quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Pára de me analisar, Doutor!

Não sei por que entro naquela padaria toda semana no intervalo entre a terapia e a aula que dou na faculdade. Eles tiram um café da máquina, colocam o leite frio e esquentam no microondas. Qualquer apreciador de café acharia isso um tanto controverso. Quem inventou tal procedimento deveria ganhar o prêmio criatividade em soluções. O lugar até que favorece, é bem no meio do caminho entre um compromisso e o outro. Um dia resolvi comer um sanduíche natural, mas quando foi pegar na vitrine, a atendente disse que havia sido feito outro dia e que não estava bom. Qual a razão para o sanduíche estar exposto?

Só sei que vou lá, talvez por precisar desta pausa após a sessão de terapia. Bom, do atendimento não posso reclamar. O Jonas manda bem, atencioso e bem humorado. Na última vez que fui lá, semana passada, aguardava o pedido (o tal leite com café) enquanto folheava o jornal. Ao lado chegou uma mulher e começou a conversar com o Jonas. Sem que ela fizesse o pedido, ele chegou com uma cerveja. “Outro dia comi o misto de sempre feito por aquela funcionária e tava bem gostoso, você tá perdendo pra ela, Jonas” – disse ela. No alto de seus dezoito anos ele responde: “Você perguntou quem ensinou pra ela? O aluno não faz melhor que o professor!” – e vai em direção a um cliente que chega. “Às vezes faz!” – pensei alto, o que fez com que ela me olhasse.

Bati o olho no seu uniforme e continuei: “Às vezes o aluno faz melhor que o professor. Você é professora?” (a idade aparente de 35 anos e o uniforme me pareceram indícios). “Não, sou aluna, mas às vezes o aluno pode fazer melhor.” Ela relatou que faz um curso noturno ali perto, que está terminando, e que passa por lá com freqüência. Disse que era professor e fui indagado sobre qual área. “Sou psicólogo” - respondi.

Imediatamente ela faz cara de espanto e lança um “você não vai ficar me analisando, vai?”. O Jonas achou a profissão interessante e acrescentou um “Doutor” no grupo dos pronomes referentes a este que vos escreve. Aliás, essas são as duas mais ouvidas no exercício das minhas ocupações. Sou o leitor de mentes, quando não o manipulador. Minhas habilidades seriam suficientes para fazer análises profundas de uma mulher que toma duas cervejas e come um misto quente com alface e avisa o Jonas que as aulas estão acabando (leia-se: não irá freqüentar a padaria em breve). Costumo responder que não trabalho em hora de lazer, ou seja, que desligo o botão de análises quando não estou trabalhando.

Sobre o “Doutor”, desisti de explicar que não tenho essa titulação, sobretudo após perceber que o tratamento é uma forma de respeito, e porque não, de afeto. Depois, é com atitudes que poderei demonstrar o outro lado do “Doutor”, dizendo de outra forma, nada que rachar a marmita no refeitório não diminua a distância gerada pelo termo. As reações iniciais de espanto passam. Não tenho esse medo danado da intimidade, não sofro com a possibilidade de me retirarem de um status privilegiado e me considerarem uma pessoa comum. Tão comum que insisto nessa padaria.

Continuamos o papo, demos risada de uma situação, discutimos uma notícia do jornal. Quando me despedia, a mulher disse “obrigado pela conversa” e o Jonas “até semana que vem, Doutor!”.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Sobre o tempo, o espaço e as relações humanas

O tempo é uma questão que sempre intrigou a humanidade. O debate sobre este conceito mobilizou filósofos e cientistas durante os últimos séculos e ainda é tema de discussões até hoje.

Immanuel Kant, em seu escrito Crítica da Razão Pura1 afirma que "o tempo nada mais é que a forma da nossa intuição interna" (p. 54). Para outros filósofos, o tempo é mais do que isso, algo que é o que é independentemente de nós humanos (ou seres dotados de consciência) e da nossa "intuição interna". O filósofo McTaggart argumenta que o tempo não tem característica alguma por ser irreal. Em seu artigo A Irrealidade do Tempo discorda de Kant afirmando que o tempo não existe, embora tenhamos a ilusão de tempo.

Filosofia do tempo à parte, é possível encontrar discussões do conceito em outras áreas do conhecimento, por exemplo, o tempo na física. O professor Henrique Fleming2 aborda as contribuições da física para a natureza do tempo e de outros conceitos científicos fundamentais em um artigo publicado na Revista USP3. São três questionamentos e, porque não, problemas encontrados.

Para o autor, o tempo flui em um sentido bem definido, cuja manifestação mais dramática é o nosso envelhecimento biológico. Surpreendentemente, a inclusão deste dado da realidade (a "flecha do tempo") no ideário da física teórica constituiu um dos grandes problemas dos últimos cem anos. O primeiro problema dos três consiste em digerir esse surpreendente resultado, cabendo aos físicos recuperar, dentro do seu formalismo, a naturalidade das concepções intuitivas de passado e futuro. É uma tarefa muito técnica da qual se pode mencionar: só para sistemas com um grande número de constituintes existe, nítido (mas probabilístico), o sentido do tempo. Para sistemas constituídos por um pequeno número de elementos, perde-se a sua flecha. Foi Ludwig Boltzmann, numa das maiores realizações da história da física, mostrou que a flecha do tempo é um fenômeno estatístico. A probabilidade de o ancião rejuvenescer é essencialmente zero, enquanto que a de um jovem envelhecer é essencialmente 1.

O segundo problema, de acordo com Fleming (1989), diz respeito à individualidade (e objetividade) do conceito de tempo. Em 1908, após ter estudado a teoria da relatividade, o grande matemático Hermann Minkowski iniciou sua célebre conferência dizendo: "As visões do espaço e do tempo que eu desejo expor diante dos senhores brotaram do solo da física experimental, e aí está a sua forca. São radicais. De agora em diante o espaço em si mesmo, e o tempo em si mesmo, estão designados a dissolver-se em meras sombras, e somente em uma espécie de união dos dois subsistirá uma realidade independente". Esta união é o espaço-tempo, e aprendemos com a teoria da relatividade que a sua decomposição em espaço e tempo separados depende do observador, isto é, é subjetiva.

Mais surpreendente ainda é o terceiro, fruto da relatividade geral, lançada por Einstein em 1916. Aqui aprenderemos que é possível agir sobre o espaço-tempo, e, portanto, sobre o tempo. Deixa o espaço-tempo seu papel passivo de palco dos acontecimentos para tornar-se, ele mesmo, um sistema físico, e atinge-se, finalmente, a possibilidade de estudar o sistema físico por excelência: o Universo como um todo. A história do Universo é a história do tempo, como bem a designou S. W. Hawking, grande físico teórico inglês contemporâneo (Fleming, 1989).

A noção do tempo na física, assim como na filosofia, teve implicações diretas para a psicologia. Tomando por base o legado de B. F. Skinner, o conceito de espaço-tempo está intrinsecamente ligado a sua proposta de comportamento operante. Segundo Skinner, este caráter ativo e probabilístico do comportamento humano deveria ser o objeto de estudo da psicologia. O espaço-tempo é considerado sem extrapolações subjetivas ou “intuitivas”. Skinner criou metodologias de registro acumulado de comportamentos para estudar os organismos, atribuindo o status devido ao conceito em uma psicologia experimental. Outros pesquisadores operantes apontaram a influência dos prazos e de seu anúncio para o comportamento humano e os efeitos de diferentes intervalos de tempo na ocorrência de comportamentos.

Para as relações humanas, interpessoais ou individuais, o tempo se apresenta como uma variável crítica. Embora nosso comportamento sobre o mundo seja ativo e o sistema espaço-tempo não tenha um papel passivo, a análise que se faz das relações humanas nem sempre considera tais características. As relações humanas podem se alteradas de forma biunívoca pelo sistema espaço-tempo. O próprio debate criado em torno do tempo na história da humanidade nas diferentes áreas do conhecimento, este diálogo algumas vezes espicaçante entre autores (relação humana), está circunscrito pelo espaço-tempo.

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1. Kant, I. (1983) Crítica da Razão Pura. Os Pensadores: Kant, trad. Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural.

2. Professor do Instituto de Física da USP, no departamento de Física Matemática. Site: hfleming.com.

3. Fleming, H. (1989) “O Tempo na Física”. Dossiê Tempo, n. 2, pp. 3-6. São Paulo: CCS-USP.

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Dedico este ensaio ao meu irmão Caio, pelo apoio que me deu em São Paulo na última vez que lá estive e também pela sua breve mais importante passagem pela Física da Unicamp.


segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Dias de "(a)cão"

Tem dias que o inusitado parece a ordem. Ou tem dias que a desordem prevalece. Seja lá como for, não esperamos passar por determinadas situações. O dia ia indo bem, até que fui sacar um dinheiro no caixa do banco. E não é que o eletrônico recusou-se a me dar. Ironicamente o cheque do salário depositado no quinto dia útil não poderia ser sacado.

Um contratempo que não precisaria acontecer no dia do depósito da dissertação pra qualificação. Como sairia do apartamento e iria à Cidade Universitária sem dinheiro da passagem? Todos os telefones do banco insistiam na musiquinha até o ocupado. Já que entender o problema não parecia possível, arrumar alguém para emprestar o dinheiro seria a solução. Quando consegui quatro reais com um amigo, achei que não ia dar pé. Passei na casa do meu irmão e não o encontrei, liguei pro celular e pedi seu carro, assim chegaria com menor atraso e almoçaria com o empréstimo mais um e sessenta das moedas.

Chego na universidade e algumas decisões importantes, correções e impressões. Tudo parecia indo bem até que percebi que tinha de encadernar as seis cópias a três reais cada. Mais dois amigos me emprestam vinte reais. Corrida contra o tempo, documentos e assinaturas. Era rodízio do carro, estar na garagem antes das dezessete horas. Reservo a sala para a argüição da banca qualificação. Entrego as cópias e documentos, que são protocolados. Dever cumprido, depósito feito. Devolvi o carro no prazo.

Meses atrás, ia dirigindo o carro do meu avô com ele no banco do passageiro. Íamos a São José do Rio Pardo. Ele para uma consulta oftalmológica e eu para uma reunião de trabalho. Deixei-o no ambulatório, fui à reunião e retornei quando terminada. No guichê do centro médico onde o deixara a enfermeira explicou que aquele não era o local da consulta e que ele havia pego um táxi para o local correto. Com as coordenadas, cheguei ao prédio e o encontrei. Disse-me que esquecera a carteira no carro, não tinha dinheiro para o taxi, então, pediu à secretária dez reais e foi ao destino correto. Enquanto contava a proeza, os demais da sala achavam graça da iniciativa para a resolução do problema. Ele pediu que eu descesse no carro para pegar a carteira, passou o cartão da consulta e voltamos ao centro médico para devolver os dez reais à enfermeira.

Lidar com o contratempo. Aceitar que não temos controle e agir com o que dá pra controlar.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Recomeço

Às vezes nos sentimos mais ou menos donos de nossa trajetória na vida, independentemente da idade. É muito comum ouvir pessoas que não se sentem bem com os rumos que sua vida e suas relações tomaram. Tal incomodo vem aliado, muitas vezes, a algum acontecimento relevante que deixou tal estranhamento como resquício. Não é raro sentir que uma avalanche de problemas chegou e nos pegou de surpresa. Entretanto, algumas palavras estão sendo muito usadas no âmbito da Psicologia: aceitação e enfrentamento. A Aceitação implica no envolvimento ativo e consciente dos eventos pessoais sem tentativas desnecessárias de mudar sua freqüência ou forma (afinal, estes eventos permanecerão existindo de qualquer maneira!). Já o enfrentamento trata-se de criar estratégias, considerando o sujeito e as demandas ambientais, incluindo as características dos outros indivíduos, para tomada de decisão. Ao que parece, o recomeço constante é algo com o qual nos deveríamos nos acostumar.