sábado, 24 de janeiro de 2015

Camarotização

Arte de Weberson Santiago


Camarotização é um neologismo que define a tendência a manter segregados os diferentes estratos sociais. Se a palavra camarotização é nova, o fenômeno social de divisão de classes está presente em toda a história da humanidade.
Por volta do século V d.C., com a queda do Império Romano houve uma série de migrações na região Orientas e Ocidental da Europa. Os povos migrantes ficaram conhecidos como bárbaros. Bárbaro, no grego antigo, significava estrangeiro. Para os romanos e, posteriormente, para outros povos, eram os que pertenciam a outra raça ou civilização e falavam outra língua que não a deles. Os bárbaros eram considerados invasores das cidades, que vinham competir com o povo, interferir na cultura, trazendo concepções políticas diferentes. Os povos bárbaros foram, portanto, invasores dos camarotes do império romano. Este movimento de invasão fez com que nobres deixassem as cidades e fundassem os feudos em áreas rurais. Os feudos também eram uma organização camarotizada e, principalmente, determinista. Não era possível nascer entre os servos e ganhar uma grana para frequentar o camarote mais adiante. Quando os servos atravessavam a ponte para o manso senhorial, tinham que pagar pedágio, exceto quando para lá se dirigiam a fim de cuidar das terras do Senhor Feudal. Seria o equivalente a seguinte condição na atualidade: para frequentar o camarote é preciso ter dinheiro suficiente para comprar a pulseirinha, exceto se você for um dos que trabalham no camarote.
No português contemporâneo, o bárbaro significa rude e grosseiro. Podemos considerar que toda pessoa que pertence ao lugar onde ocupam a maioria das pessoas – o povo – e consegue ter acesso a um lugar privilegiado – o camarote – passa a ser vista como um invasor – alguém que representa outro grupo, com costumes diferentes dos frequentadores do camarote – e vem a sofrer algum tipo de rejeição – mínima ou máxima – dentro do camarote. Assim como os povos invasores do Império Romano incomodaram as classes mais altas, alguém que se eleva socialmente na atualidade e tem acesso a um camarote incomoda os indivíduos já pertencentes ao grupo seleto. Desta questão podemos concluir que: [1] um camarote só tem valor se existe uma área externa onde estão os que têm menos privilégios; [2] não pode existir lugar para todos no camarote porque se todos estão no camarote, o lugar deixa de representar o acesso a regalias diferenciadas e [3] quem está fora quer entrar e quem está dentro não quer que todos entrem.
Este contexto Europeu desembarcou no Brasil com os colonizadores portugueses. A diferenciação de classes esteve presente na dominação dos indígenas, no regime da escravidão e na história da Igreja em nosso país. As igrejas coloniais seculares ainda preservam em sua estrutura física áreas isoladas nas laterais do altar onde se colocavam os nobres nas celebrações religiosas. Sim, há muitos séculos atrás na Igreja já existiam os camarotes. Os cinemas e teatros também tinham camarotes.
Nossa sociedade democrática e capitalista está calcada na divisão de classes, ou seja, precisa de alguma forma de camarotização para continuar funcionando. Determinada pelas classes em constante movimento, a ascensão financeira permite acesso a determinados camarotes (restaurantes, viagens, serviços), que são inacessíveis à classe inferior. Entretanto, em relação a uma classe acima, há algum tipo de cerceamento no acesso a camarotes mais caros. A separação física de classes sociais vem tornando novas formas na atualidade, predominando um caráter individualista na tentativa de obtenção de acesso aos camarotes. Cada um por si e a sorte está lançada para todos.
Na teoria, ninguém é superior e ninguém é inferior em relação aos outros seres-humanos. Na prática, todo mundo faz força para se elevar, assim como também se esforça eventualmente para diminuir outrem. Difícil é reverter as consequências de tantos séculos de camarotização e imaginar uma descamarotização se tornando realidade, sobretudo quando não existe iniciativa grupal nesta direção.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Você é o selfie que você tira no camarote que você frequenta.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 24/01/2015, Edição Nº 1341.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Eternamente Namorados

Arte de Weberson Santiago


Estava no primeiro ano da faculdade, aos 17 anos, quando peguei uma carona partindo de Mococa rumo a São Paulo com o meu tio-avô Roberto Braga e sua esposa, a tia Irai.
Depois de muita conversa, ative-me a leitura de textos passados pelos professores da faculdade no banco de trás. A tia Irai pegou no sono. Numa de minhas pausas para pensar no que o texto dizia, presenciei uma cena que me marcou.
Tio Roberto tocou a perna da tia Irai e afagou-lhe a coxa enquanto ela dormia. Era como se suas mãos quisessem conversar, mas como ela dormia, o tato funcionava como uma resposta. A cena se repetiu mais adiante na estrada, seguida de um olhar generoso com um sorriso no rosto dele para ela dormindo. Percebi que ele ficava feliz em encontra-la ao lado, ainda que ela estivesse cochilando.
O carinho pode ser comum entre jovens apaixonados, mas parece faltar aos casais com mais tempo de união. Fui testemunha ocular do que eu julgo que está em falta. Eles já haviam passado dos 35 anos de casados, mas conservavam o carinho de quando eram apenas namorados.
Quando vi aquela cena, tive uma única certeza: “É isso que eu quero para minha vida”, pensei. Naquele momento eu era inexperiente, nunca havia namorado. Mal sabia beijar direito, mas já definia o que queria como maturidade no meu casamento.
Qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade reverencia um casal de mãos dadas ou demonstrando carinho um para com o outro. Eu admiro a preservação do amor a despeito do tamanho da história. Admiro a persistência da gentileza, a insistência do afeto.
Numa das psicoterapias que fiz, antes de mim era atendido um casal de velhos, certamente com mais de oitenta anos cada um. Eu achava um barato os dois investirem tempo e dinheiro para pensar na relação, para cuidar dos sentimentos.
Tio Roberto e tia Irai vão descobrir agora, lendo esta crônica, que me serviram de inspiração. Ela já estava escrita quando vi seus filhos comemorando na rede social os cinquenta anos de casamento durante esta semana, quando minha crônica será publicada. Nada mais oportuno. Aquele gesto simples despertou minha admiração. E este amor preservado pelos dois sem dúvida fez e faz a diferença para a vida dos filhos e dos netos. É uma família bonita, que esbanja amor.
Que eu possa cumprir a promessa, que em primeiro lugar fiz a mim mesmo e mais adiante a Natália, de ser sempre namorado dentro do meu casamento, até o fim de nossas vidas.

UM CAFÉ E A CONTA!
| O que se repete todos os dias é o que constrói o futuro.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois,10/01/2015, Edição Nº 1339.