sábado, 30 de novembro de 2013

Uma Casa pra Chamar de Nossa

Arte de Weberson Santiago



É, meu bem, e não é que sobrevivemos ao tempo? Sobrevivemos às dúvidas, driblamos os medos e seguimos construindo a nossa história.

Dia destes, quando eu saía do trabalho, me peguei pensado em como é bom voltar pra casa. Mas que casa?
A nossa família é minha morada. É de onde eu saio e é para onde eu volto todos os dias.

Quantas pessoas buscam o que nós dois já encontramos? Alguém para morar. Um coração para ser seu lar. Um seio para me confortar. Um peito para você repousar.

Somos, ao mesmo tempo, porto seguro e navegantes. Somos, os dois, barcos à vela e terra firme. A nossa única certeza é o reencontro.

Agora que já temos um mundo abstrato de amor que nos uniu e nos mantém juntos, sinto que nos falta o que de mais concreto uma família pode ter. Uma casa.

Amar é solucionar um dilema para encontrar outro. Se antes o problema era a dúvida – será que um dia encontrarei meu grande amor? – hoje a questão é onde habitará a nossa união.

Não que a casa que alugamos não esteja boa para nós, mas o problema é que ela não é nossa. Amar é não se contentar com o provisório, quem ama busca o definitivo.

Quero fazer marcações da altura da Anelise atrás da porta conforme ela cresce sem me preocupar com o que vou fazer se a gente mudar de casa.

Eu quero encontrar o nosso pedaço de terra permanente para plantar uma muda e esperar ela virar árvore. Você quer encontrar um lugar para que nossos familiares e amigos possam ser de casa.

Quero vê-la despertar no amanhecer e abrir a janela com os cabelos cuidadosamente desarrumados, espiando o céu enquanto eu vejo seu corpo na contraluz sem mudar a cena de moldura.

E você poderá me ver espreguiçar na varanda da sala no domingo de manhã, se na nossa casa tiver uma varanda. E se não tiver varanda, pegando o jornal do dia na garagem.

A paciência não é minha melhor amiga. A pressa é meu animal de estimação, vive na minha cola, quando não entra na minha frente. Quero ver o telhado sobre as nossas cabeças, não quero acompanhar cada um dos tijolos sendo empilhados. Quero pra ontem.

Nossos alicerces são sólidos para construir um assobradado. Nossos valores são os mesmos. Se trocássemos nossos olhos, veríamos o mundo da mesma maneira. Já temos uma base suficiente.

Me pego sonhando com a nossa casa. Tiro os pés do chão. Vejo-me no futuro cantando pra você, dentro de nossa casa, aquele samba do Martinho da Vila: “Está em você o que o amor gerou. Ele vai nascer e há de ser sem dor. Ah! Eu hei de ver, você ninar e ele dormir. Hei de vê-lo andar, falar, cantar, sorrir.”

Mas como um sonho é feito de um dia após o outro, preciso conter a minha expectativa e trabalhar para isso. E você precisa seguir com seus compromissos para me ajudar a fazer este dia chegar. Então, prossigamos com nossa rotina atribulada, ela fará do nosso sonho uma realidade.

Quando eu acordo para trabalhar você ainda está dormindo. Quando você chega da faculdade, sou eu quem já fui dormir. Nossos desencontros calculados nos enchem de esperança de que um dia encontraremos uma casa para chamar de nossa.

UM CAFÉ E A CONTA!
| Quem casa não quer casa, quer um lar. Telhado é proteção, parede é carinho. Portas e janelas são pontes para a vida.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 30/11/2013, Edição Nº 1278. 

sábado, 16 de novembro de 2013

O Que Você é Meu?

Arte de Weberson Santiago



A segunda coisa que a Natália me contou, quando nos conhecemos, foi que tinha uma filha de dois anos (a primeira foi seu nome). Ela colocou como se qualquer possibilidade de intimidade partiria da aceitação da existência da Anelise. Logo de início precisei aceitar dividir a namorada. Tive de arrumar um lugar na minha vida para duas mulheres, sendo que eu procurava uma. Depois do estranhamento inicial (das duas partes, minha e da Ane), eu descobri as vantagens e os desafios de acompanhar o seu crescimento e ela descobriu que crescer em uma família dá segurança.

Após os quatro anos, Anelise começou a “fase dos porquês”, em que a criança tenta entender o mundo, quem ela é, como as coisas funcionam, que papel cada um tem na sua vida. E não é a toa que elas repetem tanto “por quê?”. É um mundo de coisas acontecendo o tempo todo, enquanto a criança tenta entendê-las. Nós assistimos ao improvável e ficamos responsáveis por explicar o inexplicável. E como uma criança compreende a complexidade? Com a simplicidade de sua capacidade de compreensão. Isto nos surpreende.

Nesta fase, Anelise começou a questionar qual era o meu papel na vida dela. Ela tem uma boa e frequente convivência com seu pai, o que fez com que ela tivesse a sensação de que não havia onde me encaixar em sua vida. A justificativa de que o relacionamento do seu pai com a Natália não deu certo pareceu não ter efeito nenhum para explicar a minha entrada.

Recorri a uma história familiar. Quando alguma situação de educação surge, sem muita reflexão recorremos aos métodos que usaram com a gente. Eu tenho uma irmã adotiva, a Sara, que chegou em nossa casa recém-nascida e que hoje é adolescente. Para explicar sua origem, meus pais contavam a história do castelo encantado onde os pais que queriam ter filhos buscavam uma. E a partir daí, essa filha se tornava filha do coração, e não da barriga, porque ela foi escolhida.

Fiz uma adaptação menos fantasiosa, na medida da inteligência da Anelise, para dizer que eu não sou seu pai, mas que meu amor é como se ela fosse minha filha e que, portanto, ela é minha filha do coração e eu seu pai do coração.

A partir de então ela passou a testar a metáfora. Quando estávamos só nós dois ela me chamava de pai, mas com uma entonação de teste. Como se ela estivesse chamando para ela mesma avaliar se cabia. Chegou a chamar na frente da Natália, mas com a mesma entonação. E morria de vergonha. Fazia como se estivesse brincando de casinha, de família. Quando algum desavisado se referia a mim como pai dela, a primeira coisa que fazia era esclarecer que eu não sou seu pai como se, sendo, inexistisse o outro.

Nesta história, o ponto mais crítico aconteceu quando nós três fomos morar juntos na mesma casa, quando ela estava quase completando cinco anos. A Anelise perdeu o lugar na cama ao lado da mãe e passou a ter que lidar comigo todos os dias, sem trégua. Foi um período de grande turbulência. Me rejeitou, não aceitava coisas que eu fazia há tempos, como levá-la na escola ou passar um tempo juntos. O dia mais difícil pra mim foi quando numa discussão em que ela enfrentava algumas regras que a Natália e eu colocamos, ela virou e me disse: “você não é meu pai!”.

Isso doeu, me senti rejeitado. Era como se ela pisasse em todo o carinho que eu havia lhe dado em três anos de convivência. Eu não consegui me calar, como outros padrastos quando ouvem essa frase. Respondi que não era mesmo e que eu não iria mais fazer as coisas pra ela. Na hora da raiva, respondi com a mesma imaturidade dela.

Tive dificuldade de digerir essa história. Precisei recuar um pouco para dar espaço para os incômodos dela e tempo para eu procurar uma nova maneira de exercer meu papel. Mas logo eu estava lá, nas brincadeiras ou ajudando na lição de casa, preparando algo pra ela comer.

Eu voltei atrás no que eu disse, continuei fazendo as coisas pra ela. Afinal, ela é a criança. Depois disso, passei a me preocupar menos com o título de pai e a curtir esses momentos em que exerço um papel de uma figura importante, acompanhando sua vida. Obviamente a ternura voltou ao seu nível anterior, das duas partes.

Na última noite em que ficamos juntos, enquanto fazíamos compras no supermercado ela me perguntou:

— Augusto, por que eu tenho vergonha de te chamar de pai? – assumindo o que me parecia óbvio.

— Não sei Ane, mas se um dia você tiver vontade de chamar, pode chamar. Eu não tenho vergonha de te chamar de filha.

O dia que ela entender que uma criança pode ter dois pais, que a existência de um não anula a possibilidade do outro ser presente, ela irá chamar. E mais importante do que chamar, é sentir.


 UM CAFÉ E A CONTA!
| Existe uma diferença entre sentir e expressar. Nem sempre expressamos o que sentimos. Nem sempre o que expressamos é o que sentimos.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, primeiro caderno, p. 2, 16/11/2013, Edição Nº 1276. 

sábado, 2 de novembro de 2013

Não Nado por Nada, Nado por Tudo Isso

Acrílico sobre painel de Augusto Amato 


Você já descobriu a sua atividade física preferida? Eu descobri.
A minha atividade preferida é a natação. Comecei a nadar quando criança, orientado por alguns professores. Não foi uma atividade constante em minha vida, mas já faz alguns anos que reservo um tempo da minha rotina para nadar.
Para a educação física, nadar é uma técnica. Movimentos corporais definidos pelo estilo de nado são repetidos para a travessia de um lado para o outro da piscina. Cada parte do corpo tem uma posição correta na intenção de evitar criar uma tensão desnecessária no deslocamento.
É difícil transformar em palavras o que me faz nadar. Vou ignorar a dificuldade e descrever esta minha paixão. Esta é a primeira lição que aprendi com a natação: coragem é o mesmo que ignorar as dificuldades.
Quando voltei a nadar na idade adulta, chegava morrendo após percorrer os 25 metros da piscina nadando crawl. Relatando isso ao Eduardo Cillo, meu amigo e grande psicólogo do esporte em num intervalo de aula da pós-graduação, Edu me recomendou dosar o ritmo. Foi quando eu descobri que nadar não é brigar com a água, é tentar deslizar sobre ela.
Só uma paixão pode ser capaz de me fazer acordar de madrugada e perambular até a raia quatro vezes por semana. Tem dias que tenho a sensação que rolo na cama e, ao invés de me esborrachar no chão, caio dentro da piscina.
A água é meu despertador. A piscina é meu chuveiro empoçado. As braçadas e as pernadas são o meu café da manhã. O mais surpreendente é que praticando com frequência não saio da água cansado, saio mais disposto. A natação é o meu antidepressivo.
Se você não gosta de pensar, não nade. É uma atividade individual. Ainda que a natação seja em turma ou equipe, com ou sem professor, passa-se a maior parte do tempo indo e vindo, sozinho. Se não consegue encarar seus próprios pensamentos, faça hidroginástica ou jogue bocha, entre para um time de basquete ou vôlei, jogue futebol. Não nade.
Durante o vai-e-vem na piscina eu processo meus pensamentos e sentimentos. Recordo os acontecimentos recentes que o excesso de afazeres não me permitiu entender, e vou pensando no que aconteceu. É como se eu retirasse os azulejos do fundo da piscina e recolocasse em outra ordem. Nadar é fazer um mosaico com os cacos das emoções.
A melhor maneira de processar os eventos cotidianos não é parando pra pensar. É pensar nadando, pensar andando, pensar dirigindo. Quem para pra pensar deixa a vida passar. Nunca despreze um pensamento súbito, independente do que esteja fazendo. Ele está pedindo atenção, querendo ser ao menos reconhecido. Deixe que ele volte na primeira brecha possível. Nadar é a minha brecha para dialogar comigo mesmo. A natação é meu solilóquio. Eu nado um quilômetro para que o diálogo solitário não seja interrompido.
E acredite, por volta dos 500 metros nadados, começa a emergir das águas uma incrível habilidade de resolver problemas. É quando eu acho uma saída para um dilema, tenho uma ideia de como resolver um impasse e exercito minha criatividade. Já escrevi uma crônica enquanto nadava. Nadar é meu exercício de brainstorm.
A Natália já me conheceu com essa paixão, por isso nunca criou caso por me ceder pra natação. Nunca foi capaz de implicar com o tempo gasto nos treinos, com mais uma atividade me tirando tempo de estar em nossa casa.
Já de cara foi obrigada a tolerar o cheiro de cloro que fica na pele. Não adianta tomar banho, passar hidratante e terminar com um perfume. O cheiro da natação é como o batom da amante que deixa marcas na gola. Não dá pra disfarçar.
Há um tempo atrás o clube fechou a piscina para reforma. Sem uma previsão exata de quando eu voltaria a nadar, entrei em desespero. Foi como uma crise de abstinência. Sentia que faltava algo para completar minha rotina. Eu sentia falta de nadar, a Natália do cheiro de cloro.
Quando ela me encontrava, percorria meu pescoço em busca de um cheiro que não existia mais. Foram quase duas semanas de embate com sua memória olfativa até uma nova habituação.
Até que um mês e meio depois a piscina foi reinaugurada. No primeiro dia que eu voltei a nadar, quando ela chegou em casa e me cumprimentou, a primeira pergunta que ela fez foi:
— Que cheiro é esse de água sanitária? Você fez faxina?
— Posso dizer que sim. Arrumei a bagunça dos seus pensamentos enquanto voltava a nadar.

UM CAFÉ E A CONTA!
| Prefiro um mergulho nos sentimentos do que boiar num mar de emoções. Nadar é o que mais me aproxima de voar.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, primeiro caderno, p. 2, 02/11/2013, Edição Nº 1274.