sábado, 19 de março de 2016

O Sorriso das Solas




Arte de Weberson Santiago




Tenho saudade do tempo em que eu tinha tempo de lavar os meus tênis. Era um ritual.
Primeiro, removia os cadarços e deixava o par de molho na água com sabão. Pegava a escova de dente velha que minha mãe deixava em um copo no tanque da lavanderia. Esfregava a lateral das solas encardidas com as cerdas despenteadas da escova até que elas voltassem a sua cor original. Esfregava o tecido do tênis com a escova oval de madeira de fios amarelos e brancos duros para remover a sujeira.
O ritual de limpeza do tênis era uma forma de reviver a sensação de usar um tênis novo. Resgatar o efeito da primeira vez que você sai com um par que acabou de tirar da caixa e sente que pisa nas nuvens.
Não me importava que logo na chegada na escola o tênis fosse batizado com um pisão pelo colega marrento. Não reagia, não reclamava. Ele poderia sujá-lo, mas não me tirava a sensação de usar um tênis como se ele fosse novo de novo.
Eu esfregava a lateral como se escovasse os dentes da sola. Para que pisasse no chão com um sorriso dentro de mim, sem que me fosse necessário mostrar os dentes.
Na última vez que saí de férias, tive tempo de resgatar o ritual. Me lembrei o quanto é bom limpar meu par de sapatênis e sorrir com as solas. Fiquei pensando que não havia tido tempo de limpar meus tênis por um longo ano. E não o fiz porque limpar os tênis não é algo urgente. Não se é recriminado por andar com os tênis sujos. Quem usa um par encardido não é impedido de entrar num teatro ou num restaurante. A vida continua sem que se limpe os tênis.
Mas por mais que não seja urgente, limpar os tênis é algo muito importante. Enquanto percorremos os caminhos da vida, vamos acumulando poeira, colecionando sujeira e imundice. Não somente nas solas, mas também no mundo dos sentimentos.
Nossos sentimentos negativos vão deixando suas marcas. Os subprodutos emocionais de nossas experiências vão nos encardindo. Precisamos de um tempo para limpar essa sujeira e ficar renovados para os próximos caminhos.
Dar a devida atenção a uma dor da perda que não desgruda para buscar novas maneiras de se sentir vivo. Esfregar veementemente um risco feito em um momento de raiva para que ela fique de vez para trás. Cutucar uma pedrinha de mágoa que ficou presa nos frisos da sola e que atrapalha o pisar. Suavizar a marca da topada com uma das pedras do caminho.
Viver suja. Viver gasta. Viver estraga muita coisa. Mas só sujamos, gastamos e estragamos porque vivemos.
Viver é sujar e limpar. Gastar e renovar. Estragar e consertar.
Experimente o ritual de lavar o seu par. Saia da passividade. Deixe de reclamar da sujeira.  Não se contente com ela. O importante não é conseguir a proeza de não sujar, mas preservar a disposição para limpar. Faça as suas solas sorrirem!
UM CAFÉ E A CONTA!
| Uma coisa simples pode esconder um efeito surpreendente.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 19/03/2016, Edição Nº 1399.

sábado, 5 de março de 2016

Quando Eu Estiver Mal

Arte de Weberson Santiago



Quando eu estiver com raiva, me dê tempo para entendê-la e deixa-la passar. Se estou com raiva é porque me senti agredido. Pode ser que não tenha sido a intenção da pessoa, mas foi o efeito da atitude dela sobre mim. E pode ter sido intencional também. Só não me cobre que eu finja que não estou com raiva. Com o tempo, ela passa.
Quando eu estiver triste, permita que eu passe um tempo sem dar meu melhor e até sem ser aquele de sempre. Sou humano e não consigo manter a excelência o tempo todo. A tristeza é um sentimento que faz parte da vida. Não é saudável aquele que quer parecer feliz o tempo todo e empurra a tristeza para debaixo do tapete. Já dizia a música do Frejat: “que você descubra que rir é bom, mas que rir de tudo é desespero”. Encarar a tristeza me deixa mais sensível para me encantar com as coisas boas, ainda que pequenas, da vida.
Quando eu estiver mal-humorado, entenda que esgotei todos os meus recursos para enfrentar as adversidades. Me avise se estiver descontando em alguém, mas evite me cobrar o bom humor. Isso porque é o excesso de cobranças, as minhas próprias e as dos outros, é que me deixaram assim. Eu sei que não é bom conviver com alguém mal-humorado, mas eu também não gosto de ficar assim. Quando vejo que estou ficando, busco me recolher, me poupar e fazer coisas que relaxam para que eu possa retomar a alegria e a esperança.
Quando estiver irritado, me dê um tempo. Me deixe quieto no meu canto. Quando eu estou assim, fico como um porco espinho. Quem se aproximar, acaba se machucando. Não tenho orgulho disso, tenho até muita vergonha. Mas digo isso para o seu bem. Digo isso porque lhe fazer sofrer me irrita mais ainda. Quando eu estiver irritado, se proteja.
Se você quer me ajudar quando eu estiver com raiva, triste, mal-humorado ou irritado, me lembre as coisas que eu tenho de bom. Se você reconhecer algum esforço que eu tenha feito em nossa relação, a raiva ficará pequena. Se você me fizer um elogio, me sentirei importante e a tristeza ficará de lado, ao menos por um tempo. Se me contar algo engraçado, o mal humor deixará de tomar conta. Se me convidar para fazer algo que eu gosto, minha irritação desaparecerá.
Aprendi a respeitar meus sentimentos negativos e a lidar com eles. Eles não são causa, eles são efeitos. São os subprodutos emocionais dos eventos estressores do meu dia-a-dia. Eles não me dão o direito de descontar nos outros e isso eu reconheço que preciso melhorar. Só não me peça para fingir que não os sinto. Só não me cobre que deixe de senti-los imediatamente.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Quando eu me afundar em um sentimento negativo, salve minha vida me levando até onde o ar me inspire.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 05/03/2016, Edição Nº 1397.