segunda-feira, 27 de julho de 2009

O Cínico e o Mentiroso

O cínico e o mentiroso não são duas pessoas, mas dois comportamentos humanos em determinadas situações. E é sobre estas atitudes que irei discorrer. Embora nossos dicionários sejam palavras definindo demais palavras, que tal recorrermos a um deles? O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1995).

O Cínico, para o autor, é aquele que ostenta princípios e/ou pratica atos imorais. O cínico pode ser chamado também de impudico, obsceno ou o que revela imprudência. Existiram dois filósofos gregos chamados Antístenes de Atenas (444-365 a.C.) e Diógenes de Sínope (413-323 a.C.) que fundaram a Escola Cínica. Esta se caracterizava principalmente pela oposição radical e ativa dos valores culturais vigentes, oposição nascida do discernimento de que é impossível conciliar as leis e as convenções morais e culturais com as exigências de uma vida segundo a natureza.

Partindo desta definição, o cinismo é o comportamento de contravenção de valores éticos e morais, em detrimento de questões humanas individuais, portanto, mantido pelas práticas culturais. Se cinismo e mentira surgem numa escola, não é de se estranhar, hoje, presentes em demasia nas instituições de ensino, tanto por parte de professores quanto de alunos. Quem nunca contou aquela farsa para justificar a ausência das respostas no caderno? Ou jogou a bolota de papel e agiu como se nada tivesse acontecido quando o alvo olhou?

Atentando agora ao mentiroso, ele também é conhecido como chico, faveiro, loroteiro, maranhoso, marombado, pabola, pomadista, potoqueiro, potoquista, pregador e por aí vai. Novamente recorrendo ao Aurélio, é definido como o que mente, que é falso, opositor à verdade, que não é o que parece ser, enganoso. Estas duas últimas definições são limítrofes e esbarram na definição de cínico. Em se tratando de um limiar tão tênue, cabe a mim, o disposto a discorrer sobre tal assunto diferenciá-los.

Acredito que existam pontos em comum entre o cínico e o mentiroso, mas de fato existem diferenças. O cínico nem sempre é mentiroso, entretanto, mentir sempre exige uma dose de cinismo, pelo menos do ponto de vista de quem analisa o mentiroso. O ponto em comum entre o cínico e o mentiroso é a necessidade de sê-lo com naturalidade. Afinal, mentiroso inseguro não cola e cínico incomodado fica com cara de mal educado ou agressivo. O mentiroso precisa acreditar no que está dizendo, afinal ele tapa um buraco com a mentira.

O comportamento de mentir começa a ser aprendido no início da vida, quando descobrimos que é possível falar algo que não corresponde exatamente ao que se faz. Com o passar dos anos vai muito além disso. Pode envolver redes complexas de idéias, pessoas e situações. Está aí mais uma diferença entre os dois: para mentir é preciso falar, para ser cínico nem sempre. É possível ser cínico por meio de expressões faciais ou posturas corporais. Não obstante, a entonação vocal é uma forma de cinismo muito usada, mas nem sempre bem usada.

Porque o mentiroso é mais mal visto socialmente do que o cínico? Se fosse defender um mentiroso, diria que: “Quando os motivos são dignos e nobres, não importa faltar à sinceridade eventualmente. Os seres humanos se revelam através dos frutos de suas obras e não pelos métodos que usam para atingir seus propósitos.” Os fins justificam os meios? Deixo a resposta pra você, caro leitor.

Uma vez, ao dizer que escrevia sobre o cínico e o mentiroso, ouvi:

“Eu minto porque me sinto obrigado. Fui criado em um mundo onde a verdade sempre tem que prevalecer, sob qualquer coisa, já que mentira tem perna curta, e uma vez que você mente e é descoberto nunca mais terá sua dignidade e confiança de volta. Para mim não é bem assim. Perder sua dignidade e confiança das pessoas é para os bobos. Basta querer dar uma de esperto e pronto. A mentira não é tão fácil de ser contada, tem que haver um pouco de cinismo, tem que acreditar no que está contando. Tem que viver o que conta, tem que ser concreto. Não há necessidade de ser algo muito elaborado. E nem contar além do que se precisa saber. Só se perguntarem os detalhes, ai sim se vai levantando as relações e concretizando o fato.”

Depois de ouvir isso, concluí: uma mentira bem contada e dita com convicção se torna verdade. Já uma verdade dita sem muita convicção pode se tornar uma mentira. Para mim, cinismo é brincar de falar sério ou falar sério brincando.

É preciso alertar que, quando vamos pensar em parcerias, que cínico e mentiroso não formam um bom par. O mentiroso elucubra falsas verdades, enquanto o cínico corresponde com suas ironias e por mais que a canção pareça conciliar letra e melodia, não vem a ser tocada por muito tempo.

Para findar, deixo um sofisma de Eubúlides de Mileto (Séc. IV a.C.) que fará o leitor pensar um bocado. Não se trata de uma mentira e claro que não digo isto em tom de cinismo:

“Se alguém afirma ‘eu minto’, e o que diz é verdade, a afirmação é falsa; e se o que diz é falso, a afirmação é verdadeira”.

Pode-se concluir ou que uma asserção é ao mesmo tempo verdadeira e falsa, ou continuar indefinidamente por recorrência ora a concluir que é falsa ora que é verdadeira.

Um comentário:

L. Fiscina disse...

u texto lembra o que já dizia Aristóteles, mesmo que uma conclusão seja verdadeira, as premissas podem ser falsas. Cinismo e mentira ainda são definições, formas, não exprimem conteúdos. Quem dirá não agir como cínico ou mentiroso quando o que está em jogo é uma vida humana? O que era ser cínico ou mentiroso no Brasil quando o ato institucional n. 5 foi instituído? Talvez, a única forma de sobreviver. Isso, porém, não relativiza a ética; esta tb é forma e não conteúdo. Mas, na radicalidade, que é onde a ética deve ser pensada, o conteúdo inperativo é o dano ao outro. Até que ponto ser cínico ou mentiroso gera um mal ao outro? Neste sentido, ou seja, a partir do modo como a esfera jurídica do sujeito é atingida pelo cinismo e pela mentira, talvez possamos pensar num conteúdo invariável às contingências do cotidiano que muitas vezes pedem uma flexibilidade e criatividade em relação às regras. De praxe, consideramos a História em duas perspectivas: a história como discurso e a história como fato. Contudo, a gênese da origem do mundo para o índio não é um ato da mentira, mas a cena do dinheiro na cueca e na meia dos federais e distritais em Brasília é uma grande doze de cinismo. Apesar de todos vivermos conforme a verdade, o que implica uma conformidade com ela, isso não nos define de antemão como cínicos ou mentirosos. A estrutura de toda rede social já é auto-colapsante e construída sem os valores morais para o cumprimento ético. Portanto, o sujeito histórico que discutimos é o sujeito estratégico. Sendo assim, devemos, então, pensar num modo de introduzir a Ética na categoria dos meios, uma vez que a História tem demonstrado ser muito difícl para o sujeito conseguir pensá-la e cumprí-la mediante a categoria dos fins. A mentira e o cinismo é meio para o indivíduo comum e fim para os artistas e para aqueles que vivem em sistema de extrema opressão. Nestes casos, não há um conteúdo ético invariável. Mas, na área pública e na realidade do cotidiano, o conteúdo ético é a constituição dos direitos humanos instituídos em 1949 e que garantem a equidade entre seres humanos, a liberdade pela igualdade, e a igualdade pela liberdade. E garantida a não violação desses dreitos, o que resta é criatividade. Sendo assim, o que dizer do jeitinho brasileiro na realidado e no cotidiano do Brasil popular?

Luciano Fisina