terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Eu Queria Ser Negão

Arte de Weberson Santiago



Eu queria ser negão. Queria que minha malandragem empurrasse a porta bang bang e entrasse nos lugares antes de mim.

E quando uma pessoa reparasse no meu black power, veria nos fios ouriçados a forma volumosa da minha atitude, o que soaria como um tapa na cara sem luva de pelica.

A escultura capilar seria a expressão a causar o impacto e só depois iria mostrar uma gentileza aqui, deixar escapar um sorriso ali. Não demoraria a deixar evidente que depois da malandragem mora o bom-mocismo.

O duro é a cara de anjo-barroco. A pele branca com cabelos cacheados em ondas douradas sinalizando pureza e inocência. Uma cara de que os gestos e as palavras serão sempre reforços positivos. Daí que não aparece lugar para a malandragem, e o caminho é o da sucessão de frustração.

Toda aparência tem um custo para ser mantida. A cara de bom dia e a postura de mesa de café da manhã de sábado não duram a semana toda. E se pegar surpreso pelo positivo é mais fácil do que se ver frustrado diante do negativo. Passo boa parte do tempo consertando a imagem barroca que fizeram de mim e, por isso, eu queria ser negão.

Natália era a criança da caixa de boneca. Era apertar a barriga para ouvir uma frase doce. Acontece que na escola, aos 12 anos, era alvo de atitudes hostis das outras meninas, na entrada e na saída. Aprendeu que um grupo de bons amigos é uma necessidade para sobreviver nessa idade.

Anos depois, descobriu o motivo de ter sido escolhida como alvo quando veio a trabalhar com uma delas, que deixou escapar que elas combinavam de maltratá-la porque ela era “muito bonitinha”. E ela que chegou a acreditar que era metida, e que a agressividade era produzida por algo que ela era ou fazia.

Em tempos de barriga grande, fui pedir uma bolsa a um alto cargo da universidade durante a graduação. O tio executivo olhava para minha cara como quem dissesse: “Gordo, bem vestido, com essa cara de família rica, só deve estar querendo economizar um trocado”. Atendeu somente o pedido dos outros. Por mais essa, eu queria ser negão.

Queria ser negão para me incluir reclamando que sou excluído da população, sem nenhum senão. Pra mostrar que na cor da pele mora sempre uma questão e, escondida por debaixo dela, uma vontade de inclusão, que quer ocupar o lugar da sonegação. O difícil é aceitar que o melhor sentimento não é o da comiseração.

Eu queria ser negão e queria negar sempre e ser cada vez mais negão. A ponto de dizer ao próximo e ao mundo sempre sim ou sempre não, mas, como meu patrão tem sempre razão...








Para Fábio Vieira.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

A Rosa do Profeta

Arte de Weberson Santiago


Na ponte entre o Augusto Amato (92 anos) e o Augusto Amato Neto (27 anos), a Roseira mais frondosa já não embeleza mais o caminho. Perdemos nossa Rosa aos 88 anos. Brotou no caminho do Augusto Amato quando ele tinha 20 anos, se enamoraram por sete e viveram o casamento por 64. Um amor que soube atravessar as estações e nunca deixar de florescer.

Há três anos, descobrimos uma insuficiência cardíaca da Rosa, a qual investigada profundamente revelou uma beleza da vida. Suas três principais veias de circulação encontravam-se 100%, 70% e 40% entupidas, respectivamente. No entanto, as veias menores foram gradativamente se expandindo e deram a volta pelo lado externo do coração para garantir certa circulação. O médico especialista estimava que aquele quadro se desenvolvia há pelo menos 10 anos.

Embora belo, o episódio revelava uma impossibilidade de cirurgia e um prognóstico desfavorável. Em família, decidimos apoiá-la para que vivesse feliz o quanto fosse. Dona de uma energia de vida descomunal, sua porção de alegria era capaz de contagiar o mais sisudo dos mal-humorados. Era realista, mas ao mesmo tempo otimista. Agia na vida como se não existisse empecilho para aquele que tem vontade, e como se não faltasse resposta para quem tem a coragem de formular a pergunta.

Professora, ainda jovem lecionava aos filhos dos Industriais e Comerciantes Mocoquenses no Externato Santa Terezinha, aberto na própria casa do seu pai. Seus alunos eram os primeiros colocados no concurso para o Ginásio. Na Escola Oscar Villares, fundou uma cozinha para as aulas de Economia Doméstica e era rígida nas aulas de Trabalhos Manuais. Era o Taylorismo da Dona de Casa, em ritmo de fábrica na cidade de Mococa.

Na década de 70, encarava a estrada até Ribeirão Preto no volante para a então divulgada Psicoterapia. Reorientou sua vida em sessões com uma Psicóloga, demonstrando seu pioneirismo. Com sua filha, Rosa Maria (Maí), trouxe os natais mágicos de luzes e árvores de Natal para a cidade de Mococa na Ponto Verde Objetos, hoje Das Rosas Decorações. Como matriarca, foi verdadeiramente excepcional. Esteve incondicionalmente presente, cuidando, incentivando e reconhecendo aqueles que ela amava. Ela era a maior Roseira de nosso jardim.

Com a força desta história e com o significado simbólico de ser Augusto Amato Neto, fiz questão de ser presente na vida dela como ela foi durante toda a minha. Uma vez ouvi de um poeta que tenho cara, postura e voz de Profeta. O Profeta é aquele que sabe retirar a sabedoria da experiência do vinho, sem perder a estrutura do sangue.

Ocorre que o defeito do profeta é olhar pra cima com a mão no queixo e querer antecipar o que está por vir. É o vício de tratar o sentimento como se fosse o cliente e antecipar aquilo que lhe trará insatisfação. Com meu primo mais velho, instituímos o almoço na casa dos nossos avós toda sexta, assim que voltamos a morar em Mococa. E naquela mesa, toda semana, adubamos a Roseira e não deixamos de colocar água no Cravo.

Mesmo com o diminuir do fôlego, com a fraqueza da circulação e com o excesso de remédios, passamos aquele que foi o melhor de todos os Natais. Passado o ano novo, o Profeta foi tomado por uma aflição crescente a cada dia, mas errou na previsão. Não soube ao que atribuir a agonia que o havia escolhido. E sete dias antes da morte da Rosa, sentou pra discutir o futuro com a mulher. Sem se dar conta, quis ver como andavam as raízes das duas belas flores que tem alegrado o jardim da sua vida. Agindo como se antecipasse a perda da grande Roseira, o Profeta ignorava a própria profecia.

Houve tempo pra o namoro florescer e pra Rosa se despedir. Avisou o Profeta sete dias antes de partir que precisava arrumar um jardineiro, e que este ano inteiro em que ela mandava o dela cuidar do seu jardim, já havia sido a dependência suficiente. Internada, passou uma noite acompanhada de seu terceiro e último filho. Acordou as duas da madrugada e passou duas horas revendo sua vida enquanto contava histórias. Mais uma vez precisou de um motivo para continuar adiante. Disse que queria rever o seu pai, enquanto aceitava a partida.

No dia seguinte, recebeu a visita do Profeta. Pediu que ele sentasse ao seu lado e segurou forte a sua mão. O Profeta esteve firme nessa missão, conseguiu lhe retirar alguns sorrisos, beijou muito seu rosto enquanto disfarçadamente puxou o ar o mais forte que pôde, na tentativa de não se esquecer do perfume da Rosa. O cravo passou toda a tarde ao seu lado e reiterou a ela o amor de 72 anos. O ar começou a lhe faltar no fim da tarde daquele dia, precisou ir para a UTI. Foram 48 horas respirando por aparelhos e se comunicando por bilhetes com a família.

E como ela sempre quis, no ritmo mais perfeito da cadência da vida, na última sexta, às 21h30min seu coração parou de bater. Partiu a Rosa do Profeta. Na sua última lição como professora da arte da vida, fez questão de ensiná-lo todos os segredos de como cuidar do seu próprio jardim. Foi lendo seu livro de receitas que o Profeta aprendeu a ser padaria dentro de casa. E desta passagem, ao decifrar a profecia, concluiu o Profeta: agora que a Rosa não faz mais parte do nosso jardim, será sempre regada e estará sempre florida em nosso coração.


-oOo-

Enquanto o Profeta contou com a ajuda da grande Roseira, plantou um mar de Rosas no seu jardim, na frente e em toda a lateral da sua morada. E como ritual da partida, plantou uma Roseira lilás que irá florescer em breve, junto com as outras.

Para Rosa Scarparo Amato
Rosinha, Minha Avó Rosa, Eu Te Amo!

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Águas passadas movem moinhos

Arte de Weberson Santiago

Se você prestar bem a atenção, verá que águas passadas movem moinhos. Afinal, a água percorre caminhos, evapora, condensa, cai na terra e move o que estiver na sua frente. Não escolhe entre empurrar os peixes e mover os moinhos ao invés de levar consigo montanhas com casas.

O mundo é mais catastrófico do que a gente gostaria que fosse. Parece difícil aceitar o quanto lidamos com o incontrolável e com o imprevisível. Dizer que era previsível é ignorar que o que não é cuidado fica à margem durante as mudanças bruscas. Não se pode prever aquilo que não foi verificado.

Eu já senti que os meus moinhos eram movidos por águas passadas e, o pior, já experimentei a sensação que as palavras de minha boca teriam o mesmo efeito de um tsunami. A voz de um fantasma que movia minha boca como um ventríloquo e cuja consequência seria a calamidade. Sem muito esforço me vi como o responsável pelo desastre.

Exigir que toda água que passe seja nova é puro egoísmo. É querer um guarda roupa do tamanho que nunca repita o visual, enquanto cuidar da imagem é estar sempre com o humor de quem está de saída e não com o humor de quem está atrasado.

E é durante a tragédia que o aperto do peito se junta à voz entalada na garganta e passa a corroer por dentro. Ao ser lançada como um raio, a verdade trás nuvens negras e carregadas. Estas vão se esvaindo ou se dissipando em chuva até que se aviste um primeiro pedaço do horizonte.

Ora! A água passada que move um moinho novamente não e a mesma água. Foi alterada pela experiência dos seus estados característicos. Quando no estado sólido, promove a sensação de frio na espinha e o contato é capaz congelar. No estado líquido vive a se derramar e a escorrer por aí. No estado gasoso, não aceita ficar por baixo.

Que caia a chuva que molha a terra, que penetra no solo e é puxada pelas raízes. Que sobe até as folhas e vai em direção ao sol e se faz atmosfera para os outros. Na estação das nuvens, desembarca o calor e embarca a mentira levando consigo o medo.

Aproveitei as águas passadas para lavar a alma e agora estou na espreita de que o vento traga novos ares.