existência do segredo.

Luiz Fernando fez todas as vontades de Valéria no casamento. Ele me confessou que gastou o dinheiro de uma viagem pra Europa na festa, para que ficasse do jeito que ela queria. Não fez valer sua vontade de usar um fraque porque ela não deixou. Acontece que não foi aí que Valéria confirmou que havia casado com seu grande amor. Na primeira semana morando juntos, Luiz Fernando saiu do trabalho e fez compras no supermercado. Quando chegou a hora do jantar, Valéria questionou Luiz se ele queria comer. Ele disse que não estava com fome e que ela poderia comer se quisesse. Valéria fez um purê de batatas e comeu com carne.

Enquanto ela tomava banho, começou a sentir um cheiro de comida. Ainda de roupão foi conferir o rastro fumegante pela casa e encontrou Luiz Fernando sentado na mesa diante de uma porção individual de lasanha. Valéria pegou pesado, fez um drama pelo planejamento do boicote em dividir o prato, sentar a mesa e bater um papo. Luiz ficou constrangido e ao mesmo tempo achou exagero, mas decidiu que não iria mais planejar uma refeição sozinho.

Valéria ficou chateada, foi deitar triste e ao mesmo tempo aliviada por ter apontado o personalismo do marido. Antes de dormir, enquanto pensava no ocorrido ela chegou a uma conclusão. Teve a certeza de que o casamento havia sido a coisa certa. Como em outras vezes, ele reconheceria o efeito de seu defeito. Afinal, não é de uma hora para outra que se aprende a pensar como dois. Isto se aprende na prática de uma vida a dois. Valéria passará o resto da vida esperando que o individualismo se repita para ela consertar o defeito. Luiz Fernando se monitorará para que seu defeito não seja um incitador de conflitos, até que deixe escapar implícito um pouquinho de egoísmo. Somos parte da mania do outro. Precisamos aprender a dar bom dia para o defeito para terminar a noite no abraço de edredom.

O amor recomeça quando se decide trocar de defeitos. Descobrir os novos ao invés de apontar os velhos. Brincamos com os efeitos do defeito. A obsessão de querer descobrir os novos defeitos para reencontrar as velhas qualidades.

UM CAFÉ E A CONTA!

| Aquele que vive implicando com um defeito já não vive sem a sua repetição.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria

Capa do Caderno Cultura, 03/09/2011, Edição Nº 1163