segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Complementar[idade]

João não gostava de bagunça. Apesar de seus sete anos, não permitia nada fora do seu respectivo lugar. Janete bem que sabia disso, afinal, era empregada doméstica ali desde antes de seu nascimento. Naquela época era diferente, era tudo comum. O serviço de um casal, rotina sem graça. Agora, temia as broncas do menino sobre como arrumava a cama ou limpava a cozinha. João não admitia que ela colocasse qualquer louça dentro da pia, pois o ralo é um local cheio de micróbios e bactérias. E quando iria lavar a louça, tinha de ser com água quente. Sem contar os passos que deveria cumprir na limpeza, sempre correndo para que tudo estivesse em ordem quando ele chegasse da escola. Janete só não entendia o motivo de tudo aquilo, mas seguia fazendo sem questionar. João era filho único, de pai Engenheiro e mãe Advogada. Ambos chegavam em casa e eram obrigados a tirar os calçados antes de abrir a porta, indo direto a lavar a mão. A mãe era indiferente a João, queria ter tido uma filha. O pai era o cuidador desde os primeiros dias. Era ele quem acordava durante as noites quando João chorava, mas sempre achou que nunca fizera o suficiente para suprir a displicência da mãe. Ela, por sua vez, no pouco que agia para com João, se incomodava com suas manias, queixando-se para o marido. Ele compreendia a insatisfação dela, mas não conseguia deixar de cumprir as vontades do filho. E não seria Janete quem ousaria contrariar qualquer um deles.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Antes Tarde

- Moço, eu quero falar com o gerente.

- Ele fica naquele prédio, contorna aquele jardim, na entrada que tem por trás.

Caminha até lá.

- Pois não – diz ele.

- Oi moço, meu nome é Josy, e eu queria saber se você pode me ajudar. É que eu tive aqui no ano passado, mais ou menos no mês de Agosto, num evento que teve a noite. Aí, eu conheci um cara, nós saímos e depois de dois meses eu descobri que estava grávida.

- Espera – diz ele surpreso. Mas você conheceu ele naquela noite?

- Sim, sabe como é, né?

- Não, não sei, você tinha bebido muito?

- Ah, acho que sim...

- E quantas vezes vocês saíram? – questiona.

- Só aquele dia.

- Espera. Eu não sei como eu posso ajudar você...

- Sabe o que é, eu queria saber se tem como você ver quem entrou aqui naquele dia.

- Bom, mas você precisa provar que ele esteve neste evento?

- Não, eu preciso achar ele.

- Mas você não manteve contato com ele?

- Não, foi só aquele dia.

- Qual é o nome dele?

- Não sei – disse ela – eu sei que ele é moreno, cabelo e olhos pretos.

- E qual foi o dia?

- Não sei, mas acho que foi numa sexta-feira em agosto do ano passado.

- Não sei se conseguirei te ajudar. Eu posso levantar a lista de pessoas que entraram nesses dias, mas sem um nome, será difícil localizar.

- Eu reconheço ele pela foto.

- Mas eu não posso mostrar o cadastro das pessoas aqui. Além disso, você precisa tomar muito cuidado com a acusação que vai fazer. Caso o exame de DNA dê negativo, você poderá ser processada por danos morais.

- Me ajuda, por favor! – com voz trêmula e lágrimas nos olhos – Meu pai fica dizendo que meu filho vai me cobrar de mim quem é o pai dele e eu não vou saber falar...

- Eu vou ver o que posso fazer. Qual seu nome?

- Josy Maria da Cunha.

- Josi Maria da Cunha – ele escreve.

- Não, Josy com ipsilon.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Falar e Fazer

Falar. Como o fazemos. O tempo todo, de diferentes maneiras, por diversos meios. Falo, leio, escrevo, descrevo, observo, escuto, respondo, digo, entendo, compreendo, rabisco, desenho, desdenho, rio, emudeço, esqueço, perco, quieto, penso, traduzo.

Linguagem é uma ferramenta? Linguagem é um meio? Não sei, só uso!

O fato é que nos estimula, por qual seja a via, e produz um efeito. Nos modifica. E é modificada por nós, à medida que não é estática, é alterada e, portanto, recriada a todo momento. Perguntaram-me se a palavra tem poder. Tem. Por razão simples.

Quando ouvimos algo, este provoca um efeito. Cada pequena característica é importante: onde foi dita, por quem, em qual momento, a entonação, a eventual presença de outrem, pontos em comum com outras interações verbais de mesma característica ocorrida em outro momento e a própria história de interações dos falantes e ouvintes envolvidos.

Para clarificar, trago um exemplo: na minha sala de trabalho existe uma tela pintada a mão. Enquanto estímulo, esta tela é estática, está sempre no mesmo lugar e com a mesma cor e iluminação. Entretanto, ela já eliciou os mais diversos tipos de reações, comentários, sentimentos. E até diferentes sentimentos para a mesma pessoa em meses diferentes.

Uma conclusão acerca do poder da palavra seria: já que ela tem poder, se eu repetir muito uma coisa que quero, ela poderá tornar-se realidade?

A resposta é não, pois seu efeito não é linear. Explico: não é a repetição excessiva que vai mudar alguma coisa, mas a reflexão acerca das condições que mantêm aquilo que se quer mudar ou conseguir. Uma frase colocada em lugar estratégico pode ajudar nesta reflexão, à medida que produz um pensamento sobre aquele assunto quando visualizada. Entretanto, reler exaustivamente na esperança de tornar-se realidade é uma atitude em vão.

O que se poderia conseguir é uma boa dose de fadiga. Sejamos estrategistas. Deixe-se distanciar da questão e pensar outras coisas, pois ela permanecerá a ser respondida e talvez a resposta possa surgir quando você estiver sobre outro contexto. Voltemos à pratica: sempre que estou me exercitando, por exemplo, costumo me abastecer de idéias sobre os mais diversos assuntos. Se tenho um estímulo no meu espelho, seja uma frase ou pergunta, pode ser que ao exercitar-me ou fazer outra coisa consiga pensar em uma resposta ou em uma atitude a ser tomada naquele sentido.

-oOo-

Crônica dedicada a amiga Cida Cilli que, com sua curiosidade incessante, incentivou-me com uma pergunta a colocar meus pensamentos sobre este assunto sob a forma de texto.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Angústia

Detesto quando fico antevendo a possibilidade de ocorrência de algum problema cotidiano. Conflitos interpessoais que, de fato, me tirariam do sério. É como se vivesse o conflito já de antemão, inundado por diálogos de divergência. Todos os argumentos imaginários fazem sentido para aquele interlocutor, como se o que eu conheço a respeito dessa pessoa confirmasse aquilo que seria dito por ela. Não obstante, é grande o número de situações em que pequenos detalhes geram grandes conflitos. Conclusões precipitadas, tiradas por quem viu apenas parte da situação. Imaginar que estou nessa situação me dá a sensação de que a enfrentaria com maior facilidade. Enfrentar o que, se nada aconteceu? A esta altura nem adianta mais este tipo de pergunta, a angústia já foi instalada e aperta o peito. Sinto que meu corpo é o palco dramático onde forças contrárias se digladiam. A apreensão é resultado da consciência dessa luta.