sábado, 31 de agosto de 2013

Ingrediente Espaçoso, Recheio Folgado

Arte de Augusto Amato Neto



Lembre-se da última vez que você comeu uma pizza e que um ingrediente invadiu um pedaço da pizza do outro sabor. O que você fez?

Deixou de comer o pedaço da pizza de muçarela por causa da ervilha da fatia portuguesa que escorregou para a vizinha? Ou simplesmente retirou a cebola espaçosa que não respeitou o limite da calabresa e invadiu o frango com catupiry?

Nós, humanos, somos como pizza meio a meio. Não respeitamos os limites do próprio pedaço e invadimos o pedaço do outro. É estar lado ao lado que começa a mistura.

Eu sou um invasor de pedaços especialista. Não fico satisfeito em me pôr no centro da casa, controlando o vai e vem da Natália e da Anelise. Quando estou trabalhando no computador, não as perco de vista. E quando percebo, já estou atrás de uma delas, invadindo seus espaços e me metendo nas coisas que elas estão fazendo.

Se a Natália está lavando os pés de alface, pergunto como ela deixou de molho e como fez pra lavar. Não me contento em saber o que aconteceu, preciso sugerir outra maneira de fazer. A Natália fica louca de raiva.

Eu que não suporto que belisquem um ingrediente quando estou preparando um prato me intrometo no modo de preparo de uma receita quando a Natália está cozinhando.

Ela conta até dez – vinte ou trinta – pra não discutir, mas não adianta. Depois de um tempo lá estou eu invadindo seu espaço e me metendo onde não deveria.

Com a Anelise é a mesma coisa, pergunto como foi o dia, o que ela fez na escola, se fez a lição e ainda confiro a apostila e o caderno de recados. Me intrometo em suas brincadeiras, interrompo as suas ligações no celular de brinquedo – e converso com o personagem do outro lado – para avisar que ela não pode conversar pois está na hora de tomar banho.

A família é o impeditivo da privacidade. Não existe respeito à intimidade em um lar. Família é uma pizza dividida em oito sabores que se misturam como se o entregador tivesse dado uma volta no globo da morte entre a pizzaria e a sua casa.

E quando a mistura é regra, a divisão fica praticamente impossível.

O intercâmbio de meias nas gavetas é um exemplo de como é difícil dividir. Não importa que eu calce 43 e a Natália 34. As meias têm pés e trocam de gaveta.

Andei encafifado com uma toalha que, mesmo estendida no varal, nunca secava. Nem o sol escaldante me fazia encontrar a toalha seca no final do dia.

Resolvi investigar. Já imaginava uma visita invadindo a casa durante o dia para usar minha toalha. Até que descobri que a Natália e eu estávamos usando apenas uma das toalhas idênticas, enquanto a outra igual permanecia seca, dependurada no banheiro. Aí foi minha vez de contar até dez – vinte ou trinta – pra não discutir. Eu não aguento e vou atrás dela pela casa.

Eu seu, eu sei, eu sou um chato. Mas por trás da minha chatice existe um interesse em participar, em conviver, em interagir. No fundo, minha chatice é um excesso de disposição.

Aqui em casa, toda discussão termina em pizza. Literalmente. Massa fina, sem borda recheada. Meia do meu gosto, metade escolhida pela Natália. E a pizza sempre chega com o recheio invadindo o pedaço do outro sabor.

UM CAFÉ E A CONTA!
| Se a chatice é o recheio da minha pizza, o carinho é o azeite.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, contracapa (p. 2) do primeiro caderno, 31/08/2013, Edição Nº 1267. 

sábado, 17 de agosto de 2013

Rodovia é Andança, Estrada Vicinal é Bonança

Arte de Augusto Amato Neto


Pode existir muito conforto em uma rodovia duplicada com cinco faixas cada uma, mas não existe sensação melhor do que pegar uma pequena estrada vicinal de mão dupla.

Rodovia duplicada é rápida, mas é impessoal e sem graça. Muita engenharia e pouca inspiração. Tecnologia de sobra no asfalto e na velocidade, com paisagem insossa.

Estrada vicinal é o caminho possível de antigamente. É o trecho onde o boi fazia carga e onde o cavalo carregava as pessoas sob a terra. O trecho tortuoso pelo meio da vizinhança. Você encontra os suportes com barril de leite na porteira da fazenda e, até hoje, ninguém rouba o barril. Não há necessidade de vigia. É um respeito rural, um pacto de honestidade que permite abrir mão de câmeras.

Fecho os olhos, busco no Instagram da minha memória e encontro a imagem de cor perfeita, feita pelo filtro da minha retina com os raios de sol e as cores da natureza na estrada que liga Divinolândia/SP a Poços de Caldas/MG. Uma de minhas estradas preferidas.

São 31,4 Km com uma topografia repleta de caminhos tortuosos e paisagens incríveis. Um trajeto com tantas curvas que os braços oscilam mais do que para-brisas na chuva forte. Os aclives e declives fazem do percurso uma montanha russa às avessas, sem frio na barriga, sem medo da próxima parte. Espera-se a próxima imagem depois da curva. Não há como atravessar esta estrada com pressa, foi feita para ser percorrida calmamente. A calma é amiga da contemplação. Quem escolhe uma vicinal, aprende a observar as paisagens.

Neste caminho tem a Igreja de Três Barras, que fica de fronte ao caminho de quem vem de Divinolândia e vai para Poços. Mais adiante, a estrada corta um distrito de Divinolândia chamado Campestrinho. É praticamente um bairro de oito quarteirões cuja rua principal é a própria estrada, com uma rua paralela abaixo e acima. É tão pequena que não tem supermercado, apenas o mercadinho que vende de tudo, da verdura até a panela. Nas portas, vê-se boa parte da mercadoria pendurada do lado de fora. Bola de futebol pra molecada, vassoura de palha caipira e tudo mais o que não cabe no interior do mercadinho.

É por essas e por outras que eu prefiro os caminhos diferentes e pouco conhecidos.

Não admiro uma grande veia ou artéria do coração. Se uma delas entope, são os pequenos vasos que garantem a irrigação do sangue pelo coração. Eles se ramificam ainda mais, aumentam seu calibre quando uma veia ou artéria é obstruída e são capazes de prolongar uma vida. As artérias mais finas, chamadas capilares, são responsáveis pela troca de dióxido de carbono por oxigênio nos pulmões, por eliminar as substâncias que o organismo não pode aproveitar através da urina no rim. No intestino, é nos capilares que os nutrientes são absorvidos e os resíduos não aproveitáveis são liberados. São os pequenos tuneis que saem do coração que fazem as extremidades respirarem.

Aprendi, pelas estradas da vida e pelos caminhos do coração, a não desprezar as estradas pequenas. Não recuso uma rodovia quando estou com pressa, mas prefiro a estrada vicinal quando posso escolher. Se não posso pegar uma estrada vicinal, viajo por dentro das minhas veias vicinais, percorro os caminhos por onde pulsam o meu coração.

A rodovia duplicada permite a mão do homem fique na coxa da mulher o tempo todo, pois o cambio permanece a maior parte do tempo na quinta marcha. Mas somente a estrada tortuosa e simples estabelece ocasião para a correspondência.

É na vicinal que a mão da mulher repousa na perna do homem. Ela retribui o carinho quando as curvas não permitem que ele solte uma das mãos do volante ou tenha que ficar mudando a marcha com frequência.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| As estradas da vida não são retas, nem expressas. O caminho é sinuoso, desconhecido e repleto de obstáculos.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 17/08/2013, Edição Nº 1265. 

sábado, 3 de agosto de 2013

Curso de Padeiro Ensina a Esperar

Arte de Weberson Santiago


Um dia eu cheguei a pensar que o bem-sucedido era aquele que buscava um objetivo sem nunca deixá-lo de lado. Se você pensa assim, como eu já pensei, está enganado.

Foi o que eu aprendi quando fiz um curso de padeiro e confeiteiro. O curso não me ensinou somente a fazer massas de pães ou preparar qualquer tipo de cobertura de confeitaria, me ensinou que o caminho para atingir um objetivo não é persegui-lo obstinadamente.

Com toda a minha empolgação com a arte dos pães, a primeira vez que eu fui sovar uma massa parecia um iniciante ansioso em uma aula de artes marciais. Socava a massa como o lutador ansioso querendo golpear qualquer um que apareça na sua frente. O professor me chamou a atenção. Eu coloquei tanta força que venci a massa por nocaute e ela quase não chegou ao forno. Revi a intensidade.

Logo que a massa ficou homogênea e na textura certa, eu já queria levá-la ao forno e ver o pão assado, quando me lembraram que a massa tinha de descansar para poder crescer. O objetivo era ver o primeiro pão francês assado, feito com as minhas próprias mãos. Ao deixar a massa descansar tive de deixar meu objetivo de lado. Aguentar não fazer nada por ele por um tempo. Tolerar uma hora que me pareceram demorar como se fossem cinco.

Levei essa lição para a vida. Boa parte do que fazemos tem a hora certa de sovar e um intervalo mínimo para descansar. Uma porção de coisas funciona melhor assim, respeitando um intervalo de tempo entre uma ação e outra.

Ao fazer uma dura crítica a alguém na esperança que de a pessoa mude, precisamos dar tempo para que ela mostre (ou não) uma mudança de conduta. Se não dermos esse espaço, apenas criamos as condições para que ela não aguente tanta pressão, não dê conta de mudar e desista.

Quando escrevo um texto, depois de um tempo na redação, deixo-o guardado na gaveta (ou no arquivo do computador) para me distanciar do seu conteúdo e poder enxergar o que ainda não está bom. Quando eu não dou um tempo na revisão e fico relendo repetidamente, passo a não enxergar os erros de ortografia ou a falta de clareza em algum trecho.

Mesmo os objetivos mais grandiosos e arrojados precisam ser deixados de lado em alguns momentos.  Não pensar antes de agir é impulsividade. Não conseguir deixar uma ideia de lado é obsessão. Não saber se segurar é compulsão. Os sentimentos não suportam ter de controlar o incontrolável.

Há momentos em que a melhor opção é deixar o tempo passar, a cabeça esfriar e esperar que as contingências fiquem mais propícias para, então, se comportar. A despreocupação também faz parte do processo de atingir uma meta. É nos momentos em que nos desobrigamos a pensar somente na produtividade que conseguimos encontrar a criatividade para solucionar algum entrave ou pensar em algum acabamento alternativo. O excesso de preocupação só atrapalha, como me atrapalhou a afobação de querer ver o pão assado.

É num momento de despreocupação que a massa cresce. E pra fermentar uma ideia e transforma-la em realidade é preciso saber a hora de sovar a massa – agir – e a hora de descansar – dar espaço para que as coisas aconteçam ou se desenrolem.

Não sabe identificar qual é o momento certo de cada coisa? Faça um curso de padeiro. Além de aprender a fazer pães, descobrirá o que é ser padeiro das emoções.


 UM CAFÉ E A CONTA!
| Massa, recheio e cobertura precisam entrar em concordância. A cobertura não pode ser mais vaidosa do que a massa. O recheio não pode chamar mais a atenção do que a cobertura.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 03/08/2013, Edição Nº 1263.