sábado, 22 de fevereiro de 2014

Cabeça de Inseto

Arte de Weberson Santiago


Outro dia fiquei intrigado com aquela quantidade de insetos que morrem no vidro do nosso carro quando pegamos a estrada durante o entardecer.
Eles se esborracham com tanta força que não se vê nem asa, nem pata pra contar história. E ainda dão um trabalho pra tirar seus restos em forma de gosma do vidro e do farol do carro.
Pesquisando, descobri que os insetos, habitantes da terra muito mais antigos que nós humanos, usavam a luz da lua para se orientar no caminho durante a busca de alimento. Assim, conseguiam se alimentar e pegar o caminho de volta para onde saíram.
Por isso que hoje, qualquer luz artificial colocada em seu caminho lhe desorienta e, geralmente, lhe atrai. Este comportamento geneticamente selecionado é mais forte do que a sua própria capacidade de lutar pela sobrevivência. A busca desenfreada pela luz pode leva-lo à morte. É o caso tanto dos que vão ao encontro de um veículo em movimento, quanto daquele inseto que invadiu sua sala e morreu de tanto dar cabeçadas na luz que fica entre você e a sua televisão.
Logo após pensar na obsessão dos insetos pela luz, cheguei à conclusão que nós humanos não somos muito diferentes disso.
Pense em algum tipo de comportamento persistente que tem consequências ruins a longo prazo para entender que a nossa insistência pode ser perigosa. O pior é que muitas vezes não temos consciência disso.
É o caso de quem consome álcool ou drogas. As drogas liberadas ou proibidas são como amortecedores. Diminuem o impacto das experiências cotidianas. Seu uso é um comportamento de esquiva de sentimentos negativos resultantes da nossa relação com o mundo. E como funciona temporariamente – a curto prazo – seu uso tende a aumentar de frequência e intensidade.
É uma questão de tempo para que as cabeçadas comecem a acontecer repetidamente – a longo prazo – na forma de excesso de consumo, comportamentos de risco (beber ou se drogar e dirigir na estrada, por exemplo) e a própria dependência química. Um caminho sem volta cujas cabeçadas na lâmpada são as recaídas. Há ainda o risco de numa dessas, acabar como o inseto no para-brisa, perdendo a vida.
Outro exemplo é aquele que fica viciado no jogo da sedução. Busca desenfreadamente confirmar o flerte, mas desiste da outra pessoa quando percebe que ela está verdadeiramente envolvida. Quer apenas o desafio da conquista e não o compromisso da relação.
Comportamento selecionado culturalmente entre os homens, hoje é parte do repertório das pegadoras. Trata-se de um vício em sentir aquelas reações fisiológicas típicas da paquera, em querer viver a maior intensidade possível das emoções.
Um escravo das sensações de curto prazo tem dificuldade de construir relacionamentos duradouros a longo prazo. Quando para pra pensar, já é um tiozão no meio da balada. Quando percebe o padrão de relacionamento já é chamada de tia pelos filhos das amigas. Há quem prefira continuar a dar cabeçadas quando o assunto é relacionamento afetivo e sexual.
Viver em buscar prazeres imediatos é o que nós temos em comum com os outros animais. A capacidade de perceber onde esses prazeres nos levam é o que nos diferencia das demais espécies.
O problema não é dar uma cabeçada na vida, é ter cabeça de inseto e ignorar todas as consequências. O problema é quando a cabeçada não lhe faz mudar de direção.

UM CAFÉ E A CONTA!
| Você é escravo de qual repetição? Que tipo de comportamento você não consegue mudar?

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 22/02/2014, Edição Nº 1290.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Uma Nota Melhor Como Prova de Amor

Arte de Weberson Santiago



Uma vez, logo no início do namoro, meu pai resolveu provar seu amor para minha mãe. Ambos tinham 14 anos. Minha avó era uma rígida professora da escola onde eles estudavam.  Aproveitou que a dona Rosa havia saído de casa, foi até os materiais de trabalho dela e retirou a caderneta da disciplina de trabalhos manuais, da turma em que minha mãe estudava.
Com cuidado apagou o valor e, imitando a letra da sua mãe, aumentou em um ponto a nota de sua namorada. Correu o risco de ser descoberto, mas queria que ela percebesse que ele correria riscos por ela. Não preciso dizer que ela considerou aquilo uma grande prova de amor.
A travessura adolescente foi revelada mais de quarenta anos depois. De início, minha avó pensou que fosse brincadeira. Depois que meu pai insistiu a autoria do feito, ela acabou dando risada da situação. Se ela tivesse descoberto a adulteração naquela época teria, no mínimo, lhe aplicado um castigo.
Eu sou professor há cinco anos em uma universidade. Há quatro anos passei a dar aulas pra Natália. Todos os semestres, com exceção de um, estive à frente da sua sala com alguma disciplina.
No começo, a Natália reclamava que tinha dificuldade de prestar atenção no conteúdo das minhas aulas. Quando ela percebia, estava prestando atenção nos meus gestos. Tentava ela se concentrar no que eu falava, logo se distraía com o movimento dos meus lábios ou das minhas mãos. Foi preciso um ano inteiro para ela conseguir ficar mais sob controle do conteúdo da aula do que do namorado sendo o seu professor.
Sempre me preocupei com o fato de ter entre meus alunos a minha namorada, hoje minha mulher. Temia que isso atrapalhasse o meu trabalho como professor. Nem sempre é fácil separar as coisas, mas sempre busquei evitar qualquer tipo de problema. Pensava que corria o risco de viver um mal entendido. Me imaginava sendo apontado diante da insatisfação natural de algum aluno com meu trabalho ou com uma nota que lhe dei.
Tenho regras rígidas sobre meu papel como professor e sobre as habilidades e competências que preciso desenvolver em meus alunos para que eles se tornem bons profissionais.
Em todo este tempo, nunca a favoreci com qualquer tipo de regalia por ser minha mulher. Não lhe dei nota além do que ela realmente conseguiu. Nunca lhe dei dicas de assuntos escolhidos entre a matéria para ser uma questão de minhas provas. Muito pelo contrário, talvez tenha sido até mais rigoroso em alguns momentos – e a vejo concordando com a cabeça quando estiver lendo isso.
Ainda assim, a Natália sempre teve um bom desempenho. Com isso, pude concluir duas coisas boas: durmo tranquilo por me manter fiel aos meus princípios e tenho um baita orgulho de que ela, sem qualquer tipo de favorecimento, tenha tido boas notas e nunca tenha ficado de exame ou de dependência em minhas disciplinas.
Existem tantas outras maneiras de provar meu amor do que facilitando sua vida acadêmica: preparando surpresas, dividindo planos de futuro e com declarações de amor. O que meu pai fez foi uma aventura de adolescente. Não pude e posso fazê-lo agora sem uma crise de consciência, sem se sentir culpado pela injustiça com as outras pessoas.
Meu pai me ensinou a dar provas do meu amor, mas primeiro me ensinou a importância da honestidade.

UM CAFÉ E A CONTA!
| É tão bom poder olhar pra trás e ter orgulho de uma trajetória.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, primeiro caderno, p. 2 08/02/2014, Edição Nº 1288.