sábado, 22 de março de 2014

Já Foi Mais Fácil Ser Poeta


Arte de Weberson Santiago


Já foi mais fácil ser poeta quando a vida não era tão complicada. O mundo parece que não funciona direito e ninguém tem tempo de perceber. Vivo com a sensação que as coisas deveriam ser ao contrário do que são.
Já foi mais fácil ser poeta quando a vida não era cheia de filas. Supermercado, banco, correio, lotérica, caixa de loja de departamentos, banheiro de festa. Não dá pra criar versos e estrofes durante a espera em nenhuma dessas situações.
Já foi mais fácil ser poeta quando não havia a sensação de que você é explorado. Pare e pense. Trabalhamos o máximo que podemos para conquistar apenas o mínimo. E sempre têm alguém que tem mais e alguém que tem menos oportunidades do que a gente. Já foi mais fácil ser poeta quando não gastávamos boa parte do que ganhamos para pagar impostos ou juros. Não é preciso muito esforço para perceber que viver fica mais caro a cada dia e que passaremos o resto da vida tentando dar conta de uma conta cada vez mais alta. Não tem quem mantenha a inspiração com uma saída maior do que a entrada.
Já foi mais fácil ser poeta numa época em que a superficialidade era exceção. Hoje as relações não tem profundidade. Assim como uma conversa se resume a expressões como “nossa que calor!” ou “será que chove hoje?”, uma noite de sexo termina com “qual é o seu nome, mesmo?”. A superficialidade é para as relações como a falta de vocabulário para o poeta.
Já foi mais fácil ser poeta quando as pessoas não tinham tanta pressa. Correr demais pode ser uma forma de perder tempo. Ser tomado pela pressa é uma maneira de arrumar problemas. Já foi mais fácil ser poeta quando o tempo andava, não corria. O poeta precisa de tempo para olhar os detalhes.
Já foi mais fácil ser poeta quando ser jovem ainda era ser sonhador. Hoje ser jovem é não ter objetivos e metas, achar tudo sem graça e ser escravo dos prazeres imediatistas. O imediatismo quer a poesia pronta, mas não quer o trabalho de encarar a folha em branco.
Já foi mais fácil ser poeta quando a privação era maior e o esforço requerido para uma conquista também não era pouco. As vitórias eram mais saborosas. Sem esforço não se mantem a métrica nos versos.
Já foi mais fácil ser poeta quando o maior sonho de uma criança era ganhar uma bicicleta. Não há como ver poesia em um quarto cheio de brinquedos e tecnologias que perdem a graça facilmente. Desse jeito a graça da poesia acaba no meio.
Já foi mais fácil ser poeta quando viver não era ter de controlar sua alimentação para controlar seu corpo e sua aparência. Um alimento se torna vilão e depois é consagrado milagroso. Não se faz rima com o peso da culpa por ter comido um alimento proibido.
O poeta é um inconformado. Ser poeta é algo que precede a própria poesia. Ser poeta é enxergar a mesma coisa de um jeito diferente. É romper com a racionalidade usando o dom de embelezar a realidade, na tentativa de descrever, entender ou explicar sentimentos comuns e compartilhados pelas pessoas.
A poesia nasce quando o poeta escolhe viver ao invés de morrer com dureza a realidade. É, nunca foi fácil ser poeta. Não é fácil ser poeta, mas o poeta precisa da dificuldade.

UM CAFÉ E A CONTA!
| O que fazer quando a realidade parece caminhar para o pior? Faça poesia. Sofrer pode ser poético ao invés de ser patético.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 30/03/2014, Edição Nº 1297.


sábado, 8 de março de 2014

A Polêmica da Franja

Arte de Weberson Santiago



Se você é homem, um dia será vítima da polêmica da volta do salão de cabeleireiro. Se as mulheres têm o hábito da mudança do cabelo, mais cedo ou mais tarde o homem cai na discussão criada em cima dos comentários sobre o resultado. Nenhum barbudo, nem mesmo o mais sensível, será brilhante na avaliação em todas as idas dela ao cabeleireiro.
Natália sempre me surpreendeu. Trabalhava o dia todo, estudava à noite e estava sempre com a aparência impecável, como se tivesse passado o dia em um SPA. Tinha a sensação de ser um homem de sorte, já que cada vez que buzinava na porta da casa dela, ela saía na direção do meu carro como quem partia para a passarela, sendo que o desfile terminava em meus braços.
Passado o começo do namoro, passei a compartilhar os custos envolvidos em manter a aparência. Levava o tempo e o dinheiro dela, mas começou a tomar o meu tempo quando fui trocado pelo fim de tarde no cabeleireiro – leia-se 5 horas – ou quando passei a esperar um bom tempo entre a buzinada e a saída. Sem muito esforço, enchia-a de elogios e depois reclamava um pouco da espera. Ela só ouvia a primeira parte.
Não é o elogio ouvido, é a necessidade de saber que ela mudou para alguém além do espelho. Não vale o cabeleireiro. Não vale a manicure. Muito menos aquelas que também optaram pela mudança no salão. Tem que ser dito pelo namorado, marido, ficante ou amante. Na ausência destes, pode ser reconhecida pelo homem que passa na rua. Ela ignora a olhada e a cantada barata, mas sente que ganhou o dia.
Se é o marido ou o namorado, trata-se da prova de fogo para a sobrevivência do relacionamento. Dizem que é difícil dizer o sim no altar, mas o vestibular para medicina do casamento é a reação do homem quando ela chega do cabeleireiro. A mulher não aceita resposta incompleta, já que no vestibular não existe meio certo. E elas comentam, umas com as outras, o que registraram no gabarito de nossas respostas. Definem em conjunto os candidatos aprovados e os reprovados.
Na última vez que ela voltou do salão, foi logo abrindo o caderno da prova:
— E aí, o que achou do corte?
— Ficou bom, mas você ficou mais loira.
— Eu sabia que você não ia gostar.
— Mas eu gostei da cor, só acho que essa franja reta faz parecer que você usa uma peruca.
Ela emudeceu, fez cara feia, se emburrou e depois pareceu ter esquecido. Só pareceu, já que voltou ao assunto no dia seguinte:
— Vamos sair hoje?
— Sim, vamos!
— Vou me arrumar, pena que você não gostou do meu cabelo...
— Mas eu disse que não gostei?
— Não, só disse que está parecendo uma peruca!
— Se você quer saber, a maioria das mulheres gostaria de ter um cabelo como o seu.
— Mas eu fiz pra você...
— Achei que tinha feito porque gostava. Eu gosto do seu cabelo natural, loiro nas pontas e ondulado. Mas se você gosta dele liso e mais claro, sabe que eu te acho linda de qualquer jeito – disse enquanto já me via vencido a aprovar seja qual for a mudança da próxima vez.
Ela não se deu por vencida. Saiu do trabalho no dia seguinte com uma trança diferente. E quando eu disse que gostei, confessou que gastou metade do horário de almoço para a amiga fazer. Mudou a franja de lado, colocou a franja para trás e bagunçou tudo porque sabe que com menos que isso já chama a minha atenção. Eu consegui meu sossego quando ela conseguiu o que queria: ser vista.
Quinze dias depois estávamos em um casamento de uma grande amiga dela. Assistimos a uma longa cerimônia até chegar à festa. Quando fomos cumprimentar o casal, a noiva vira e diz para o noivo na nossa frente:
— Se um dia você disser que eu uso peruca, nosso casamento está acabado.
Com essa polêmica da franja, eu é que quase fiquei careca.


UM CAFÉ E A CONTA!
| Experimente não notar mudança no visual ou esqueça uma data importante e conheça a fúria da sua mulher.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, primeiro caderno, p. 2, 08/03/2014, Edição Nº 1292.