sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

O Pai Que Era Noel Até no Nome

Arte de Weberson Santiago



Minha amiga Lilian me contou que estava com dificuldade de montar sua árvore de Natal. Este ano, ela perdeu de forma rápida e inesperada o pai, Seu Manoel. Ele era seu grande amigo, um pai extremamente carinhoso o ano todo. Mas no Natal, ele se superava. Desde que a Lilian era pequena, Seu Manoel escrevia cartas e cartões como se fosse o Papai Noel para todos os membros da família e inclusive para si mesmo, lhes fazendo acreditar, ano a ano, na magia do Natal. Ela me mostrou a pilha de envelopes outro dia. De: Papai Noel. Para: Lilian. Me chamou a atenção que em um ano ele colocou o nome dela inteiro no envelope, mas em outro ele colocou o apelido que ele usava com ela desde pequena, Tutt. Observei que numa delas o destinatário eram a Lilian e o Daniel, o marido dela. Ele continuou sendo o Papai Noel mesmo depois que ela se casou. Além dos cartões individuais, a família recebia um cartão musical em que havia uma estrela como o nome dele ao centro e os nomes de cada familiar em volta.

Este será o primeiro natal da Lilian sem ele, sem o abraço de seu Pai Noel, e ela está bastante chateada com isso. Tão chateada que se recusava a montar a sua árvore de Natal. O primeiro ano quando perdemos alguém que amamos é realmente muito difícil. Em cada data comemorativa somos obrigados a encarar a ausência onde gostaríamos de encontrar a presença.

Quem não se conformou com a recusa em montar a árvore foi a Luísa, a filha dela. É tradição na família da Lilian montar a árvore no dia 11/11, quando é o aniversário do cunhado Ricardo, e ela enfeita a casa da família com a árvore para a reunião. Luísa começou a cobrar a mãe depois que o aniversário passou e nada dela montar a árvore. Novembro terminou e dezembro começou, e a Luísa insistia para que a mãe aceitasse montar a árvore.

Insistiu tanto que a Lilian aceitou. Ela cedeu porque não achava justo que a sua tristeza deixasse o Natal de sua filha sem aquilo que justamente fez tanta diferença na sua história. Ela sabia que seria difícil, mas também sabia que precisava manter vivos o espírito do Natal e o espírito natalino do Seu Manoel. Foi a Lilian pegar a árvore e os enfeites para um nó apertar a sua garganta.

Ela explicou para a Luísa que os laços, que eram de um tecido fino e estavam amassados, precisariam ser dasamarrotados. E com uma cortina de lágrimas escorrendo de seus olhos, a Lilian foi desamassando e entregando o laço para a Luísa dependurar. Sem dizer uma palavra sequer, Luísa pegava o laço, enxugava as lágrimas da mãe com as mãos para que ela desamassasse o próximo. E assim a Luísa fez até que a árvore foi toda montada.

A Lilian me confessou que desde que ela a havia comprado, nunca sua árvore tinha ficado tão bonita quanto dessa vez. A dor realmente pode ser transformada em algo bonito. Lágrimas são como uma água benta que descortina os olhos para que eles possam admirar o que a vida ainda tem de belo.

Luísa foi sábia ao insistir. Fez a mãe encarar a dor da perda e, na sabedoria inocente de uma criança, fez com que sua mãe consiguisse dar alguns passos na direção de aceitar o que aconteceu e superar o fato de que não terá o seu Papai Noel presente fisicamente neste Natal.

Para a Liliam, Papai Noel existiu. Com a maturidade, ela descobriu que ele não morava no Polo Norte, mas no quarto ao lado, depois numa casa por perto. Difícil é aceitar que agora o Papai Manoel mora no céu.

Luísa aprendeu com o avô Manoel, que o Natal é época de trocar carinho, de retribuir afeto, de dar colo para quem nos deu colo. Essa é a grande lição deixada pelo pelo Avô Noel e que não pode morrer.

  UM CAFÉ E A CONTA!
| Algumas pessoas tem o privilégio de ter um Papai Noel ou uma Mamãe Noela o ano inteiro.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois,17/12/2016, Edição Nº 1438.

sábado, 3 de dezembro de 2016

Desabafo em Tempos de Crise

Arte de Weberson Santiago



Tenho olhado para os lados e me deparado com coisas desagradáveis de se ver. A machete que relata uma tragédia em destaque no jornal, logo cedo, no chão da garagem. Tento não me abater com o fato de que a humanidade não deu certo.

Dali há pouco, assisto uma cena de humilhação de uma pessoa com um funcionário na frente de um monte de clientes. Fico com raiva porque o funcionário havia me atendido bem, ainda que tenha cometido pequenas falhas. A falha é o que faz de nós humanos, penso. Abordo o humilhado e digo que gostei de seu serviço, para ver se vou embora menos incomodado. O estrago tinha sido feito e eu, feito o que estava ao meu alcance.

Transitando de carro pela cidade no fim da tarde, me deparo com motoristas agitados, apressados e impacientes. O tráfego parecia um surto coletivo. Pessoas bravas, fugindo, correndo. Como animais fugindo de uma presa, sem estar sendo de fato perseguidos por algo visível. Sentindo-se armados, fortes e poderosos com o veículo guiado sob o domínio de suas mãos. Jogando seus carros em quem bem entendem, colando o seu carro na traseira do mais lento que está a sua frente. Exilo-me na calma da direção defensiva, pensando que deveria mandar uma mensagem a mulher dizendo para se cuidar no trajeto de volta para casa.

A sensação que eu tenho é que nunca foi tão difícil não se abater pelas dificuldades. Por mais que meu olhar esteja treinado para enxergar o oposto de tudo o que eu relatei nas linhas acima, parece que as dificuldades tem se multiplicado. O que tem acontecido sem trégua.

Eu continuo contemplando o que é belo, mas o que é feio e sujo grita por atenção. Eu percebo que existe bonança mesmo em períodos de tempestade ou de seca, mas a garganta tem sentido demais as mudanças bruscas de tempo.

Sim, eu enxergo o lado bom da crise e eu acho bom que a corrupção venha a tona para quem sabe diminuir de frequência. Mas que tá difícil carregar o peso das consequências de tudo isso, tá.

Afinal, quem paga o preço somos todos nós que, nos desdobramos mais um pouco, arregaçamos a manga mais um pouco, aceitamos carregar mais um pouco de peso de trabalhos e de preocupações em nossos ombros, ao mesmo tempo que aprendemos a carregar mais vento em nossos bolsos.

A gente se dá mais e recebe menos. Por isso, vive melhor quem espera menos em troca de se doar. Vive melhor quem aguenta ficar calejado de enfrentar dificuldades para não experimentar o sabor da desistência. Vive melhor quem não se entrega e que tem fé que dias melhores virão.

  UM CAFÉ E A CONTA!
| Um mundo em crise é um lugar onde as pessoas entram em crise. Qual é a sua?
Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 03/12/2016, Edição Nº 1436.

sábado, 19 de novembro de 2016

Estupidez Desnecessária

Arte de Weberson Santiago



Todo mundo já assistiu uma cena de grosseria desnecessária de alguém aperreado. Uma reação fora de contexto, desproporcional a situação de que se apresentava.  Uma série de pequenas situações em que me deparei com um maldisposto me fizeram pensar neste tipo de reação.
Outro dia, enquanto viajava e passava por uma cidade pequena, passei mal e tive de procurar um pronto socorro. Não havia fila nenhuma e o atendente da recepção foi bastante simpático. Não posso dizer o mesmo do médico, que ao ouvir meus sintomas, parecia querer me culpar por ter ficado doente ao invés de me tratar. Para não me mandar embora sem tomar nada, receitou analgésico. Quando fui encaminhado à enfermeira, ela começou a gritar porque o médico sempre receita medicamentos de uso caseiro para tomar ali e depois o restante da cartela fica na enfermaria até passar da data de validade.
A impressão que me deu é que nenhum dos dois queria estar trabalhando no pronto-socorro naquele momento. Ele queria que pessoas como eu não tivessem ficado doente. Ela queria que pessoas como eu não precisassem ser medicadas.
Eu respondi a tudo com calma, já pensando onde poderia, de fato, ser atendido. Senti muita pena de quem depende única e exclusivamente daquele atendimento e não tem outra opção. Este é um exemplo, mas todo mundo já viu um atendente sendo grosseiro com alguém que faz um pedido em uma loja ou supermercado.
Talvez estas pessoas tenham razões para estarem mal-humoradas, mas existe uma série de outras pessoas que também tem razões para ser avinagrados e não o fazem. Achar a vida um fardo não dá o direito a ninguém sair distribuindo patadas por aí.
Quem faz isso, é como se cobrasse das outras pessoas o custo de viver. Se eu estivesse num restaurante e fizesse uma escolha ruim de prato, que não agrade meu paladar, seria justo que eu mandasse a conta para a mesa do lado, que parece estar saboreando a sua escolha?
É exatamente isso que o azoretado faz. Cobra dos outros o motivo de suas próprias frustrações.
Como eu não gosto de cultivar o hábito de olhar apenas o lado ruim das coisas, existem pessoas que quando estão embezerradas, não se dão o direito de atazanar a vida alheia, muito pelo contrário, dispõe-se a dar o seu melhor ainda que tenham colhido o pior.
Para mim, o remédio para lidar com um amolado é responder com gentileza, ao invés de rebater com agressividade. Até porque se não admiro sua atitude, não devo faze igual.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Um limão azedo se resolve com algumas colheradas de açúcar.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 19/11/2016, Edição Nº 1434.

sábado, 5 de novembro de 2016

Uma Padaria Dentro de Casa

Arte de Weberson Santiago



Um dia eu percebi que queria uma casa cheia. Neste dia descobri que um de meus sonhos era formar uma família.
A Natália e a Anelise me fizeram colocar em prática aquilo que um dia eu sonhei. Não queria ser só mais um marido, não gostava da ideia de ser só mais um pai. Eu não queria ser aquele tipo de homem que chega em casa e estaciona no sofá, na frente da televisão, alheio a tudo o que acontece no seu lar. Eu queria mais, queria ser presente e participar. E naquele momento eu passei a ser uma padaria dentro de casa.
Ser uma padaria dentro de casa é preservar uma parte da sua disposição para a sua família, mesmo que tenha um milhão de coisas lhe consumindo fora de casa.
Ser uma padaria dentro de casa é ser pão: alimentar o corpo e as ideias, nutrir de criatividade e inspiração as minhas meninas.
Ser uma padaria dentro de casa é ser pãe: colocar limite com a autoridade de pai quando é necessário e dar colo de mãe quando é possível.
Ser uma padaria dentro de casa é surpreender no cardápio: apresentar meus programas preferidos e voltar com elas para os lugares que eu gostei de viajar.
Ser uma padaria dentro de casa é não esquecer as datas especiais do relacionamento e estar sempre pronto para organizar a festinha de aniversário da pequena ou do pequeno a cada ano que passa. E fazer isso não porque vai ouvir um monte se esqueceu a data ou não ajudou a preparar a festa, mas porque realmente se importa em comemorar o desenvolvimento.
Ser uma padaria dentro de casa é fazer coisas simples fora das datas especiais. Escrever recados inesperados e espalhar bilhetes em lugares improváveis – como na lista de compras do supermercado.
Ser uma padaria dentro de casa é dividir tarefas domésticas para não sobrecarregar o parceiro. É revezar o levar e o buscar o filho na escola, participar das reuniões de pais sempre que possível e nunca deixar de prestigiar suas apresentações importantes.
Não faço tudo isso por obrigação. Faço tudo isso porque é o que acho que um marido e um pai devem fazer. E relembrando tudo isso, percebo que consegui ser aquilo que eu gostaria de ser: uma padaria dentro de casa. Desde colocar o pão de cada dia na mesa, até não deixar esvaziar a prateleira dos sonhos.
Como sou humano e cheio de defeitos, nossa vida não foi feita apenas de situações felizes e especiais. Ser uma padaria dentro de casa também é errar, falhar, se cansar e se esgotar, ainda que por um momento. Mas ser uma padaria dentro de casa é agir assim que você percebeu a falha.
Ser uma padaria dentro de casa é corrigir seus erros, pedir desculpas, buscar mudar para preservar o relacionamento vivo. Ser uma padaria dentro de casa é encarar o desleixo e retomar o que você deixou de lado. Ser uma padaria dentro de casa é evitar agir impulsivamente, sem medir as consequências, para não pôr em risco tudo o que foi construído em família.
Quando as situações da vida me fizerem desanimar, buscarei na nossa padaria o alimento para continuar. Por mais que em dias atípicos a minha receita desande, manterei sempre a disposição para fazer outra massa. E que nossa casa siga cheia de bocas para provarem dos meus pães: as nossas, de nossos familiares e de nossos amigos. Assim eu continuarei tendo motivos para tocar essa nossa padaria. Assim, Natália e Anelise, continuarei sempre sendo esta padaria dentro de casa.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Uma vida feliz é a que a gente se doa para o que lhe faz sentido se dedicar.
Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 05/11/2016, Edição Nº 1432.

sábado, 22 de outubro de 2016

Amor? Ei, querido? Vem cá, bem!

Arte de Weberson Santiago



Como uma palavra que carregou tanto significado pode se tornar banalizada? É o que vivo a me perguntar, inquieto e inconformado.
Tome como primeiro exemplo a palavra amor. Amor é uma palavra que tem tanto significado que no meu dicionário é definida de vinte formas diferentes ou complementares. Só que, com tanto significado, por poder ser utilizada em tantos contextos onde cabem sentimentos entre as pessoas, acabou por ser esvaziada de afeto.
Chama-se qualquer um de amor. Usa-se “amor” como pronome à exaustão. Não estranhe se, na fila do banco, perceber que a pessoa que estava a sua frente venha a chamar o gerente do banco de “amor”. E não pense que se trata da mulher dele, nem da amante. É o excesso de intimidade. É uma sedução indecente.
Tenho dó dos românticos de antigamente, que buscavam viver o amor em sua essência, em profundidade e em todo o seu significado. Devem estar se revirando nos túmulos. Amor virou palavra sem cor, sem sabor, sem cheiro.
Como o “Oi, tudo bem?”, seguido do “Tudo e você?”. Ninguém quer saber, de fato, se o outro está bem. “Oi, tudo bem?” quer dizer “Percebi que você existe e estou lhe mostrando isso.” “Tudo e você?” quer dizer “Também notei sua presença.” Nada além disso. Duvida? Diante da primeira pergunta, diga que não está nada bem e comece a contar. O outro tentará se desvencilhar de suas queixas o mais rápido possível.
E o “querida” ou “querido”? Esse tratamento, de tão batido, acabou ficando com o significado oposto. Desconfie de quem te chama de querido. Ele ou ela não te querem de verdade. Eles querem que você pense que eles lhe querem bem, para que você faça algo ou concorde com algo. E nada além. Chamar de querido é ludibriar utilizando-se da fachada de ternura.
Quando alguém chama o outro de querido, usa-o como um subterfúgio para estabelecer intimidade rapidamente. Um exemplo desse uso é o que Tom Jobim fez na letra de “Querida”. Ele chama de “querida” a mulher que ele não soube valorizar quando a tinha e repete o “querida” tentando dissuadi-la a dar bola a ele novamente, ainda que assuma ser um amor bandido e fingido.
Como último exemplo trago o “bem”. Nada é mais irônico do que o “bem” encaixado no começo, meio ou fim da frase. “E aí, bem?”, imagine acompanhado do sorriso amarelo. “Coloca ali em cima, bem!”. “Não, bem! Não é assim que era pra fazer...”.
O uso de expressões de afeto com a função de apaziguar o impacto, de aproximar-se com interesses e para agradar o outro é algo que me incomoda. E o que me incomoda nesta questão é que, se o interesse não é claro e aberto, as pessoas podem ser enganadas e levadas a agir sem perceber que o estão fazendo desta forma.
Observe mais. Desconfie, mas sem se tornar persecutório.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Se a atitude esconde alguma segunda intenção, não é bom se deixar relaxar no relacionamento. Quando perceber, já terá sido levado.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 08/10/2016, Edição Nº 1430.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Águas Passadas Movem Moinhos

Arte de Weberson Santiago



Se você prestar bem a atenção, verá que águas passadas movem moinhos. Sabe quando você reconhece que enfrenta a mesma situação repetidamente em diferentes momentos da sua vida?

Estou falando de quando a vida trás a tona uma mesma maneira de agir, se relacionar, de enfrentar os dilemas e os conflitos. Isto acontece porque temos padrões de comportamento e, por vezes, insistimos na mesma forma de lidar com as coisas, ainda que existam outras formas mais apropriadas. E é aí que eu considero que águas passadas podem mover moinhos.

No curso do rio da vida, minhas águas seguem o caminho e por vezes atravessam o mesmo moinho. Eu bem que gostaria que as águas saíssem da nascente e fossem sempre em frente, até que um dia moressem no mar. Só que eu descobri que no percurso da vida é preciso vencer alguns impedimentos através da constatação de sua repetição.

Se o obstáculo for um tronco, tudo é simples. As águas passam por cima, ou por baixo, ou pelo lado. Mas se o empecilho for uma pedra dura, é preciso aguentar a dor de cabeça pra bater na pedra até que ela fure.

Ao ser lançada como um raio, a verdade trás nuvens negras e carregadas. Quando as tempestades se anunciam, tenho medo do poder das minhas águas. Sem muito esforço me vejo como o responsável pelo desastre. As águas que empurram os peixes e movem os moinhos podem levar consigo montanhas com casas. O mundo é mais catastrófico do que a gente gostaria que fosse e isso depende diretamente de nossas escolhas. Parece difícil aceitar como lidamos com o incontrolável e com o imprevisível. Mas muito mais difícil e constatar que não estamos conseguindo mudar o que está sob nosso próprio controle.

As tempestades caem e as nuvens vão se esvaindo, se dissipando em chuva até que se aviste um primeiro pedaço do horizonte. Em meio aos primeiros raios de sol, percebo que a água que caiu fez o rio transbordar. É a consequência do excesso. Descubro pelas águas que caíram que sou exagerado, dramático e enfático demais quando passo pelo temporal.

Quando o rio começa a baixar, ficam as poças. As poças são as cicatrizes que restaram do transbordar do rio da vida. As águas que não fazem mais parte da corredeira e estão represadas na solidão, isoladas à míngua. Só restará aguentar o calor do sol e evaporar.

Não importa que águas passadas movam os mesmos moinhos, se foi alterada pela experiência de passar por cada caminho. Se aprendeu conforme se transformou nos seus estados característicos. Ora! A água passada que move um moinho novamente não e a mesma água.

Quando eu estiver no estado líquido, que escorra por onde o vento e a terra me levarem. Que eu não derrame meus sonhos e possa ser contido quando precisar que alguém me represe. Quando o calor me transformar em vapor, que eu não me perca pela atmosfera, não me esqueça das raízes que me absorveram e me levaram ao alto da mais verdejante folha. Que no estado gasoso não seja apenas como o ar quente, que só aceita ficar por cima. E ao passar pela estação das nuvens, que desembarque o medo e embarque a inspiração. Quando minhas águas congelarem, que possa ser sólido, mas não gélido.  

Aproveitei as águas passadas para lavar a alma e agora estou na espreita de descobrir novos e velhos moinhos.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| O que você pode aprender com as suas repetições?

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 08/10/2016, Edição Nº 1428.

sábado, 24 de setembro de 2016

O Dia Em Que Tentaram Assassinar a Gentileza na Ponte Euclides da Cunha

Arte de Weberson Santiago



 Foi pelas redes sociais que eu vi o que aconteceu. Uma amiga fotografou e cena e postou. Um motorista havia entrado na ponte Euclides da Cunha ao mesmo tempo que os carros do outro lado. Mesmo não tendo ninguém atrás dele, recusava-se a dar ré e pedia que todos os outros saíssem.

Ninguém mudou o carro de lugar. Os gritos proferidos pelas janelas e os dedos em riste visíveis pelo vidro esquentaram os ânimos. Portas se abriram e a discussão continuou do lado de fora dos carros. A briga foi ficando feia e o trânsito pela ponte impedido por dez minutos.

A confusão na ponte Euclides da Cunha me incomodou profundamente. Sem dúvida a ponte é um patrimônio histórico de valor inestimável e de beleza inquestionável, na firmeza de suas colunas metálicas e na robustez de suas bases de pedra. Com o recente restauro, retomou a cor prateada que lhe permite ornar melhor com a paisagem e recebeu iluminação noturna.

A despeito de tudo isso, na minha opinião o maior legado da ponte Euclides da Cunha não é o progresso que ela trouxe para a cidade ou o fato de ter vencido as correntezas do Rio Pardo e se perenizado no tempo. Para mim, a maior herança deixada por Euclides da Cunha pela sua ponte é o exercício diário de gentileza que ele impôs sobre quem a usa.

Diz a regra, nunca explicitada em placa ou em campanha educativa, mas perpetrada através das gerações que: “Ao chegar na entrada da ponte e avistar algum veículo parado do outro lado, dê a passagem e espere a sua vez”.

A impressão que eu tenho, com o episódio da briga, é que a sociedade andou para trás na arte do relacionamento humano. Cultivamos demais o individualismo e nos esquecemos da importância do altruísmo. Colocamos nosso próprio umbigo num pedestal e esquecemos do significado da empatia.

Falo na primeira pessoa no plural, pois confesso que já acelerei para alcançar o fim da fila para não ter de esperar, ignorando a regra número um que regula o uso da ponte. Ainda assim, jamais seria capaz de brigar se desse de cara com a carreata no meio da ponte. Tomado pela vergonha de não ter sabido esperar, tentaria sumir por um dos vãos da ponte levando comigo o meu carro.

Espero que a gentileza, quando foi jogada da ponte, não tenha se estatelado numa pedra do Rio Pardo. Espero também que, ao estabacar-se de modo espetaculoso nas águas do Pardo, não tenha morrido e que careça apenas de cuidados médicos e tratamentos. O espero porque no dia em que formos obrigados a instalar um semáforo na ponte pela incapacidade de convivermos e nos controlarmos por si próprios, aí a gentileza não irá aguentar. Morrerá num infarto fulminante.

  UM CAFÉ E A CONTA!
| É necessário treinar a gentileza para que ela seja mais forte do que a tendência de pensar em si mesmo em primeiro lugar.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 24/09/2016, Edição Nº 1426.

sábado, 3 de setembro de 2016

Eu Não Sei Chorar

Arte de Weberson Santiago



Eu não sei chorar.
Eu não sei chorar porque fico pensando no que os outros vão pensar.
Não choro por amor porque tenho medo de me avaliarem como fraco. Não choro de raiva para não parecer descontrolado.
Não choro de saudade porque não quero demonstrar fraqueza. Não choro de alegria porque não quero que pensem que eu sou bobo.
Eu não sei chorar porque quero demonstrar que consigo controlar as minhas emoções.
Seguro o máximo que eu posso. Se meu copo estiver quase cheio, como diz a famosa comparação, e algum evento o faz querer transbordar, eu tento me segurar para não chorar.
Minha situação é o oposto da seca que andou assolando as represas no Estado de São Paulo. Meu estoque de lágrimas encheria a Cantareira.
Ainda assim eu me recuso a abrir as comportas do choro. Ainda assim eu prefiro represar as minhas emoções. Ainda assim eu prefiro conter as lágrimas.
Às vezes, quando me distraio, uma lágrima escapa quando fico comovido. Pelo motivo mais banal. Uma reportagem sobre a vida simples e feliz no campo que passa na televisão no domingo de manhã. Acho que de tanto impedir o choro, ele acaba por encontrar uma brecha quando eu relaxo. Se tem alguém perto, tento disfarçar. Viro para o lado ou levanto para pegar um copo de água.
Verter lágrimas me é tão vergonhoso que eu escondo até do meu chuveiro. Tento enganá-lo misturando uma ou outra lágrima com os fios de água que despencam dele. Tento provar que quem está chorando é o chuveiro e não eu.
Eu não sei chorar, mas se choro, ninguém pode ficar sabendo. É como canta o Arnaldo Antunes na música As Estrelas Sabem: “Eu não sei chorar, só me comover. Quase a me afogar, sem você saber”.
Eu não sei chorar e penso que quem chora quer chamar a atenção. Não gosto de chorar porque acho infantil querer colo quando não se é mais criança.
Eu não sei chorar porque me incomodo com a dependência. Acho que não chorar é a prova da independência. Eu não sei chorar porque eu não sei me abrir.
Eu não sei chorar e me sinto sufocado pelas minhas emoções. Eu queria saber chorar. Lágrimas em excesso não afogam, lágrimas caídas fazem respirar aliviado.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Quem passa a infância sendo punido por chorar, passa o resto da vida não sabendo o que fazer com as suas emoções.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 10/09/2016, Edição Nº 1424.

sábado, 20 de agosto de 2016

Dar Um Tempo


Arte de Weberson Santiago



Todo relacionamento que se preze tem em seu histórico um conjunto de pequenos motivos para divergir, para brigar, ou para reclamar. Não me causa espanto que um casal que enfrenta um conflito venha a discutir, a se descontrolar, a agredir verbalmente o parceiro. O que eu realmente não entendo é um casal que decide, em conjunto, dar um tempo. Dar um tempo no sentido de suspender o relacionamento temporariamente, com ou sem afastamento físico.
Dar um tempo é optar pelas reticências onde não deveria ter uma vírgula ou então onde se deveria colocar um ponto final. Dar um tempo é adiar a tomada de decisão: se vai ou racha. É preferir a interrogação ao invés da exclamação.
Dar um tempo é a pior maneira que lidar com um problema na relação. Dar um tempo é fugir de enfrentar o conflito.
Dar um tempo é uma atitude que prova a incapacidade de um casal de entrar em consenso. Dar um tempo é aceitar que nenhum dos parceiros está disposto a abrir mão de seu ponto de vista.
Dar um tempo é a melhor maneira de se criar a privação. Opta-se pelo afastamento e perde-se os beijos, os abraços, os amassos, a atenção e a presença.
A privação vai se tornando maior e cada vez mais incômoda. Até que leva a atitudes desesperadas de ter tudo o que foi perdido de volta. Mas só até que se fique menos privado novamente. Ou até que os mesmos motivos anteriores levem a um novo conflito, semelhante ao anterior.
O problema é que o que gerou o conflito não foi encarado, não foi resolvido. Dar um tempo cria uma condição que desvia o foco do que precisa ser cuidado.
Dar um tempo é testar o óbvio. Se não tivessem afinidades, não teriam se aproximado. Se não tivessem química, não teriam mantido uma relação. O que motiva um conflito não é o que um casal tem de bom, o que leva a um conflito são os problemas que surgem no relacionamento.
Para mim, quem escolhe dar um tempo na relação deveria, na verdade, dar um tempo de si mesmo.
Lutar pela relação, se ainda houver amor, é munir-se de ânimo para enfrentar o caminho mais difícil. Fugir da decisão e dar um tempo é optar pelo caminho mais fácil.
Pôr um ponto final na relação, se já está fracassada, ou enfrentar o conflito é coragem. Dar um tempo é covardia.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Relacionamentos: escolhidos ou impostos impõem desafios a serem superados.
Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 20/08/2016, Edição Nº 1421.

sábado, 6 de agosto de 2016

A Primeira Pipa

Foto de Augusto Amato Neto



Anelise chegou da escola preocupada naquela segunda-feira que antecedia o Dia dos Pais. No caminho da escola para casa dividiu com a Natália a sua preocupação. Contou que a professora havia lhe dado apenas um papel para desenhar o pai e que seria entregue no dia da comemoração de dia dos pais da escola.
Ela considera que tem dois pais: o pai biológico e eu, o de consideração por estar com a Natália desde que ela era pequenininha. Mesmo que a Natália tenha enviado o valor referente ao pagamento dos dois pais cerca de dois meses antes do ocorrido, a professora não aceitou a alegação da Anelise:
- Mas eu tenho dois pais! – disse ela.
- É que só pode um! – respondeu a professora.
Anelise estava preocupada pois havia convidado os dois e um de nós ficaria sem cartão. Para acalmá-la emergencialmente enquanto a Natália e eu pensávamos em como iríamos resolver o problema, disse que poderia ficar sem, que eu não me importaria de que só o pai Alex recebesse o desenho. Não adiantou muito, ela continuou insatisfeita.
Há cinco anos estudando na mesma escola, sempre vamos os dois na festa de dia dos pais e nunca tínhamos passado por um problema deste tipo. A Natália escreveu um bilhete muito educado para a professora, mesmo que tenhamos nos sentido agredidos pela desconsideração de que nossa família é assim e funciona assim, buscando conviver em harmonia por conta da pequena.
Embora tenhamos ficado incomodados também pela frieza com que a reinvindicação da Anelise de mais um papel para desenhar o outro pai tenha sido recebida, resolvemos ser práticos e objetivos. Natália escreveu que havia mandado o dinheiro e pediu se ela poderia fazer o favor de entregar outro papel para a Anelise pintar. Na terça, a professora lhe entregou outro cartão depois de confirmar o pagamento na secretaria. A Anelise ficou tão feliz que levou uma bolinha de gude de sua coleção de presente no dia seguinte para a sua professora.
Então, chegou o sábado e a comemoração do Dia dos Pais da escola. Nos encontramos na quadra da escola às dez da manhã. Cada pai deveria trazer um brinquedo para interagir com o filho e cada pai ganhou um kit piquenique para ele e a criança. A maioria trouxe uma bola. Eu, que nunca havia empinado uma pipa na infância, providenciei uma. Assisti um tutorial no youtube sobre como fazer o cabresto e o fiz, mas não me atentei e fiz no lado contrário, verso branco do papel. O Alex corrigiu. O professor de Educação Física fez um alongamento e saímos em direção ao clube, onde poderíamos brincar.
Fomos conversando. Anelise era a única criança da escola acompanhada por dois pais. Embora muitas crianças da escola vivam a mesma coisa que a Anelise, apenas um acompanhava a criança: ou o pai biológico ou o atual marido da mãe. A Anelise quis comer assim que chegou.
Tivemos a sorte do clima ter sido favorável: um belo dia de sol e vento suficiente para empinar a pipa. Como eu nunca havia soltado uma, me coloquei na posição de aprendiz e deixei que o Alex ensinasse a técnica.
A felicidade da Ane foi a melhor parte do passeio. Como ela ficou radiante, na primeira vez que soltou uma pipa, em ver a sua lá no alto e de estar acompanhada por duas pessoas que ela ama. O passeio estava tão agradável que ela quis comer mais, sentamos no quiosque de novo e ficamos jogando conversa fora. Quando olhamos ao redor, eramos só nós três. A comemoração terminava onze e meia e já era quase meio dia.
No fim, tudo deu certo. Percebi que vale a pena deixar o orgulho, a vergonha e o medo de lado para fazer o que é melhor para a Anelise. A primeira pipa, a gente nunca esquece.

UM CAFÉ E A CONTA!
| A escola ainda tem dificuldade de aceitar o diferente, mas com jeito, o diferente cabe.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 06/08/2016, Edição Nº 1419.


sábado, 23 de julho de 2016

A Guerra do Lençol

Arte de Weberson Santiago



Acordamos discutindo por conta do lençol. Eu lhe acusava de ter puxado e me deixado descoberto. Ela me culpava pelo mesmo.
A verdade é que passamos a noite como num cabo de guerra. Eu puxava de cá e ela puxava de lá. O vento frio entrava pelas frestas da veneziana e a satisfação não podia ser mútua. Se um estivesse coberto, o outro ficava desprotegido.
Nessa disputa pela coberta, pelo edredom ou pelo lençol ninguém se reconhece como o culpado. Você acorda, acende a luz do celular e espia o outro enrolado no lençol como se estivesse em um casulo, mas ao acordar e jogar na cara a cena vista, ele nega. É a mesma história que acontece com o ronco. No casamento, ninguém admite que puxa o lençol e ninguém assume que ronca.
No namoro ninguém passa frio, mesmo se tiver uma toalha de rosto como cobertor. No casamento, um lençol king size trezentos fios acetinado não é capaz de aquecer o casal ao mesmo tempo. Parece até que o lençol vai encolhendo durante a noite, conforme a temperatura cai.
Eu, o prático da casa, propus que adotássemos o costume de cada um usar o seu lençol. Pronto, acabava de incendiar a discussão. A mulher me acusou de ser individualista e antirromântico pela minha desistência precoce em dividir a coberta. Acusou-me de aceitar facilmente a quebra da cumplicidade.
Cobrou-me que lutasse pela continuidade do funcionamento como casal. Lembrou-me que ela é a única que vive a esticar o lençol pela manhã e por todas as vezes que ele fica embolado. Eu não fui capaz de contra argumentar.
Logo fiquei convencido de que a desistência é o caminho mais fácil, mas que desistir nem sempre é o melhor caminho.
Foi quando me lembrei daquelas noites em que eu estava extremamente cansado e incapaz de reagir ao frio nos pés. Me veio à cabeça o prazer que eu tive quando senti que ela havia percebido que eu estava descoberto e feito a delicadeza de me cobrir.
O nosso erro não estava em dormir com um lençol. O nosso erro estava em se preocupar mais consigo próprio do que com o outro. Ao invés de ficar vigilante para quando me faltasse a coberta, deveria ficar atento para quando eu posso cobri-la. E ela o mesmo. Não iremos aumentar a nossa preocupação, apenas mudar o foco com o que se preocupar. Não é tão complicado assim.
Quando sua maior preocupação for a de cobrir a si mesmo, o que você precisa mesmo é redescobrir a gentileza.
UM CAFÉ E A CONTA!
| O maior impedimento para se estabelecer uma relação de parceria é o individualismo.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 23/07/2016, Edição Nº 1417.