sábado, 26 de dezembro de 2015

Migalhas de Esperança

Arte de Weberson Santiago



Toda pessoa tem uma ou algumas manias de viagem. A minha é encontrar uma padaria próxima ao lugar onde ficarei hospedado. Assim que chega a confirmação da reserva do hotel, começo a procurar a padaria mais perto. Se tem mais de uma na redondeza, encaro o estabelecimento como um jurado de reality show de gastronomia para escolher a preferida. É como se só pudesse me sentir em casa na viagem quando encontrasse a padaria.
A outra mania é escrever na padaria. Já percebi que escrevo melhor no meio do burburinho. Sem contar que o movimento do lugar e as cenas que observo me fazem refletir e me inspiram. E são duas cenas que assisti numa padaria que me motivaram a dividir estas manias com você e a relatar o que eu vi.
Havia viajado para Paris, na França, para um congresso em que representaria o laboratório onde fiz o meu mestrado e apresentaria algumas pesquisas. A verba disponível era apenas para um representante e então viajei sozinho.
Diferentemente dos congressos brasileiros que tem programação intensa, o congresso francês começava às 9 horas e terminava às 15 horas. Ao final dos trabalhos, pegava o transporte de volta ao centro, onde fiquei hospedado. No caminho entre a estação e o hotel, havia uma Boulangerie pequena e muito charmosa. Eu escolhi uma mesa de canto na calçada como o meu lugar naquela padaria. E ali eu ligava meu notebook, falava com a família e os amigos, consultava o saldo no banco e contemplava a vista para a praça. Tudo isso enquanto eu tomava café, chocolate quente ou chá e experimentava alguma das delícias. O lugar era pequeno, mas a variedade de pães ficava exposta em cestas pelas paredes e os quitutes expostos nas geladeiras do balcão de atendimento. Permanecia lá até o pôr do sol e depois ia embora para o hotel.
Naquela semana, assisti uma variedade de turistas de diversas nacionalidades passarem pela Boulangerie, mas as duas cenas que me chamaram a atenção, por incrível que possa parecer, aconteceu com brasileiros.
Na primeira cena, vi um casal de aparentes quarenta anos. A mulher havia pedido uma torta e se irritou porque a torta se esfarelava e ela não conseguia comer. Se ela tentava garfar, a torta se partia e se colocava o pedaço no garfo, a torta não parava sob o talher. Ela reclamou tanto para o marido que ele comprou uma briga com a atendente. Eles xingaram o garçom em português para que ele não entendesse, reclamaram em francês que a torta estava mal feita, e depois deram risada do constrangimento do rapaz. Achei desnecessário tudo aquilo, ainda mais por um motivo tão pequeno, e fiquei com raiva pelo que eles fizeram com o atendente.
Dois dias depois, um senhor de aproximadamente setenta anos se sentou numa das mesas. Se ele não tivesse feito uma ligação e falado português com alguém, enquanto combinava alguma coisa, eu teria pensado que ele era francês. Supus que ele era um brasileiro que morava lá há bastante tempo. Ele pediu um pão doce. Notei que ele tinha um tremor nas mãos e, por isso, teve dificuldade para comer. Por duas vezes ele deixou um pedaço cair no chão. Quando isso aconteceu, colocou o talher no prato, abaixou-se e pegou o pedaço do chão, depositando-o sob um guardanapo na mesa. Quando terminou, deixou uma gorjeta para o atendente e levou o guardanapo como uma trouxinha embrulhando os restos embora.
Aquele dia era a véspera de meu retorno ao Brasil. Precisei ir embora mais cedo para arrumar as malas, já que meu voo de volta sairia logo na manhã seguinte. Paguei minha conta e fui embora. Na saída, avistei adiante aquele senhor com o guardanapo aberto na palma da mão, esfarelando os restos do seu bolo e jogando no chão para os pássaros na praça.
O que eu entendi com as duas situações? Que cada um escolhe o que fazer com as suas migalhas.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Há quem releve as limitações do outro, compreendendo-as. Há quem coloque a culpa de suas próprias limitações nos outros.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 26/12/2015, Edição Nº 1387.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Cultivar a Barba

Arte de Weberson Santiago


Resolvi cultivar a barba. Não, não deixei a barba crescer. O verbo que define a relação de um homem com a sua barba é cultivar. Deixar crescer é coisa da natureza. Cultivar é coisa de ser humano. Cultivar envolve a expectativa, o investimento, o cuidado e o resultado.
O que me fez pensar nisso foi uma necessidade que tenho, desde que me entendo por gente, de mudar a aparência de vez em quando. Eu admiro a fidelidade dos meus amigos que mantêm o mesmo corte de cabelo desde a infância, sobretudo por tê-lo preservado inclusive na adolescência. Mas para mim isso é monotonia. Já tem tanta coisa na vida que a gente não pode mudar.
Depois da decisão, consultei a mulher. Contei torcendo para que ela não me viesse com um contra. Ela estranhou a ideia inicialmente, disse que seu pensamento imediato foi “é coisa de velho” e se lembrou barbas sujas e malcuidadas. Começou a se acostumar com a novidade com o passar dos dias. A verdade é que eu joguei baixo e ela não resistiu ao perfume do pós-barba nos fios, que passei a usar diariamente. Então ela se tornou uma aliada na expectativa de como iria ficar e na defesa da experiência capilar no extremo oposto ao meu cocuruto.
Os amigos me apoiaram e, ao mesmo tempo, não quiseram ficar para trás. Eles resolveram deixar a barba ou o cavanhaque crescer. Foram eles que me fizeram descobrir um costume antigo e que vem conquistando novos adeptos com o aumento do número de barbudos: frequentar a barbearia.
Além de aparar e me ajudar a definir um formato bacana, descobri que a visita ao barbeiro é extremamente relaxante. A toalha quente com cheiro de eucalipto é a parte mais prazerosa. Só o narigão fica de fora para respirar, enquanto se relaxam os poros e se acalmam os ânimos. Sem contar a pincelada macia e refrescante da espuma, feita a partir da mistura entre o creme da bisnaga e a água, espalhada com o pincel com cerdas de crina de cavalo.
Sabia que iria me deparar com a reprovação do novo visual em algum momento. Foi numa situação inusitada. Assim que soube do falecimento do meu tio-avô, passei do velório para abraçar a tia e os primos. Como fui um dos primeiros a passar por lá, minha barba se tornou assunto do velório com a chegada da minha mãe, que até então não havia me revelado descontentamento. Estimulada pela concordância da ala conservadora da família, no dia seguinte ela veio: “Se eu te pedir uma coisa, você faz?”, usando todo o seu poder de mãe. “Se estiver ao meu alcance...”, respondi tentando me esquivar da pergunta-cilada. “Tira essa barba!”, disparou ela, citando quem havia achado a barba feia no velório. Posso dizer que fiquei incomodado com a reprovação, afinal palavra de mãe sempre tem um grande peso. Mas não pensei em voltar atrás porque estou satisfeito assim.
Só a cumplicidade masculina para vencer a implicância feminina. Relatando o ocorrido aos amigos, eles me contaram que também ouviram reclamações de mulheres de sua convivência, mas que não abriram mão da barba. O barbeiro, até para não perder o cliente, reafirmou que estou na moda e caprichou no serviço para alinhar os fios desgrenhados.
Minha mãe não se deu por satisfeita e quando atualizei minha foto do perfil no Facebook com a barba, liderou uma campanha, criando a hashtag #augustotiraabarba. E como toda opinião expressa na rede social, encontrou muita gente que a apoiasse e defendesse a cara limpa.  Eu fiquei bravo, me senti exposto e quando nos falamos pelo telefone, não perdi a chance de dizer que não achava certo uma mãe ficar reprovando a decisão de um filho publicamente. Ela entendeu e deu trégua. E a barba segue sendo cultivada.
Entendam mulheres, de uma vez por todas, que ir ao barbeiro é a única vez em que o homem fica feliz por ter uma navalha no seu pescoço.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Tudo o que você vier a ser, seja lá o que for, virá acompanhado de algum tipo de reprovação.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 12/12/2015, Edição Nº 1385.

sábado, 28 de novembro de 2015

A Viagem Que Não Fui

Arte de Weberson Santiago




Quando eu tinha oito anos, meu avô Augusto Amato – então com 72 anos – organizou uma viagem para Santos com todos os seus netos homens. Eram quatro: Alexandre (14 anos), Gutinho (12), meu irmão Caio (6) e eu.
Era uma tentativa de criar um “Clube do Bolinha” com os homens da família, mas a viagem foi marcada por uma série de apuros para o meu avô. E foi justamente o que saiu fora da programação o que fez a viagem ser engraçada e inesquecível.
Os primos mais velhos eram adolescentes e só queriam descer pra frente do prédio pra paquerar e não colaboravam em nada. Meu irmão Caio só gostava de misto quente e lasanha e meu avô havia programado sopa de ervilha – de saquinho – para alguns jantares. Quando estavam todos os primos, uns enchiam o saco dos outros e às vezes saía alguma briga. Meu avô que já era careca, perdeu mais alguns fios de cabelo naquela semana.
A trégua vinha quando ele armava o guarda-sol na praia e cada um fazia o que queria. Ele abria o jornal e tinha sua hora de sossego. Numa dessas situações, resolvi tomar um banho de mar e sentei onde a água pegava na minha barriga. A correnteza foi me levando para o lado e quando dei por mim não localizava mais o guarda-sol com meu avô embaixo e o jornal aberto. Era alta temporada, havia muita gente na praia. Localizei um salva-vidas, expliquei o que havia acontecido e ele pediu que eu descrevesse como era o guarda-sol. Fomos caminhando na praia até que eu avistei a família e o salva-vidas esperou de longe que eu chegasse até lá. Como meu avô continuava concentrado no jornal, nem contei o que havia acontecido. Só o revelei em um almoço de família muitos anos depois.
Embora nunca tenha reclamado, não foi atoa que ele nunca mais convidou os netos para uma viagem como essa. Deu muito trabalho daquela vez. Era um mais terrível que o outro.
Com essa história na memória, quis retribuir o desprendimento que ele teve ao propor aquela viagem. No começo do ano, comecei a imaginar como seria levar meu avô – agora com 96 anos – de volta para Santos, cidade onde ele passou sua lua de mel e muitas de suas férias, acompanhado de familiares. A última vez que ele esteve lá foi com minha avó em 2010, e poucos meses depois ela faleceu. Ele iria agora com a Natália, a Anelise e eu.
Quando eu propus a viagem, ele aceitou. Tinha medo que ele recusasse ir para evitar as lembranças da minha avó. A Natália e eu fomos programando a viagem, definindo as questões práticas e logísticas. Já tínhamos pensado nas compras, no que iríamos levar e até quais programas poderíamos fazer. A Anelise criou a expectativa de voltar à praia.
Quando faltava um mês para a data combinada, ele desistiu de ir. Deu algumas desculpas como dores nas costas e a questão de irmos em alta temporada. Era a única época em que eu poderia levá-lo por conta de trabalho. Quando vi que eram apenas desculpas para não ir, confesso que fiquei chateado. Não demonstrei para ele, apenas disse que tudo bem.
Queria que tudo o que eu imaginei para esta viagem se tornasse realidade. Queria vê-lo animado com o passeio, esperando alguma coisa boa para logo adiante. Mas é muito difícil obrigar um idoso a fazer o que a gente acha que é o melhor para ele. É quase impossível fazer que um idoso de idade avançada desconsidere suas limitações físicas e se anime para sair da rotina, que se disponha a buscar novas metas. O que a velhice pede é que a gente seja sensível, respeite as vontades e os limites.
Queria mais uma viagem para colocar na minha coleção de boas lembranças das vivências com meu avô, mas o mais sensato é agradecer que ainda temos tido vivências juntos. Viajei na expectativa e para a praia eu não fui.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Pensei que escreveria algumas crônicas sobre as aventuras desta viagem, mas foi não ter viajado que virou crônica.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 28/11/2015, Edição Nº 1383.

sábado, 14 de novembro de 2015

O Medo de Perder

Arte de Weberson Santiago



Às vezes percebo em mim um medo de te perder. Este sentimento começa pequeno, como uma pedrinha que vai parar dentro do sapato. Então, ele persiste como quando a pedrinha fica mudando de lugar dentro do sapato, cada hora fazendo doer uma parte do pé.
A persistência do medo me faz imaginar possíveis motivos que você teria para me deixar. Rastreio possibilidades de motivos ao nosso redor. Se não encontro nenhum palpável, invento um. O medo faz de mim uma caçadora de possíveis motivos. A correria não me permite parar para cuidar deste incômodo. Talvez por isso é que às vezes o medo venha tão forte. Em meio aos meus afazeres sou invadida por um temor enorme de que você não volte mais para mim.
O medo parece um fantasma a me perseguir. O encontro nos lugares menos prováveis, como logo depois de um momento feliz que passamos. Acho que ele é um fantasma do passado. Uma consequência das traições que eu assisti e das traições que eu sofri. Como se nossa história não pudesse ser diferente.
Nossa história já é diferente. Você me faz tão bem e eu te amo tanto. Parece até que aquela música do Chico foi escrita pelo que eu sinto: “Eu sou sua menina, viu? E ele é o meu rapaz. Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz”. Talvez, se você fosse um traste, eu não tivesse tanto medo. Ou tivesse. Mas é que apesar de ser chato às vezes, você é romântico, você me cuida, você me protege.
Quando eu confesso meu medo para você, você me recita aquela composição do João Cavalcanti, integrante de uma das suas bandas preferidas: “Sei que entre um cais e outro há incontáveis corações. Não navego neste mar de ilusões. Não aprendi a velejar, sem um norte a alcançar, sem um lar em terra firme”.
E mesmo você tentando me convencer de que você parte todo dia para regressar, meu medo me faz lembrar o final desta mesma canção: “Eu que cheguei a imaginar, no momento em que pisei, no teu chão tão bem cuidado. Que tinha achado meu lugar, que ali seria o rei e que o mar era passado. Mas a calmaria não convém. Que grande ironia é saber. O coração que é do mar, já nasceu pra navegar e não para em terra firme.”
Tenho medo que você descubra que seu coração é do mar, e não da terra. Não adianta vir com argumentos. Já repeti uma série de racionalidades para mim mesma e não adiantou de nada. Medos não seguem a razão, medos seguem o instinto e a intuição.
Queria ter a mesma segurança que você parece ter. Se para ter você eu preciso conviver com o medo de te perder, eu o aceito.
O medo de perder é um medo de amar. Não um medo de vir a amar, mas um medo de quem já ama. E muito.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Aquele que nunca teve medo de perder, nunca amou de verdade.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 14/11/2015, Edição Nº 1381.