terça-feira, 30 de novembro de 2010

Árvore da Vida

Por mais bela que seja a árvore da vida, ela precisa estar enraizada no solo, e isso leva alguns anos. São essas raízes que darão o alicerce para sustentar uma copa frondosa, com frutos belos e fartos.
Os galhos darão a árvore da vida o alcance dos objetivos, ora em busca do sol – a felicidade – ora em busca da árvore ao lado – o outro que me diz como estou. Cuidado: o galho que tenta alcançar longe demais afetará o equilíbrio do tronco. Se a raiz estiver forte, a árvore estará segura. Caso contrário, se encontrará tombada.

As folhas são as responsáveis pela transformação da luz em energia para o crescimento, assim como as células receptoras humanas nos permitem codificar e perceber tudo o que acontece neste mundo com cara de selva. Sol demais queima. Sol de menos impede a multiplicação das células.

A chuva proporciona a melhor das sensações e as gotas que caem são massagens. Um presente da natureza à existência da árvore, para sustentar e manter com alegria o seu lugar no mundo. O vaso é como o exercício da paternidade, ele deve dar abrigo à raiz, conter aquilo que fornece os nutrientes e impor os limites.

Esta importância pode ultrapassar a fronteira da necessidade quando as raízes estão ocupando o espaço máximo e precisam sair deste vaso. Se o vaso não permitir, a raiz ficará sufocada e a função deixará de ser fundamental para ser excessivamente protetora. Quem sofre é a árvore que não cresce.

A muda precisa aprender que a árvore que atinge a maior altitude é aquela que não se importou em depender do arrimo. Que o crescimento aumenta o número de camadas do tronco e a sua espessura, assim como multiplicam as rugas da casca.

A proteção das folhas e galhos não deve espantar os animais, em especial os pássaros, a árvore se satisfaz a servir de moradia e fornecer segurança. Tem de sobreviver às intempéries das mudanças climáticas, que não estão sob seu controle. Aproveitar a luz e a água de algumas estações, e ao mesmo tempo sobreviver à escassez e a perda de folhas das outras.

As aparências enganam: mesmo parecendo sadia, pode estar oca e com a raiz podre. A queda será uma questão de tempo. Embora uma árvore sem folhas estampe as belezas de sua estrutura, pode ser sinal de uma vida ameaçada. No entanto, nunca duvide da possibilidade de um broto.

Chega uma hora que é preciso dar frutos, que carregarão sementes e permitirão uma sobrevivência para além da árvore única e finita. Nesta hora, será inevitável o julgamento alheio sobre a qualidade do fruto gerado, que mostrará o quanto os piores e os melhores da árvore contribuíram para aquela nova vida.

O amadurecimento revela se o fruto pode ser comido. Mas antes de desfrutar saiba: a árvore carrega um grande afeto em sua produção, já que nele está boa parte da sua essência.

Em algum momento na vida da árvore, a casca pode se soltar, como quem perde tudo aquilo que mantinha a sua aparência. Aí todos poderão ver se a madeira é de lei.

Se ela será capaz de enfrentar o forte calor e as tempestades? O tempo irá dizer.








Crônica escrita à quatro mãos com o Prof. de Educação Física César Augusto Vicinança Mônaco, aluno do terceiro ano do curso de Psicologia.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Caixa de Isopor

Sou o funcionário público contratado para organizar minha rotina. No arranjo de meu cotidiano tenho uma parte que adora divisória cinza com margem preta e cheiro de repartição. Gosto de criar rotinas, procedimentos e burocracias nas minhas tarefas mais simples. Armei a vagem a Sampa, um bate e volta, e já tratei de me programar. Estou organizando uma exposição com as minhas pinturas, precisava recolher os quadros presenteados aos amigos. Liguei para eles durante a semana, antecipando a visita e programei uma passagem pelos programas de sempre. Prendo-me a confirmar se o que eu gostei e frequentei continua no mesmo lugar.

Acontece que estou com uma mania estranha: de carregar um isopor. Esta é a prova de vestibular para se tornar um tiozão. Aquele que se acostuma a andar com um isopor no carro tem condições de fazer Medicina na faculdade da meia idade. Um adolescente ou jovem também carrega o isopor cheio, mas apenas quando o lugar que ele vai não vende a cerveja. Já para um tiozão, o isopor é o ocupante no pé do passageiro de segunda a segunda. Fica implícito a capacidade de organização e a praticidade de tal hábito. Há sempre algo preparado para ser buscado ao menor sinal de vontade: uma maçã, um sanduíche, água e até cerveja, dependendo do dia da semana e do programa.

Munido de minha caixa térmica e dos passageiros, percorri os duzentos e setenta quilômetros que separam a cidade natal da capital. Esquema montado. Homem que é homem quando viaja monta esquema. A mulher vai ao lado, incumbida de pegar o trocado para pagar o pedágio. E claro, ocupa um posto parecido com o da aeromoça. Deu vontade, ela abre o isopor e esboça o sorriso oferecendo o pedido. Dentro do meu funcionalismo, sou o concursado que acha que a modernidade dá preguiça. Mudar o sistema é o terror do funcionário público. O Sem Parar é uma ilusão de liberdade. Você paga para não parar, mas se esquece de que a cobrança vai chegar.

Na entrada de São Paulo assustei com um conjunto de prédios que agora tampa a vista do hotel da marginal. Preocupado com as mudanças, resolvi conferir os passeios da lista. O sol se punha quando passei pela casa de samba Você Vai Se Quiser e a Graça Braga estava lá, no palco, como faz todos os sábados. Apenas neste dia da semana as portas se abrem pra feijoada com samba. De tanto querer achar as coisas no mesmo lugar, fui ao encontro do amigo no seu apartamento, sem atentar ao fato de que ele havia me avisado que o alugaria por um mês. Minha sorte foi que o inquilino não estava e não precisou fazer sala para um desconhecido. Acertei o destino em direção à casa da mãe dele e o papo foi longe para colocar as informações dos meses em dia.

Como encontrei boa parte do que procurava, decidi conhecer algo novo. Café da manhã de domingo na Galeria dos Pães. Uma mistura de padaria com galeria de arte. Sanduíches com nomes de pintores, comidas com aparência de obra prima. Busquei um quadro na casa da amiga quase irmã, matando a saudade na visita rápida. Para completar os programas de outrora, passei pela feira na hora da xepa. Não consegui me conter diante dos preços e da gritaria dos feirantes. Muito animada, Dona Marta bradava arrancando sorrisos:

- Vamos gastar o dinheiro do marido, porque senão ela gasta com as loiras no bar.

Nisso o moleque passou gritando:

- “Ói o ai” – vendendo réstias de alho.

Não resisti, enchi o isopor para a viagem de volta e para a semana inteira.


segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O Interior

Foi-se o tempo em que o interior era o oposto da metrópole. Os dias se encarregaram de diminuir as distâncias. Adotamos a indiferença com as outras pessoas como regra e a pressa já não é mais uma exceção. O sol aponta e a insanidade toma conta do bom dia. Se no interior não saímos mais cedo prevendo o engarrafamento, quando saímos apostamos corrida para ver quem cumpre a maratona mais rápido. Buscar o pão na padaria, passar o café, acordar e trocar a criança, deixar o filho na escola, a mulher no trabalho e chegar a tempo na labuta.

E não é que a pressa é companheira até o fim do dia? Dá tempo de voltar para casa no almoço, mas contamos com este tempo para colocar uma prioridade: passar no banco, lavar uma roupa, terminar um relatório, fazer comida, ler o jornal do dia ou devolver o filme na locadora. O ritmo pulsante, que muitas vezes não permite a reflexão, vai aumentando gradativamente conforme chegamos ao final do ano.

No interior já se formam, em alguns horários, filas de carros nas esquinas. Nos sábados, é impraticável cruzar de automóvel o centro. Achar uma vaga em horário comercial durante a semana é ganhar na loteria, mas com o custo do bilhete. Uma moeda vai para a zona azul, que deveria ser chamada de zona vermelha. Todo abuso remete ao vermelho e pagar pra parar na rua é um estupro. Um dos poucos privilégios que ainda resta ao interior é não ter dia de rodízio. Muitas vezes diante de distâncias pequenas, não queremos nos sujeitar, um dia na semana, a ter a sensação de que o carro está na oficina mecânica.

A poluição da água de um rio não é mais diretamente proporcional à proximidade dos grandes centros urbanos. No interior também tem rio que cheira mal, que o peixe morto boia e que a garrafa pet faz natação. No interior também se sofre de falta de infraestrutura: enchente, pobreza, fome. O recapeamento das ruas custa a chegar à periferia. As varandas das casas antigas seguem vazias, parecem ter perdido a sua função. Poucos se atentam ao fato de que o octogenário que parte desta vida têm levado consigo certos comportamentos. Veja o hábito da refeição. Nossos supermercados descobriram que pagamos bem pela comida já pronta e abandonamos o ritual da preparação. Demora mais cozinhar, e talvez saia mais caro. “Filho, come na escola que eu como no trabalho”. Precisamos de mais tempo para o computador.

Quer na metrópole ou no interior, vive bem o que não deixa a sua própria bateria viciar. Os empecilhos vão rebaixando a disposição e é preciso muita carga pra enfrentar a rotina. Bateria viciada começa com uma parte descarregada e a energia termina mais cedo. Quem não consegue mais carregar totalmente a bateria, o que faz ao começar um novo dia? Antes era difícil achar o interior na metrópole, agora é difícil achar o interior no interior.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Antes Tarde


- Moço, eu quero falar com o gerente.

- Ele fica naquele prédio, contorna aquele jardim, na entrada que tem por trás.

Caminha até lá.

- Pois não – diz ele.

- Oi moço, meu nome é Josy, e eu queria saber se você pode me ajudar. É que eu tive aqui no ano passado, mais ou menos no mês de Agosto, num evento que teve a noite. Aí, eu conheci um cara, nós saímos e depois de dois meses eu descobri que estava grávida.

- Espera – diz ele surpreso. Mas você conheceu ele naquela noite?

- Sim, sabe como é, né?

- Não, não sei, você tinha bebido muito?

- Ah, acho que sim...

- E quantas vezes vocês saíram? – questiona.

- Só aquele dia.

- Espera. Eu não sei como eu posso ajudar você...

- Sabe o que é, eu queria saber se tem como você ver quem entrou aqui naquele dia.

- Bom, mas você precisa provar que ele esteve neste evento?

- Não, eu preciso achar ele.

- Mas você não manteve contato com ele?

- Não, foi só aquele dia.

- Qual é o nome dele?

- Não sei – disse ela – eu sei que ele é moreno, cabelo e olhos pretos.

- E qual foi o dia?

- Não sei, mas acho que foi numa sexta-feira em agosto do ano passado.

- Não sei se conseguirei te ajudar. Eu posso levantar a lista de pessoas que entraram nesses dias, mas sem um nome, será difícil localizar.

- Eu reconheço ele pela foto.

- Mas eu não posso mostrar o cadastro das pessoas aqui. Além disso, você precisa tomar muito cuidado com a acusação que vai fazer. Caso o exame de DNA dê negativo, você poderá ser processada por danos morais.

- Me ajuda, por favor! – com voz trêmula e lágrimas nos olhos – Meu pai fica dizendo que meu filho vai me cobrar de mim quem é o pai dele e eu não vou saber falar...

- Eu vou ver o que posso fazer. Qual seu nome?

- Josy Maria da Cunha.

- Josi Maria da Cunha – ele escreve.

- Não, Josy com ipsilon.


quinta-feira, 4 de novembro de 2010

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O Bahiano

Ilustração de Weberson Santiago

Vou pelo caminho banal nesta crônica ao escolher meu personagem naqueles que passam desapercebidos, escondidos por detrás do cotidiano. Estava no meu horário habitual de saída do trabalho de manhã, indo em direção ao carro, quando o Bahiano me abordou:

- Tá indo pra onde, jovem?

- Pro centro. Onde precisa ir, Bahiano?

- Na assistência técnica de geladeira, perto da saída. Tenho que ver se tem essa peça para trocar na geladeira de casa.

- Entra aí que eu te deixo lá.

No caminho, perguntei se ele havia nascido na Bahia, questão óbvia para quem tem o apelido. Surpreendente foi a resposta, que me fez descobrir que ser chamado de Bahiano não é sinônimo de ter nascido na Bahia. Pode ser mais do que isso, pode ser sinônimo de Nordestino. No caso dele, apelido para quem morou algum tempo na Bahia.

Enquanto me dava detalhes sobre a motivação das mudanças, ele diz:

- Tá bom aqui, jovem! Pode deixar que eu dou um chego lá! Aí você vira aqui e vai pro centro.

- Eu te levo, Bahiano.

- Fica tranquilo, neguinho, aqui tá bom! – disse, aproveitando a esquina para descer do carro.

Ele não compreendeu que eu me interessava pela sua história e que queria fazer na carona aquilo que a sucessão dos dias de trabalho não me permite. No meu trabalho como psicólogo organizacional sou obrigado a priorizar o caso com queixa, seja de quem for a reclamação. Isto me impede de saber da história daqueles que não sinalizam um problema na rotina.

O Bahiano tem pontualidade inglesa, chega todos os dias no horário. Carrega uma pasta na mão com postura de executivo. Veste sempre uma calça preta e uma camisa polo branca ou cor de vinho quando chega na empresa, sempre com os cabelos grisalhos devidamente penteados para trás. Só depois de tomar o café, veste o uniforme. O seu bom dia é um privilégio, remete a voz do locutor radialista no primeiro cumprimento recebido por quem madruga.

Mesmo esbanjando habilidade vocal, não há dúvida que cumpre aquilo que é sua especialidade. Se não fosse a forma como ele faz o seu trabalho, aqui a crônica cairia no senso comum. Vou repetir o chavão, mas como quem escreve a história do excluído. Se todo porteiro é Paraíba, o Bahiano trabalha na manutenção. O nome do cargo é serviços gerais. Posto recusado com brado de revolta por alguns que pensam que serão contratados para fazer qualquer coisa. Na verdade, são contratados para fazer muitas coisas. E quem sabe fazer muitas coisas sempre é imprescindível, mas nem sempre valorizado.

Soltou o cabo da panela? Leva pro Bahiano! Estragou a tesoura de jardinagem? O Bahiano conserta. Ferro, solda e parafuso? Idem. Engana-se quem pensa que são apenas trivialidades e miudezas. É na oficina que tem cara de bagunça que ele produz as engenhocas que são verdadeiras soluções na vida de quem repete o trabalho todos os dias. O alçapão do registro era um desafio para a senhora de meia idade. Uma única ferramenta construída por ele levanta a tampa de ferro e abre o registro sem exigir agachamento. A durabilidade da lona do toldo era menor, pois vivia batendo quando abaixado. Algumas soldas depois e o cano lona se encaixa e não bate mais. A simplicidade da ideia que implementada é economia inteligente. Fui pegar sua trena emprestada na última semana e acompanhei de perto ele construindo um de seus inventos. Carretéis gigantes giratórios para recolher as raias da piscina de cinquenta metros.

Por isso estou contando os dias para a festa de confraternização de fim de ano. Quero tomar uma cerveja com o que eu considero ser o verdadeiro herói. Aquele que tem orgulho da graxa que suja a roupa no final do dia, pois ela mostra que foi um dia produtivo. Que recebe as pessoas na sua oficina com o mesmo afeto que eu recebo nas minhas poltronas almofadadas. Que se orgulha da ser Bahiano sem ter nascido na Bahia. Que carrega nas rugas do rosto o sorriso e na pasta a certeza de ser responsável pela manutenção da vida dos outros.