Não sei por que entro naquela padaria toda semana no intervalo entre a terapia e a aula que dou na faculdade. Eles tiram um café da máquina, colocam o leite frio e esquentam no microondas. Qualquer apreciador de café acharia isso um tanto controverso. Quem inventou tal procedimento deveria ganhar o prêmio criatividade em soluções. O lugar até que favorece, é bem no meio do caminho entre um compromisso e o outro. Um dia resolvi comer um sanduíche natural, mas quando foi pegar na vitrine, a atendente disse que havia sido feito outro dia e que não estava bom. Qual a razão para o sanduíche estar exposto?
Só sei que vou lá, talvez por precisar desta pausa após a sessão de terapia. Bom, do atendimento não posso reclamar. O Jonas manda bem, atencioso e bem humorado. Na última vez que fui lá, semana passada, aguardava o pedido (o tal leite com café) enquanto folheava o jornal. Ao lado chegou uma mulher e começou a conversar com o Jonas. Sem que ela fizesse o pedido, ele chegou com uma cerveja. “Outro dia comi o misto de sempre feito por aquela funcionária e tava bem gostoso, você tá perdendo pra ela, Jonas” – disse ela. No alto de seus dezoito anos ele responde: “Você perguntou quem ensinou pra ela? O aluno não faz melhor que o professor!” – e vai em direção a um cliente que chega. “Às vezes faz!” – pensei alto, o que fez com que ela me olhasse.
Bati o olho no seu uniforme e continuei: “Às vezes o aluno faz melhor que o professor. Você é professora?” (a idade aparente de 35 anos e o uniforme me pareceram indícios). “Não, sou aluna, mas às vezes o aluno pode fazer melhor.” Ela relatou que faz um curso noturno ali perto, que está terminando, e que passa por lá com freqüência. Disse que era professor e fui indagado sobre qual área. “Sou psicólogo” - respondi.
Imediatamente ela faz cara de espanto e lança um “você não vai ficar me analisando, vai?”. O Jonas achou a profissão interessante e acrescentou um “Doutor” no grupo dos pronomes referentes a este que vos escreve. Aliás, essas são as duas mais ouvidas no exercício das minhas ocupações. Sou o leitor de mentes, quando não o manipulador. Minhas habilidades seriam suficientes para fazer análises profundas de uma mulher que toma duas cervejas e come um misto quente com alface e avisa o Jonas que as aulas estão acabando (leia-se: não irá freqüentar a padaria em breve). Costumo responder que não trabalho em hora de lazer, ou seja, que desligo o botão de análises quando não estou trabalhando.
Sobre o “Doutor”, desisti de explicar que não tenho essa titulação, sobretudo após perceber que o tratamento é uma forma de respeito, e porque não, de afeto. Depois, é com atitudes que poderei demonstrar o outro lado do “Doutor”, dizendo de outra forma, nada que rachar a marmita no refeitório não diminua a distância gerada pelo termo. As reações iniciais de espanto passam. Não tenho esse medo danado da intimidade, não sofro com a possibilidade de me retirarem de um status privilegiado e me considerarem uma pessoa comum. Tão comum que insisto nessa padaria.
Continuamos o papo, demos risada de uma situação, discutimos uma notícia do jornal. Quando me despedia, a mulher disse “obrigado pela conversa” e o Jonas “até semana que vem, Doutor!”.