segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Idas e Vindas

O caminho da volta não é a simetria do caminho de ida. Na ida, percorria as curvas da estrada na noite. A lua era um filete branco na parte de baixo, como a borda de uma xícara de louça branca cheia de café preto. No silêncio taciturno das horas tardias, o ar frio da vegetação soprando pelas janelas, enquanto o carro acompanhava as voltas da vicinal jogando a gente pra lá e pra cá, servindo de embalo para um carinho na perna e um beijo no rosto. No rádio Nando Reis grita o amor monóico, enquanto eu insisto em um modo pernóstico de lidar com palavras inconvenientes proferidas há pouco sobre nós até que a namorada se irrita.

Transforma sua fisionomia com o aumento da intensidade de suspiros passando de uma expressão afável para proclamar raiva apertando os olhos. Ela faz questão de retirar sua doçura feminina: o piercing do nariz sai da narina e vai para o septo nasal. Em poucos segundos ela é um búfalo bufando. Reverbero uma resposta, busco um argumento no luzir das estrelas. Quando vejo, já passou a repercussão e avistamos a cidade.

Sou o cachorro na estrada, com localização e velocidade inconveniente na passagem do apressado. Fico entre permanecer na frente e ser atropelado ou esquadrinhar uma velocidade que foge de mim. Não quero a pressa no sábado, não compro a afobação quando somos os dois na trilha.

- Corre à boca pequena que nessa árvore caiu um raio – digo.

- Então, seria por isso que ela está dividida na metade? – arremata ela.

A volta segue, no outro dia, a passagem pela feira do domingo. E na calma azul de um amanhecer sem pressa o caminho parece original. Entre a topologia dos acidentes naturais e das estradas de asfalto artificiais, Marcelo Camelo canta a Vida Doce, num CD cujo nome ora é Sou, ora é Nós, dependendo da posição que se lê. Os óculos escuros filtram a luz do sol, mas preservam a nitidez dos verdes e marrons.

- Gosto muito dessas sequencias de árvores – ela observa.

- Prefiro a singularidade das árvores isoladas – comparo.

Desligo o rádio para ouvir a música do caminho, o coral das cigarras. Elas vivem nos eucaliptos e preferem as árvores mais jovens, nas quais a circunferência do tronco não atrapalha ouvir o canto uma das outras. Eucalipto jovem ainda tem casca porosa, ideal para que a cigarra fixe suas patas e engane outros animais deixando somente a sua casca no tronco. Eucalipto antigo não é a moradia ideal, a casca fica lisa, manchada e se torna um lugar de vulnerabilidade.

Contrariando a apresentação de fim de tarde, o coral se manifesta no meio da manhã. Enquanto o carro passa em meio aos eucaliptos, é possível ouvir pulsar o coro uníssono provando que os machos são barítonos. Algumas cigarras não conseguem ou não querem entrar no ritmo, e seguem num contralto egoísta. Outras se consideram cantoras demais para um coro e utilizam seu canto soprano para um solo. Os pássaros se ocupam da percussão.

É nas idas e vidas que sigo a direção que minha pretensão sempre apontou, sem esperar que as circunstâncias sejam favoráveis. Não me dedico a satisfazer quaisquer vontades na tentativa de viver algo como uma vida livre. Busco no meu caminho o domínio da arte do querer, para satisfazer minhas vontades apenas se assim o desejar.


segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Na Despedida

O único lugar onde uma despedida termina com “passar bem” e não fica piegas é num personagem de filme do Almodóvar. Em todos os outros lugares a despedida é sempre uma parte difícil e até o silêncio é melhor do que “passe bem”. Eu pensava que preferia a despedida com palavras, usando todas outras agradáveis palavras que se pode usar que não “passe bem”, e descobri que sei ficar mudo.

Sou partidário do caso fortuito. Do encontro eventual que acontece por acaso e que tira o fôlego. Gosto do esbarrão com o imprevisto e da surpresa com o incomum. Ser invadido, de repente, por sentimentos e emoções. É assim que eu vivo o amor. O caso fortuito parece ser nome de paixão, mas é justamente de onde nasce o amor. Ser fortuito não significa ser avesso ao compromisso. É ter o compromisso de viver o inesperado para sustentar a relação.

Quando constatada a reciprocidade da emoção, a progressão do amor é mesmo rápida. Em seguida ao solavanco do sentimento está a fase de ajuste, em que se conhecem os gostos, manias e sonhos em questionários realizados nos intervalos entre os beijos e os abraços. Então vem o segundo teste, o de compatibilidade, composto pelas etapas de apresentação para os amigos e o teste de aceitação dos familiares.

Eu logo tratei de emparedá-la. Não no sentido de assumir uma relação que é natural, mas de encher o mural de fotos com os momentos especiais dos finais de semana. Não é defeito ser urgente no amor. O amor de verdade quer a fidelidade do sentimento do outro diagnosticado com a precisão de um exame de ressonância. Então, quando percebi, contava os minutos para percorrer da nuca ao pescoço com o nariz, como um aspirador de pó. Acabei descobrindo que há muito mistério no neuromarketing do amor quando o assunto é cheiro. Constatei que o fortuito se tornou duradouro. Encontramos a cumplicidade.

E daí que da sexta para o domingo é um pulo, mesmo fazendo tantas coisas boas juntos. Foi vivendo tudo isto que compreendi que não basta o prazer de um jantar preparado a quatro mãos ou até mesmo um banho de chuva gelada no final de uma tarde quente, muito menos se aborrecer com uma hora a menos no domingo por conta do horário de verão se, no final, na despedida, eu sou capaz de me calar sufocado, simplesmente pelo medo de dizer “eu te amo”.


segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Imaginação de Criança e Pensamento de Adulto

Em uma roda de adultos conversávamos sobre uma criança que passava muito tempo brincando com seus animais. Criava enredos, dublava as vozes dos bichos, parecia se desligar do mundo real para se entregar inteiramente ao mundo da fantasia. E fazia isso em uma frequência alta e, por isso, havia chamado à atenção de um dos marmanjos que se deparava com a cena quase todos os dias.

Esquecemos que as crianças são dependentes da segurança oferecida pelos adultos durante seu processo de desenvolvimento e que a fantasia é uma ferramenta utilizada pela criança para conseguir se comportar como um adulto no futuro. Ela experimenta o papel a ser desempenhado, ocupa este lugar na brincadeira com suas primeiras noções sem o peso da responsabilidade de realmente ocupá-lo.

Nas últimas décadas valorizamos tanto o pensamento focado, produtivo, racionalmente direcionado que deixamos de lado os pensamentos que são responsáveis pela nossa criatividade, como os devaneios, as divagações e as próprias fantasias. O estranhamento dos adultos com a criança em sua brincadeira compenetrada fora da realidade mostra que não temos dado lugar a esta importante função psicológica da imaginação, inclusive para os adultos. Muitos não o fazem pelo medo de parecerem bobos, outros porque serão importunados com novos pedidos de companhia.

Nosso estilo de vida atual não tem nos dado o tempo para viver nossos compromissos satisfatoriamente, focando a atenção e se distanciando do assunto na intensidade ideal. Como resultado, uma legião de pessoas que relatam a sensação de ser engolido pelas obrigações ou de não ter dado conta daquilo que se propôs a contento. Os momentos de devaneios podem pôr fim a algum impasse pendente há muito tempo sem aparente solução, que vem a surgir ao se tomar distância do problema.

Compensamos, então, pelo excesso ou pelo caminho que parece mais fácil. Uma reunião familiar tem que se tornar um churrasco que dura um fim de semana inteiro com bebida alcoólica sem limite. Para ter sossego ao final do dia, terceirizamos atenção que deveríamos dar aos pequenos com um jogo de videogame ou computador, simplesmente pela conveniência.

Não conseguimos organizar nossas jornadas (casa, trabalho e família) e exigimos que os filhos tenham uma rotina de estudos satisfatória. Abusamos do uso de medicamentos para outros fins que não o de tratamento e ficamos espantados quando constatamos o alto índice de uso de anabolizantes por adolescentes. Um abismo criado, dentre outros motivos, pela falta de disponibilidade em compartilhar o sentimento.





Artigo produzido para o Boletim AEM e publicado na edição nº 04/2010.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Receitando Sambas

Não sou o Cartola, mas minha carta na manga é sempre uma letra de samba. Basta que me façam um relato que faço aparecer uma letra que fala da situação. É uma espécie de receituário de doses poéticas e ritmo para os problemas mais comuns aos relacionamentos humanos.

A Márcia me contava um daquelas brigas que sem querer estragam uma noite que poderia ser um momento especial a dois. O motivo é sempre o mais banal, que não justifica tirar a paz. De repente, ficam os dois lados arrependidos de se deixar atrapalhar por tão pouco, mas ambos temem que o pedido de desculpa retome o conflito. Cada um pro seu lado na cama, mas no fundo querendo o que descreve o Diogo Nogueira em Amor Imperfeito:

“E quando acordar,

Quero te amar do jeito que sempre te amei,

Matar a saudade que o tempo deixou no meu peito,

Tirar esse nó da garganta, viver esse amor imperfeito.

O amor que apesar das barreiras nunca foi desfeito.”

E por falar em amor que sobrevive, diz-se por aí que o que for pra ser vigora. E foi vendo o Marquinho e a Patrícia de casa nova que me lembrei da composição de Luis Carlos Máximo e Moyseis Marques que fala de quando se decide juntar os Panos e Planos:

“Ganhei naquela parada, nega, e já comprei uma casinha branca.

Cozinha ladrilhada, tem samambaia e rede na varanda,

Um extenso lajeado pra se curtir nos domingos de sol,

Com churrasquinho e futebol. Espaço ‘pras’ crianças,

Na vizinhança canta um rouxinol.”

Dentre meus poucos grandes amigos, tem aqueles que são sonhadores e que não tem vergonha de sê-lo. Que não ficam desgostados da vida ao perceberem que alguém os passou pra trás e enxergam essas situações como aprendizado. Para eles dedico a letra de Edu Krieger e Moyseis Marques:

“Sim, sou de sonhar e acreditar! Daquele tipo de cair e levantar,

Daquele jeito de sofrer e não chorar, daquele peito que se orgulha do lugar,

Que eu vim, sou de sorrir, de resistir,

E insistir até onde for minha fé ou me façam calar a voz.

Sou de desatar os nós, e deitar entre os girassóis.

Sim, sou de falar de opinião, de sentimento e de comprar a discussão,

Se num momento estou no inverso da razão,

No entendimento eu calo em verso o coração.”

Se você chegou até aqui, já percebeu que a tristeza do sambista termina em verso e poesia. E desde que descobri que crônica é literatura que venho buscando a poesia nas minhas publicações desse gênero com inspiração no samba. Tem gente que acha que no fundo estou tirando Onda de Poeta (composição de Gabriel Azevedo e João Cavalcanti), enquanto eu sou apenas mais um apaixonado, vítima da saudade:

“Hoje a poesia é meu refúgio, sigo atrás da resignação.

Vivo atormentado pelo seu sorriso, a invadir minha imaginação.

Meu reino não vale um beijo dela, e eu estou disposto a dar bem mais.

Tudo é muito pouco quando comparado à falta que ela me faz.”

Se tem alguém que pode comemorar cantando O Trem do Tempo (letra de Diogo Nogueira, Ciraninho e Alceu Maia) esse é o Alexandre, que um dia chegou para mim chorando com a pergunta: o que se faz quando se leva um pé na bunda? Agora que passou, receitei estes versos:

“O trem do tempo apitou e você ficou pra trás,

Desembarcou na estação do passado.

O trem do tempo partiu e o destino me levou,

No fim da linha vai estar meu novo amor.

No fim da linha vou buscar meu grande amor!”

A última é a para todos aqueles que, como eu, não se importa em vestir a carapuça do ciumento. Tudo bem que a composição de Caetano Veloso não é um samba, mas duvido que uma letra descreva este sentimento universal em sensações tão simples:

“O ciúme dói nos cotovelos,

na raiz dos cabelos, gela a sola dos pés.

Faz os músculos ficarem moles, e o estômago vão e sem fome.

Dói da flor da pele ao pó do osso, rói do cóccix até o pescoço.

Acende uma luz branca em seu umbigo,

Você ama o inimigo e se torna inimigo do amor.

O ciúme dói do leito à margem,

Dói pra fora na paisagem, arde ao sol do fim do dia.

Corre pelas veias na ramagem, atravessa a voz e a melodia.”

Vale a ressalva que, segundo a letra Dor de Cotovelo, não há remédio poético que amenize o ciúme, já que ele corre pelas veias, atravessa a voz e a melodia. Estou procurando uma outra alternativa.







Recomendo Amor Imperfeito e O Trem do Tempo na voz do seu compositor Diogo Nogueira. Panos e Planos e Entre os Girassóis na voz revelação de Moyseis Marques. Onda de Poeta interpretada pela Banda Casuarina. E por fim Dor de Cotovelo na estrondosa voz de Elza Soares.