sábado, 21 de junho de 2014

Medos e Preocupações

Arte de Weberson Santiago



Em seu último trabalho musical (chamado Disco, lançado em 2013), Arnaldo Antunes gravou uma musica chamada Dizem, cujo refrão diz: “Quem me dera não sentir mais medo. Quem me dera não me preocupar. Quem me dera não sentir mais medo algum.”
A primeira vez que ouvi a música, essas três frases me fizeram pensar. Ficaram ecoando em meus pensamentos.
Quantas vezes nos enchemos de esperança de nos livrarmos de nossos medos e preocupações – “quem me dera não sentir mais medo algum”. Queríamos que eles desaparecessem, pois assim pensamos que a vida seria menos sofrida. No fundo, desejamos que uma mágica nos livre dos medos. Apelamos sem pestanejar a um remédio que prometa acabar com eles. Gostaríamos que alguém nos desse a capacidade de não temer ou de não carregar preocupações, como se alguém – o padre, o pastor, o médico ou o terapeuta – pudesse fazer isso por nós. Eles podem, se preparados e dispostos, acolher nossos medos e amenizar nossas preocupações.
Outras vezes, colocamos naquilo que nos falta a expectativa de eliminar essas emoções desagradáveis. Quando eu tiver um carro daquele, minha felicidade será tão grande que não terá espaço para os medos. Quando eu conseguir perder esses dez quilos, minhas preocupações irão se acabar. É quando queremos nos livrar dos medos e das preocupações que construímos algumas ilusões.
O medo é um sentimento, já a preocupação é um pensamento. Pensamentos e sentimentos vão e vem, variam em intensidade, mas nunca acabam. A vida nos presenteou com os medos e as preocupações. São parte do pacote. São tão seus quanto seus órgãos. Te acompanharão na sua jornada em todas as suas escolhas.
Faz parte da vida tolerar a existência dos medos e das preocupações, faz parte da existência encará-los. Faz parte do amadurecimento aprender novas formas de lidar com eles.
Uma metáfora para explicar como funcionam os pensamentos e sentimentos: considere que nossa interação com o mundo é como um rádio. Somos o aparelho tentando emitir um som em perfeito equilíbrio enquanto nos relacionamos. Vamos agindo tentando manter a sintonia, só que às vezes acontecem alguns chiados.
Os pensamentos e os sentimentos são os chiados. Eles são as interferências que afetam nossa sintonia com o mundo, que podem ser de intensidade mínima ou muito intensa, podem ser interferências curtas ou duradouras.
Assim como um rádio reproduz músicas agradáveis ou desagradáveis, nossos pensamentos e sentimentos podem ser prazerosos ou incômodos. Medos e preocupações são incômodos.
É preciso tomar cuidado para não amplificar os sentimentos de medo com os pensamentos negativos, causando o barulho insuportável de uma microfonia. Para manter a sintonia é preciso aceitar o chiado sem amplificar o seu ruído.

UM CAFÉ E A CONTA!
| Medos e preocupações podem ser aliados se usados como sinais para se proteger, desde que você não deixe que eles tomem conta.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, p. 4, 21/06/2014, Edição Nº 1309.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Uma Mesa de Duas Pernas




Uma mesa de quatro pernas, quando perde uma, pode até conseguir permanecer de pé. Quando perde a segunda perna, a primeira tem de estar escorada.

Para quem, como eu, teve a sorte de ter tido os quatro avós e crescer com eles ao meu redor, perde-los é um bocado difícil. A presença deles é como uma estrutura. Nesta noite perdi a segunda perna da minha mesa: minha avó Malvina.

A notícia no silêncio da noite me vez assistir a um trailer da minha própria infância. A primeira história foi exaustivamente contada por ela durante meus 31 anos: quando eu disse as primeiras palavras aos 10 meses e 30 de vida. Ela falou silabicamente e eu repeti, uma de cada vez. Carro, papai e mamãe. Estava no colo dela. Pediatras desconfiavam, mas ela dispunha de testemunhas. Nunca me cansei de ouvir esta história e se tivesse a vaga ideia de uma partida repentina teria pedido que me contasse mais uma dezena de vezes.

Comemorava quando a escola mandava um livro para leitura. Usava como pretexto para pedir pra ir dormir na casa dela, que era professora de português. O ritual consistia em cobertor e leite na caneca na sala que não tinha TV. Deitado no colo dela, ouvia a história e via as figuras. A partir disso, os livros se tornaram sinônimo de carinho.

Ela gostava de dizer que eu já levava jeito pra psicólogo desde criança. Ela tinha uma mania de passar o rodo na porta de casa após qualquer chuva. Justificava dizendo que era porque tinha medo que alguém caísse. Minha primeira intervenção psicológica, aos 8 anos, foi: “Vó, você não acha que você tem muitos medos? Alguém já caiu aqui?”. Embora a pergunta a tenha deixado desconsertada e a tenha feito pensar, ela gostava de contar o episódio como sendo uma prova de minha vocação. A partir daquele dia, o terraço na porta da casa permanecia molhado até que a água evaporasse.

Houve também uma história engraçada. Éramos crianças quando meus pais nos deixaram, meus irmãos e eu, na casa dela pra sair com os amigos à noite. Tocamos a campainha. Quando ela abriu a porta, sua saia caiu. Estava com uma ceroula por baixo, mas caímos todos nas risadas. Nós sentamos no chão de rir e ela na cadeira de palha perto da porta.

Para quem gosta de ler minhas crônicas, ela teve uma participação importante na construção de minha identidade de escritor quando estava na sexta série, aos 12 anos. A professora me pediu uma redação e eu não tinha ideia do que escrever. A tarde, liguei pra ela e pedi ajuda. Ela me ensinou mais um ritual: procurar um lugar sossegado e gostoso de ficar, de preferência com natureza. Então deixar a imaginação solta até que viesse uma ideia. A redação foi para no mural da sala. Tenho ela guardada até hoje.

Ela esteve comigo quando passei na faculdade, quando me formei na faculdade. Quando entrei no mestrado e quando defendi o mestrado. Assistia minhas palestras em escolas. Recebeu a Natália e a Anelise na família como se já fizessem parte há muito tempo. Comemorou quando resolvemos morar juntos. Veio ver nossa casa quando compramos. Ela me apoiou em cada passo importante. Era, sem dúvida, uma das pessoas que mais acreditavam no meu potencial.

É tudo isso que eu tive e que não terei mais. Estou perdendo algo muito valioso. Junto com a perda deve vir a aceitação de que o que foi vivido não será mais. Sentirei muita falta dela nos próximos passos de minha vida.

O que me consola é que há pouco tempo fizemos uma festa de comemoração dos 60 anos de casamento que teve um momento muito especial. Todos reunidos em volta do casal disseram coisas importantes sobre o que eles foram e são na nossa vida. Quase todos ali presentes falaram o que sentiam. A Natália falou, eu falei. Ela partiu sabendo o quanto foi importante e querida por nós.

Agora que perdi a minha avó Ina, vou procurar ajuda onde ela me ensinou a procurar: nos livros. Não que vá fugir da dor na literatura. Pegarei uma pilha para me escorar a mesa e ver se mantenho o equilíbrio. Amigos, aqueles que quiserem dar uma força e segurar o tampo da minha mesa, enquanto tento encontrar os livros que irão me ajudar a escorá-la. Não tenho vergonha de dizer que hoje preciso de vocês.

sábado, 7 de junho de 2014

A Individualidade no Relacionamento

Arte de Weberson Santiago


Se apaixonar é o como uma tentativa de contrariar a lei da física que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Queremos fazer tudo juntos, ficar o tempo todo grudados.
Busca-se a cumplicidade nas tarefas mais simples. Se pudermos, comemos juntos, tomamos banho juntos, acordamos e dormimos juntos, escovamos os dentes juntos.
Quando comecei a namorar a Natália, em minha casa tinha apenas uma cama de solteiro. Era o suficiente para que passássemos o fim de semana. Ignorávamos a impossibilidade de se mexer durante a noite. Não sentíamos as dores no corpo no dia seguinte. O que nos interessava era ficar perto um do outro.
E nunca achávamos que era o suficiente. A rotina de trabalho só permitia algumas horas aos finais de semana, geralmente do sábado à tarde ao fim do domingo. Durante a semana, eram apenas encontros rápidos. Nem quando ela tirava férias e praticamente morava comigo durante um mês era o bastante para matar a vontade.
Por isso resolvemos morar juntos. Sentíamos a necessidade de seguir adiante, dar um passo a mais na relação. A urgência do amor sempre foi maior do que os nossos medos. Eles estavam lá, em cada passo da nossa relação, mas ficavam pequenos quando decidíamos fazer a relação evoluir.
Assim que passamos a dividir o mesmo teto e a mesma cama, as manias entraram em conflito. Naquele começo da relação, com toda aquela vontade, as manias passam desapercebidas. Já no casamento, as manias respeitam a lei da física: duas manias não podem ocupar o mesmo lugar no espaço de uma casa.
Foi quando percebemos que aquela intensidade do namoro não poderia ser mantida, senão a relação se tornaria sufocante. Se continuássemos a querer fazer tudo juntos, acabaríamos tentando fazer o outro ser como a gente mesmo. Foi preciso ceder, respeitando o jeito de ser, a maneira de fazer. Ora um, ora o outro.
Combinamos que uma vez por semana cada um tem o direito de fazer uma coisa que lhe dá prazer e que não envolva o parceiro. Ela vai no salão se cuidar ou sai com as amigas. Eu vou ao clube praticar uma atividade física ou encontrar um comparsa pra jogar conversa fora.
E mesmo que não consigamos marcar no mesmo dia, aprendemos a aguentar ficar sem o outro neste dia de compromisso externo. Um exercício de liberdade, sem inveja e sem retaliação.
Nós acreditamos que, para o casamento funcionar, é preciso haver uma abertura para que cada um tenha ocupações que nos façam bem fora de casa para que o retorno e a possibilidade de estar em família sejam devidamente valorizados.
Com a vida de casados pusemos fim na distância. Aí percebermos que sem a distância não há saudade. Descobrimos a necessidade de preservar a individualidade para valorizar o reencontro.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Quem não dá liberdade sufoca. Quem se sente sufocado se afasta.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, p. 4, 07/06/2014, Edição Nº 1307.