sábado, 24 de dezembro de 2011

O Natal Sempre Presente

Arte de Weberson Santiago



Outubro de 1955. A família acompanhava Bernardo Agnelli em uma viagem de trabalho pelo interior do Estado de São Paulo. Passavam por Santo André para uma visita ao compadre Anselmo e a comadre Bibiana. Após o amoço, saíram do restaurante caminhando quando passaram diante de uma grande Relojoaria, localizada na Rua Barão de Rio Branco, ponto forte do comércio local.

Vicenzo, então com sete anos, apontou para o interior da loja, chamando a atenção de sua mãe, Giuditte. “Olha mãe, o passarinho que fala a hora!”, disse ele. A parede repleta de Cucos era fascinante. Os entalhes de madeira, esculpidas à mão, em diversos tamanhos e formas arrebatou a todos. Vecenzo fez com que entrassem na loja.

Bernardo pôs-se a explicar: “É um cuco, bambino! Um pássaro chamado  Cuco Canoro, que canta em duas notas que soam como ‘Cu-co!’ Ele avisa quando as horas se completam. Essa raça não sabe fazer ninho, Vicenzo, por isso ocupa o ninho de outros pássaros ou escolhe morar no relógio. Nas redondezas da casa do seu avô Luigi, na Itália, haviam muitos Cucos. Eles apareciam de março a junho e depois migravam para procriar”. Mariana, a caçula de três anos, pediu para subir no colo do pai para ver de perto. Giuditte ficou encantada.

Bernardo precisava continuar a viagem de trabalho e todos saíram em direção à casa do compadre para a despedida. No caminho, quando já estavam acomodados na locomotiva maria-fumaça, Bernardo pensava na imagem de alegria de sua família diante dos relógios.

A viagem terminou, o tempo passou e a véspera de Natal chegou. Bernardo e sua família sempre ceavam na casa do seu pai. O avô Luigi começava a preparar os mantimentos para o Natal no final de novembro. Pegava o trem até a cidade vizinha para encher os balaios da dispensa com as melhores frutas. Queria fartura para as festas e não economizava na comida. Respeitava a tradição italiana. Na véspera, comia-se peixe. Tinha Bacalhau à Escabeche, Dourada assada, tudo regado a azeite importado de perfume marcante.


No dia 25, o almoço costumava se emendar ao jantar e ninguém queria sair da mesa. A avó Nena fazia a comida. Carne de porco, frango assado. O cabrito cozido em molho vermelho com azeitonas pretas ficava apurando por horas a fio. Tinha pão de tudo que era tipo para passar no molho. Castanhas e nozes, frutas secas. Tudo regado a um bom vinho. Giuditte preparava a sobremesa, sua especialidade era a Caçarola. A falação típica de uma reunião de família italiana. As risadas das histórias contadas pelos tios. Eram momentos felizes.

A ceia começava cedo e ainda faltava meia hora para a meia noite quando o jantar acabou. Bernardo sugeriu à sua família que fossem dar uma volta na praça quando deixaram a casa do vô Luigi. “Vamos fazer a digestão”, sugeriu o pai. E depois de uma rodadela calculada partiram em direção a casa da família.

Quando colocou a chave na fechadura e girou duas vezes a tranca Vicenzo, Marina e Giuditte ouviram um barulho: “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”. Assim que chegou da viagem de Santo André, Bernardo foi à central telefônica e ligou para o Padrinho Anselmo. Pediu que comprasse o Cuco e o remetesse pela Linha Mogiana. Na véspera de Natal, combinou com o Argemiro que pendurasse o Cuco e acertasse a hora enquanto estivessem na casa do Vô Luigi. Queria fazer uma surpresa. Só que precisaria chegar em casa à meia noite em ponto.

E na décima segunda badalada estavam todos à frente do Cuco, alegres e surpresos, contemplando o novo morador. Bernardo havia arrancado sorrisos de todos que, encantados com a surpresa, se colocaram a sua volta, quando Vicenzo perguntou:

Papá, em junho ele vai embora pra procriar?

Não, Vicenzo, ele ficará para nos avisar cada hora que passar.

O Natal é a oportunidade de trazer o encantamento para dentro de casa. É renovar a expectativa de que o encantamento dure o ano todo, até o próximo Natal. E ainda que não dure, que ao menos permaneça a esperança de que algo melhor virá. E o melhor não vem embrulhado para presente, no saco vermelho carregado pelo bom velhinho, apenas uma vez ao ano. O melhor vem entregue a cada dia, pelas mãos de quem amamos.

O Natal de 2011 será o primeiro em que a Giulia, neta de Vicenzo, ouvirá o Cuco cantar.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Pra você que toma este cafezinho comigo há quarenta semanas, desejo que o seu Natal seja um momento de paz!


sábado, 17 de dezembro de 2011

O Que o Homem Não Descobre no Namoro

Arte de Weberson Santiago



Existem duas questões que parecem banais, mas que são grandes imbróglios para a relação  do homem com a mulher. Parecem apenas perguntas que a mulher faz para o homem, mas disfarçam importantes dilemas:

1. Com qual vestido você acha que eu devo sair hoje? O verde estampado ou o bege com renda?

2. Pronta para sair ela pergunta: Você acha que essa roupa ficou boa?

Não se trata de uma simples consulta de opinião, escondem uma armadilha. Elas já escolheram, mas querem apenas a confirmação. Se pudessem, tirariam de suas bolsas um pacotinho que, diluído em água, virasse uma amiga pra acalmar as suas dúvidas. Como ainda não inventaram este recurso, são obrigadas a apelar para o homem que já está pronto, há uma hora sentado esperando no sofá. Se ele não estivesse vestindo uma cara feia, ela pegaria o celular e ligaria para uma amiga. Acaba por fazer a pergunta para ele para demonstrar o motivo da demora, justificar a enrolação.

Quando ela pede uma decisão sobre qual vestido usar, espera que nós tenhamos conhecimento de todo seu guarda-roupa. Chega fazendo a pergunta sobre as duas opções sem trazer as peças no cabide. Vez por outra eu me deparo com uma camisa que eu havia esquecido que tinha. Como posso saber sobre qual vestido ela está falando? A minha sensação é que, se eu passasse uma semana conhecendo todas as peças do guarda-roupa dela, ainda não teria visto tudo.

Difícil para mim é a resposta. Não há uma vez que minha réplica agrade. Se eu escolho um dos dois, ela faz cara de decepção porque queria usar o outro. Se eu digo que gosto dos dois, ela volta vestida com um terceiro e parte para a pergunta de número dois.

É diante do “ficou bom?” que eu estrago a situação. Costumo ser sincero. Se eu não gosto, acabo falando. E ela sai brava, bufando. Pego o jornal, vejo se tem alguma atualização na rede social, enquanto tento despistar a espera. A longa espera de um homem para ter ao seu lado a mulher amada, no condição que ela considera seu estado impecável de beleza.

Para mim, tudo poderia ser rápido e simples. Quando eu questiono o motivo de toda a indecisão, ela justifica que para as mulheres é diferente. É preciso casar a roupa com o humor do dia, se meter em um processo de provador para atingir um resultado satisfatório, às custas de uma sequência de tentativas. Eu argumento que toda roupa que eu experimento e compro é porque acho que me cai bem. Ela fica sem argumento, mas não consegue mudar a técnica.

O ato de se arrumar é, para a mulher, como o ato de organizar o churrasco para o homem. Ele passa a semana pensando em qual carne ele irá comprar, qual a melhor hora para a cerveja ficar gelada a tempo, calcula a quantidade de pãezinhos por número de convidados e usa todos os segredos na hora de assar a carne. Quando ela vai sair, passa dias planejando a roupa, combinando peças e acessórios no seu pensamento.

Só que a expectativa do churrasco pode não se concretizar na hora de mandar brasa na carne. Acontece do fogo não querer pegar, da cerveja ficar quente e a carne assada sem sal. Quando a mulher vai se vestir, ao juntar as peças e parar diante do espelho, a imagem não confere com o reflexo da sua imaginação. Esta é a primeira frustração. Quando ela vai tentar uma segunda opção, já está desanimada. Põe a roupa e imagina como as mulheres presentes no compromisso a teriam visto vestida desta forma. A segunda vestimenta não passa no crivo e a irritação atinge um nível gritante. Ela já espera que a terceira troca não dê certo e, nessa hora, o homem chega e começa a apressar. É quando ela tem vontade de lhe matar.

Depois que eu percebi tudo isso, passei a tentar que ela apressasse o banho quando temos uma festa, para ver se ela termina mais cedo, mas só consegui mudar a hora que começo a apressar. Fiquei escolado diante daquelas duas perguntas chaves. Passei a fazer sugestões de roupas que eu gosto antes do compromisso para ver se ela desempacava diante da infinidade de opções, mas ela desanimou porque tirei sua oportunidade de escolha.

Foi aí que eu encontrei a solução. Achei a minha parceira de espera. Pego um brinquedo, sento com a pequena e esqueço que estou esperando. Torço pra adolescência da Anelise demorar a chegar. Não sei o que eu vou fazer quando tiver de esperar as duas ficarem prontas.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Depois da escolha da roupa, falta arrumar o cabelo e fazer a maquiagem. Amar é não ter pressa para sair.


Publicado no Jornal Democratacoluna Crônicas de Padaria

Publicado no Caderno Cultura, p. 3, 17/12/2011, Edição Nº 1178.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Sequelas de Um Quase Assalto

Arte de Weberson Santiago




Ao chegar em casa, parei o carro em frente a garagem para abrir o portão. Estranhei uma planta do jardim pisada. Do lado de fora da grade, me aproximei da muda. Ela não estava assim há cinco horas antes, quando saímos.

Chegávamos em casa depois de uma noite muito agradável. Fazia tempo que não reencontravamos aquela amiga e sua família. Comíamos comida mexicana enquanto contávamos as novidades e relembrávamos as histórias da infância e do passado. Pouco antes da meia noite, a chuva começou a cair. Meia hora depois da meia noite, resolvemos ir embora.

A Natália, que estava dentro do carro com a Anelise, avistou alguém escondido atrás da mureta da varanda, espiando quem chegava. Quando voltei intrigado para dentro do carro, já com o portão aberto, ela alertou: “Tem alguém lá dentro. Não entra!”. A evidência no jardim confirmava a possibilidade. Dei ré, buzinei na esperança de afugentar o meliante, mas ele não saiu. Acionei a polícia e fiquei dando voltas no bairro até que chegassem. Quando os dois carros e oito policiais entraram, já não havia mais ninguém. O portão aberto facilitou a fuga.

O assaltante havia feito uma visita à minha casa na véspera, quando fugiu pelo quintal da vizinha e foi visto. Voltou para realizar o crime durante a nossa chegada na casa. Não foi eficiente, deixou vestígios na primeira e na segunda invasões. A muda que eu mesmo plantara uma semana antes foi o aviso.

Fiquei pensando no motivo desta tentativa. Havia trocado meu carro por um  modelo esportivo do ano na cor vermelha alguns dias antes do ocorrido. Talvez isso dê a impressão de que minha casa está repleta de tecnologia. Se ele tivesse entrado, teria se decepcionado. A televisão é antiga, de vinte polegadas. A geladeira já tem mais de cinco anos. O único item mais novo é o notebook. Como poderia explicar que o mais valioso que eu tenho aqui dentro são os objetos baratos que comprei em minhas andanças por aí, minha coleção de tartarugas, a máquina de escrever da adolescência e as heranças de valor afetivo?

Meu medo não é de que levem qualquer uma dessas coisas que eu disse aí em cima. Fico mais preocupado com o que teriam passado a Natália e a Anelise com o assédio moral característico deste tipo de criminoso. Eles costumam descontar as privações de que foram vítimas em suas vidas naqueles em que escolhem como suas vítimas. Levam o que serve como adornos em nossas casas, mas precisam exercer um domínio sem escrúpulos sobre quem é assaltado. É a única oportunidade de serem mais fortes, de provocarem medo, de serem notados e não passarem despercebidos. Não economizam em tapas, beliscões e no jargão ameaçador típico (como no filme “Cidade de Deus”). Seu prazer é criar o clima terrorista.

Das suas tentativas de nos roubar me deixou o medo. A semana que se seguiu teve o sono prejudicado. A sensação de vulnerabilidade é como andar na corda bamba. A ameaça de cair é grande e o caminho seguro parece ser muito pequeno. Não foi preciso ter sido de fato assaltado para ficar com a eminente sensação de invasão, de ser observado em meus passos cotidianos, de ter alguém me seguindo por todo o tempo.

Desta situação, descobri onde meu lar é frágil. Cerquei a frente com rolos de arame farpado. Mandei instalar uma câmera para assistir minha chegada em casa, coloquei iluminação com sensor de presença para mostrar a quem passa na calçada que eu estou vendo. Novos artifícios foram somados à grade em todas as janelas, ao alarme monitorado vinte e quatro horas, ao botão de pânico e as várias trancas nas portas.

E com tudo isso ainda não me sinto seguro. Me sinto um refém. Seguro eu me sentiria se todo este investimento pudesse ser feito em algo que deixasse minha casa mais bonita. Tão bonita que quem passasse na porta teria vontade de entrar e me fazer um visita.

Difícil é explicar pra Anelise porque nós estamos tentando espantar as pessoas da nossa casa, confundindo a sua fachada com a de um presídio. Somos os detentos de um mundo em que os culpados são absolvidos e os inocentes são encarcerados.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Não se cercar de cuidados é ingenuidade. Sentir-se seguro é uma meia verdade. A pior arma é a boca.
Publicado no Jornal Democratacoluna Crônicas de Padaria

Publicado no Caderno Cultura, p. 3, 10/12/2011, Edição Nº 1177.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Criatividade na Culinária

Arte de Weberson Santiago



Cheguei à conclusão que minha criatividade é arrogante. Metida a besta mesmo. Ela se antecipa em querer descobrir como se faz toda e qualquer coisa que observo. Inspeciona o que está na minha frente até descrever os materiais ou ingredientes. Antes parasse por aí. Que nada. A arrogância faz questão de mostrar que sabe fazer igual, e tem o péssimo hábito de tentar fazer melhor.

Sempre foi assim. Quase que um vício em aprender a fazer. Começou com a culinária. Se engana quem pensa que foi uma tentativa de impressionar. Necessidade mesmo. Estava cansado de me deparar com o hambúrguer no final do dia. Já na adolescência testava o molho bechamel (ou molho branco) no macarrão. Consultava uma coleção de livros de receitas da minha mãe, assinada junto com o  jornal.

Ela nunca foi de cozinhar durante a semana, mas manteve os livros de todas as culinárias do mundo e a dispensa para que eu pudesse driblar a fome e me fazer cozinheiro. No livro, encontrava o passo a passo com foto. A invenção de novas combinações foi uma questão de tempo e de preguiça, e não de segurança. Na hora de repetir a receita, a moleza de subir na grande estante de ferro para pegar o livro me levava à variação nas quantidades e ingredientes.

Quando fui morar em São Paulo durante a faculdade, meus principais problemas eram a falta de dinheiro, o preço do aluguel e da comida. Quando abriu a barraca de sanduíche na rua de casa, encontrei o meu Mc Donalds. Foi comendo o Misto Quente de café da manhã até o X-Tudo do jantar que descobri que tinha o mesmo atendimento do Burger King, podia pedir o lanche da minha maneira. Da saída do funcionário do caixa do carrinho me restou o convite para meu primeiro emprego.

O dono era um migrante analfabeto, que havia feito o recrutamento e a seleção ao me observar. Viu minhas habilidades para fazer contas enquanto comprava dele e teve como prova de minha honestidade o dia em que lhe falei o erro do Banner/Cardápio de seu estabelecimento móvel: Lanches do Pedrininho (se bateu o olho e leu Pedrinho, leia novamente). O caixa e as compras eram fechados por sua mulher, que tinha curso técnico em contabilidade.

Meu papel se resumia a entregar o refrigerante e a cobrar o cliente. Muitos eu já conhecia de dividir as cadeiras na calçada durante as refeições. O Pedro se deu bem ao achar um espaço perto de um shopping onde os próprios vendedores evitavam a praça de alimentação para economizar. Nos finais de semana era o dia todo de pé, mas a movimentação da rua compensava. Se eu fosse cronista naquela época, hoje seria pós-graduado em filosofia do cotidiano.

Para minha criatividade, dar o troco e pegar a lata certa de refrigerante era pouco. Não cansava de notar o trabalho do chapeiro. Em uma hora de pouco movimento, resolvi me arriscar, fiz um sanduba completo para mim mesmo. Numa dessas, chegou um cliente e fez o pedido. Eu mandei o lanche. E de vez em quando trocava de posto com o amigo da chapa. Quando percebi, me gabava de quebrar os ovos com apenas uma mão. O ápice da função do chapeiro é jogar o ovo e o hambúrguer pra cima e ele cair do lado oposto, mas quebrar o ovo com uma mão já impressiona e demonstra aptidão para o posto.

Na minha primeira experiência em trocar minha mão de obra por dinheiro, descobri que posso fazer carreira no ramo alimentício. Brinco com a mulher que nunca passaremos fome. Se ficar sem emprego, trabalharemos com comida. Ela gosta da ideia e dá o aval toda vez que cozinho em casa.

Dizem que não existe erro em investir em comida, mas essa regra não se aplica quando não há alvará de funcionamento e a lanchonete funciona na calçada. A fiscalização da prefeitura terminou com a minha carreira no ramo do fast-food.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Receitas são regras e fugir da regra também pode terminar em prazer na degustação.


Publicado no Jornal Democratacoluna Crônicas de Padaria

Publicado no Caderno Cultura, p. 3, 03/12/2011, Edição Nº 1176.

sábado, 26 de novembro de 2011

Em Volta da Mesa

Arte de Weberson Santiago



Passamos boa parte da vida em volta da mesa. Na cozinha, na copa ou na sala de jantar. Quadrada, redonda, retangular ou oval. De madeira, de granito com pernas cromadas ou de tampo de vidro.

Existe um momento que eu considero sagrado na minha vida e ele ocorre em volta de uma mesa. É o café da manhã aos domingos ou feriados com a Natália e a Anelise. Eu geralmente acordo primeiro e preparo a mesa. Depois, acordo as duas. A Natália e a Ane vão à padaria e voltam com alguma flor colhida pelo caminho. É o toque final no centro da mesa. Tenho uma máquina de café expresso para fazer aquele café com leite de padaria. Ovo cozido pra Ane, frutas e queijo branco para a refeição da semana sem pressa de terminar.

Ali conversamos sobre o que passou, sobre as dificuldades do dia-a-dia e sobre nossos planos de futuro. Por falar em futuro, fiquei observando como fazemos na mesa para que a Anelise coma bem.  Quem já teve uma criança em casa sabe o quanto é difícil fazer com que ela coma o que consideramos ser o suficiente para seu crescimento. Qualquer pai ou mãe já viveu aquela situação em que um biscoito qualquer foi capaz de tirar o apetite de toda uma refeição.

Aí que a gente tem que rebolar. Quem olha de fora acha ridícula a cena de dois adultos apontanto os setores ainda não explorados no prato. “Olha o brócoli!”, diz a Natália. “Você não está comendo o feijão”, indico. É a mania de querer apontar os caminhos, controlar os passos. Quando a coisa está lenta, apelamos pra competição. “Eu vou terminar primeiro!”, fala a Natália tentando acabar com a enrolação, enquanto ela acelera o ritmo e diz: “Não, eu vou acabar primeiro!”. Até que se distrai com qualquer coisa. “Se não comer tudo, hoje não vai ter sobremesa” é a ameaça final ao prato que foi pouco mexido. Assim, ensinamos na mesa que o afeto acaba esbarrando no controle excessivo, com a desculpa do desenvolvimento de quem amamos. Em volta da mesa damos as primeiras lições de como conseguir o que queremos por meio da chantagem.

A Natália tem um jeito todo especial para favorecer o crescimento da Ane quando estamos em volta da mesa. A última que ela colocou em prática foi fazer carinhas com a comida. Agora, toda refeição tem que ter na face uma expressão. Já teve palhaco com nariz de tomate cereja e cabelo de alface picado. Cada prato tem um nome. A Emília tem cabelo de cenoura com beterraba raladas e nariz de azeitona. A ternura escondida por detrás da inventividade sem os limites da mesa.

Na casa da Fátima, antes de todas as refeições a família reza um pai nosso e depois alguém, expontaneamente, faz as preces antes de comer. Toda vez está descontente com alguém da família, Fátima toma a iniciativa da oração e inclui um pedido na prece. Usa o costume de maneira sutil, mas manda recado para o marido, o filho adolescente e até já cutucou a sogra no almoço de domingo. “Senhor, abençoa o alimento que nós temos hoje em nossa mesa e que não tenhamos nenhum conflito nesta refeição”, pede Fátima puxando a orelha do marido e do filho que discutiraram na véspera porque o muleque tinha chegado tarde em casa. Acontece que na última segunda-feira a Aninha, caçula de sete anos, tomou a vez na oração e pediu que Nossa Senhora protegesse o chocolate que ela deixa na geladeira. Desconfiava da empregada e do irmão mais velho. Sabendo do pecado, não tinha provas para apontar o culpado. Não cabia o inquérito quando estava em volta da mesa, mas fez valer o recurso disponível.

Se na intimidade da nossa casa usamos a mesa para resolver nossos relacionamentos familiares, pra fazer a lição de casa e para levar serviço pra casa, nos escritórios elas servem para reunir opiniões e tomar decisões. Mas nem em casa, nem no trabalho é possível dizer tudo o que pensamos todas as vezes que estamos em volta da mesa. A não ser aquela diarista desbocada que aproveita a reunião para deixar clara a sua opinião.

Quem põe a mesa, tira os pratos e lava a louça é responsável pelo encontro mais importante do dia. Se o diálogo em casa está raro, quem cozinha e põe à mesa faz a oportunidade para as interações mais interessantes que uma família pode ter. Quando uma família ou um grupo senta em volta da mesa, o que se troca é afeto. A comida estabelece a ocasião. A refeição é apenas a oportunidade. Afeto é uma afeição direcionada a alguém. Mesmo que eu não queira, eu afeto.

É quando se demosntra agrado ou desagrado, aprovação ou desaprovação, simpatia ou antipatia. Em volta da mesa a gente ama e odeia. Em volta da mesa a gente discute e se reconcilia. Em volta da mesa e gente tem vontade de se esconder debaixo da toalha de raiva e de subir na mesa de alegria. É uma interação que marca os sentimentos de uma maneira permanente. Não existe corretivo que apague as histórias escritas em volta de uma mesa.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Pode ser chato almoçar em família, mas triste mesmo é comer sozinho.


Publicado no Jornal Democratacoluna Crônicas de Padaria

Publicado na capa do Caderno Cultura, 26/11/2011, Edição Nº 1175.



sábado, 19 de novembro de 2011

Eu Adoro o Pessimista

Arte de Weberson Santiago



O otimismo é uma atitude que tem semblante de esperança. Que não muda a expressão da face quando está de cara com as dificuldades da realização. Se basta pela iniciativa secreta e não se alimenta somente de resultados concretos.

O pessimismo é um ato que subverte a ordem das coisas. Prevê a falência antes da tentativa. Morre antes de ter nascido. Tem como primeiro passo a desistência, e leva consigo qualquer possibilidade de um final com satisfação.

Existe uma metáfora que, de tão repetida, desconheço o autor. Ela afirma que se mostrarmos um copo com água até a metade descobriremos se estamos diante de um pessimista ou de um otimista. O pessimista dirá que o copo está meio vazio. O otimista dirá que ele está meio cheio.

Eu não acredito neste teste. Não sou capaz de dizer que alguém é otimista ou pessimista pelo foco na visão do cheio ou do vazio de um copo. Afinal, ambos tem razão. Há uma metade que está cheia e há uma metade que está vazia. O que determina o otimista e o pessimista é o comportamento, a atitude, a ação. Explico: para rotular alguém de otimista ou pessimista precisamos ver como este alguém reage à metade de água que está no copo.

O otimista completa o copo com três pedras de gelo e uma dose de suco concentrado. O otimista é o que, quando não tem suco concentrado, toma um gole da água e rega a planta ao lado com o restante. Já o pessimista fica se perguntando porque o fulano deixou de tomar toda a água do copo, e joga a água fora. É como diz a frase atribuída a Winston Churchil: o pessimista vê a dificuldade em cada oportunidade, enquanto o otimista vê uma oportunidade em cada dificuldade.

Eu considero o pessimista a minha oportunidade. Ao contrário do que diz a maioria das pessoas, eu não tenho vontade de me afastar de um pessimista. Aliás, se você observar, verá que um pessimista nunca sofre de solidão. Está sempre rodeado, mas de quem gosta de competição. Ganha a disputa quem se deu mal em maior intesidade ou quem perdeu mais em determinada situação.

Eu me sinto desafiado a fazer o pessimista ultrapassar o dilema. Encaro como desafio desempacar aquele que não tem motivo para esperar. Escolho estar ao seu lado mesmo quando o pessimista tenta me convencer a desistir. Eu gosto de ser desacreditado. Ser alvo de desconfiança é o combustível para a minha criatividade. Tachado como tendo menos competência do que o necessário, imediatamente me sinto incentivado a fazer. Mesmo que não seja meu melhor resultado, nenhum pessimista consegue sustentar sua crítica àquele que teve a boa vontade da tentativa.

Tendo me aproximado, descobri que existem alguns tipos de pessimista.

Existe o pessimista de carteirinha que considera que seu título de sócio o faz ser dono da quarta vogal. Quando algúem chega e apresenta um problema ele logo diz “Ih!” (com duração de três segundos e timbre de voz mais agudo). O “Ih!” pode significar “lá vem você de novo”, “eu não quero saber o que você tem pra falar, muito menos resolver isso” ou “eu já vi este filme antes e não gosto de reprise”. Se a vida fosse só novidade, nunca poderíamos testar se melhoramos nosso desempenho nas ocasiões que se repetem.

Outro grupo é o que eu chamo de pessimista Mãe Dinah ou pessimista vidente. Sim, ele prevê o futuro. E o futuro é sempre uma catástrofe. A frase típica deste pessimista é “as coisas estão calmas demais, eu sinto que algo ruim está para acontecer”. Este pessimista é aquele que tem medo de se sentir bem, se culpa por curtir cinco minutos de descontração ou por relaxar um pouco. Seu modo de pensar é resultado das vezes em que se descontraiu e o problema aconteceu, como se uma coisa fosse consequência da outra.

Ainda dentro deste último grupo, existe um subgrupo de pessimistas que eu batizei de pessimista vidente indicador. Além de prever a falência, quando ela se torna uma realidade, é o primeiro a dizer “eu avisei que não ia dar certo”. O pessimista vidente indicador não se contenta em prever o problema, precisa apontar o dedo para um culpado. Perde tempo procurando alguém como responsável quando poderia estar envolvido com o evitar que o problema ocorresse novamente.

Está vendo como o pessimista de perto é bem divertido? Vai dizer que você era pessimista com o pessimismo?

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Otimismo é dar bom-dia as plantas e aos animais. Pessimismo é ignorar o bom-dia de um ser-humano.


Publicado no Jornal Democratacoluna Crônicas de Padaria

Publicado na capa do Caderno Cultura, 19/11/2011, Edição Nº 1174.



sábado, 12 de novembro de 2011

Entre o Conforto e o Bom Gosto

Arte de Weberson Santiago


O conforto é a desculpa mais usada para justificar o mal gosto ao se vestir. Se a roupa não nos cai bem, explicamos seu uso pelo conforto que sentimos ao usá-la.

Não interessa que está largo demais, que engorda na barriga, que escolhemos um número menor na esperança que o corpo encolha para caber a peça ao invés do pano esticar para cobrir o corpo. Sem falar na estampa, que muitas vezes cairia bem em uma parede ou em um objeto, mas não na vestimenta. A estampa faz gritar o defeito.

Deve existir roupa confortável com bom caimento para todo mundo, para todos os gostos, para todos os manequins e até para todos os bolsos. Dizem que gosto não se discute, mas não podemos negar que o mal gosto é assunto que não escapa aos olhos e não fica guardado na boca.

Eu tenho um sério problema em me desfazer das roupas que eu acumulo no meu guarda-roupa. Até aquelas que não tem mais ocasião para usar fica difícil de desfazer, passar adiante, doar. Tenho até hoje a camisa da minha formatura de oitava série e uso para trabalhar. Queria que ela durasse até a aposentadoria, mas não sei se ela aguenta. Outro dia a gola começou a rasgar na costura. Em vez de me desfazer da camisa, mandei a costureira recorsutar a gola do lado do avesso.

O fato é que a roupa parece que fica mais gostosa de usar conforme vai ficando mais velha. Eu não disse que a desculpa pro mau gosto é o conforto? De repente, me pego saindo para trabalhar com a gola desbeiçada, com a meia furada ou com uma peça desbotada. O motivo? A melhor acomodação.

Tem um item de vestuário que eu considero de estimação e que eu uso para dormir todos os dias. É uma camiseta de propaganda de vereador. Aquela eu não pretendo abrir mão e vai servir de pijama até esfarelar. O candidato perdeu a eleição, desistiu da vida política e seu número desbotado estampa meu peito nas noites bem e mal dormidas.

Entre os homens, há quem terceirize a tarefa de comprar roupa para a mãe ou pra esposa. Existe uma certa impaciência na hora de escolher entre a grande quantidade de opções empilhadas nas prateleiras das lojas. Para o macho, a pior invenção são aquelas famosas lojas de roupas para toda a família. O preço pode até ser convidativo, mas o custo de uma única ida é que é difícil de bancar. Ele precisa comprar uma calça e ela vai acompanhar. Resultado: ele não encontrou nenhuma que goste e volta sem a calça. Ela achou uma meia dúzia de peças para si mesma e mais algumas em liquidação para os filhos.

Há quem goste muito de sair pra comprar roupa e de estar sempre dentro da última moda. Tem quem sempre prefere o tradicional. A esposa do Lucas fica brava com ele porque toda vez que ele trás uma peça nova escolhe nas cores azul e cinza. Ela diz que ele troca de roupa todo dia, mas parece que usou e mesma camisa durante toda a semana.Meu amigo Álvaro só usa camiseta polo. Para ele, elas são perfeitas para o trabalho e o lazer, ficam entre o social e o esportivo.Ele tem de todas as cores, com e sem listras.

Homem que é homem se gaba de manter em uma zona de segurança entre o conforto e o bom gosto, tentando fugir de qualquer dúvida sobre a sua masculinidade pela escolha da indumentária. Homem que é homem faz questão de rejeitar o decote em V ou uma calça agarradinha. Diz não para o xadrez na calça ou na camisa ainda que seja a última moda, e só aceita este tipo de estampa na cueca samba-canção.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Vestir-se bem é disfarçar o defeito e destacar a qualidade do corpo, sem deixar de lado o conforto.



Publicado no Jornal Democratacoluna Crônicas de Padaria

Publicado na capa do Caderno Cultura, 12/11/2011, Edição Nº 1173.

sábado, 5 de novembro de 2011

A Construção e a Paciência

O projeto e meus pés avistando o resultado.







Tenho o hábito de enxergar a transformação assim que eu me deparo com algo abandonado. Gosto da reciclagem, acredito na reutilização, boto fé na boa vontade e não tenho dúvida de que, mesmo que seja árdua, a mudança vale a pena.

Quando me dispus a encontrar uma casa pra morar relatava aos corretores a necessidade de um mínimo de verde no imóvel. Ao menos um pedaço suficiente para que eu pudesse deitar e ver o céu. Pensei que a procura tinha chegado ao fim quando encontrei o espaço ideal: seis cômodos espaçosos, fachada simpática de casa antiga e um pedaço de terra no quintal, sem nenhuma planta. Na primeira visita enxerguei um gramado, mas na negociação com a dona do imóvel acabei com enfado. Ela queria colocar cimento no pouco de terra que restava e eu, que enxergava a cama de grama como cômodo adicional, me recusei a fechar o contrato.

Foi então que encontrei aquela que se tornaria a minha primeira casa. O número de quartos e seus tamanhos eram ideais, mas o matagal que tomava conta do quintal me fez criar a urgência da assinatura. Havia sido mordido. Não por um inseto, mas pela imagem de um jardim em um sonho acordado. E quando o mosquito da criatividade me morde, enxergo apenas o produto final e não me importo com o trabalho da execução.


Aprendi que tudo o que se faz com as próprias mãos, custa mais barato e descobri que a desculpa do preço é o vício do preguiçoso. Mordido pela ideia, imaginei uma pérgola de eucalipto com uma bela trepadeira fazendo sombra para uma mesa em cima de seixos no chão. Não contente com a ideia, resolvi desenhar o meu primeiro projeto de construção.

Contratei um jardineiro para limpar a bagunça tão logo assinado o contrato. Debaixo do matagal havia um pé de acerola, três roseiras, algumas folhagens verdes e uma planta não identificada. Decidimos, o jardineiro e eu, não retirar a prova da história de quem ali morou. Ganhei da avó o tapete de grama para cobrir todo a terra do quintal e desde então regava meu colchonete para que virasse um colchão de alta densidade.

Engana-se aquele que pensa que o interessante desta história é a ideia ter virado realidade. Não é o antes e o depois que me deixam cheio de orgulho, mas cada lição que eu tive durante a execução, que demorou exatamente um ano. O jardineiro não foi o único parceiro da empreitada. Para escavar um metro de chão e colocar de pé os seis troncos de sustentação, contei com a ajuda do amigo César. Quando o caminhão depositou as pedras de rio na calçada, aproveitei-me da mão-de-obra do amigo Coruja, que tendo furado comigo em um outro dia marcado, fez questão de ajudar no carregamento de dez carriolas até o quintal do fundo, tendo chegado para a tarefa com um fardo de cerveja para comemorarmos a conclusão.

Uma das coisas mais surpreendentes foi a tal planta não identificada. Logo após o plantio da grama, suas folhas começaram a secar. Diante da possível perda da planta, eu me abalei, achando que não era capaz de cuidar de um jardim. Insistia na água, mas as folhas não brotavam. E quando já havia desistido há vários meses daquela batata enfiada na terra, fui pego de surpresa com as folhas crescendo.

Ia passando do quarto do fundo para a casa quanto tomei um susto. De um dia para o outro subiu uma haste no meio das folhas. E no outro dia, ao acordar, me deparei com cinco lírios brancos de pétalas com o centro arroxeado. Compreendi a lição. Ela esperava o momento mais propício. E eu querendo que ela crescesse no meu ritmo. Uma planta me ensinando que a consideração e o cuidado não devem vir acompanhados da cobrança.

E é ali que eu passo boas noites em conversas sem fim, que eu vivo aqueles encontros de um farto churrasco, onde eu podo, planto e rego. É onde eu faço a transição entre as jornadas de trabalho e o chegar em casa, onde eu rolo na grama e ralo o joelho, é o lugar que eu construí para me educar a ter paciência.



 UM CAFÉ E A CONTA!
| Aquele que é capaz de cuidar de uma planta se torna fertilizador de ideias, semeador de sonhos, lavrador de caminhos, irrigador de crescimento e colheiteiro de novas realidades.

Publicado no Jornal Democratacoluna Crônicas de Padaria

Publicado no Caderno Cultura, p. 3, 05/11/2011, Edição Nº 1172.

sábado, 29 de outubro de 2011

Apaixonada

Arte de Weberson Santiago



Eu te quis desde o primeiro momento que eu te vi. Uma coisa estranha que eu nunca havia sentido. Não precisou chegar perto para isso acontecer. Não sei se o cheiro chegou antes ou se o sentimento anda mais rápido que o nosso próprio corpo.

Falando em corpo, talvez o cheiro tenha chegado mesmo antes. Depois de algumas semanas, quando estava dependurada no seu pescoço, tive a certeza que aquele era o lugar que eu queria ficar para o resto da minha vida. Não foi preciso experimentar o beijo para saber o gosto da sua paixão. Não careci de declarações de amor para ouvir as palavras escritas nos seus olhos.

Quando me dei conta, estava lutando contra o exagero do apego. O mais estranho é que me apegava ao que poderia acontecer e não a algo que eu já tenha vivido. Sentia que se eu não trouxesse você para meus dias eu estaria desperdiçando uma grande oportunidade. Nosso encontro me fez experimentar a vontade do futuro.

Foi o que me fez querer ser percebida por você. Chamar a sua atenção para que você me notasse e  que quisesse misturar nossas histórias. Como quando damos as mãos e entrelaçamos os nossos dedos ou quando emaranhamos as nossas pernas durante a noite para embaralhar os nossos sonhos. Passei por cima do medo de parecer oferecida e consegui o que queria, você me notou e me convidou para dançar. Nos tornamos um par a dançar com a música que a vida nos apresenta, encolhendo as trilhas sonoras que marcam os nossos caminhos.

Então, pude perceber que na nossa relação eu me transformaria, me aprimoraria. Com você ao meu lado, eu estava me tornando melhor a cada dia, deixando para trás aquilo que podia ser abandonado, o que já não faz mais sentido, o que ficou no passado e não é mais para mim. Eu me sinto segura ao seu lado, como se nada pudesse nos atingir. As vezes temos nossos atritos, mas é muito pouco perto do resto.

E assim eu passei a querer mais e mais. Ao descobrir que nossa combinação proporcionava a temperança, que me trazia equilíbrio, eu quis me casar. Na verdade, desde que eu te vi, sonhava com você me esperando enquanto eu caminhava na sua direção até o altar. Sim, eu quero que você me acorde com seus beijos do pescoço aos pés, passando pelos meus seios, pela minha barriga, pelas minhas coxas. Não apenas aos domingos, mas todos os dias.

Deve ser pelo nosso amor e pelas emoções fortes que ele ascende em mim que de vez em quando sou tomada por um imenso ciúme. É impossível que só eu perceba o seu encanto, o quanto você é capaz de se fazer feliz me fazendo feliz. É por isso que eu tenho medo de te perder. De que você não esteja mais do outro lado do telefone quando a gente já não tiver mais nada pra falar. 

Eu decidi que eu não quero mais lutar contra o apego exagerado, vou fazer por onde esse apego se fazer necessário a cada dia para que a gente continue sempre juntos.

Somos a possibilidade de combinar os ingredientes complicados da vida para que tudo resulte em alguma coisa de agradável sabor, de percepção do que é belo e simples, da sofisticação inteligente do que é comum e ao mesmo tempo diferente. Somos uma receita a se reinventar a cada dia. Pode parecer complicada de se realizar, mas o resultado é sempre um novo paladar. Você me alimenta de uma forma que nunca consigo ficar saciada.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Nos tornamos homens de verdade a medida que tentamos imaginar como funciona o sentimento da mulher, e conseguimos.


Publicado no Jornal Democratacoluna Crônicas de Padaria

Publicado no Caderno Cultura, p. 3, 29/10/2011, Edição Nº 1171.



sábado, 22 de outubro de 2011

Baldinho Cheio de Conchas

Arte de Weberson Santiago



Quem se lembra da primeira vez que esteve na praia?

Dependendo da sua idade na época, pode ser que você se recorde da primeira vez que viu o mar. Aquela piscina em que os olhos não alcançam a beirada do outro lado. A poça tão grande que não sossega na borda e fica fazendo onda.

Eu não me lembro da minha primeira ida, mas fico na dúvida sobre quem curte mais. Se quem apresenta ou quem conhece o mar pela primeira vez. Nessa situação estávamos a Anelise e eu. Ela nunca tinha visto o mar. Eu apresentava a praia.

Afora toda a expectativa criada em cima da viagem, do baldinho na mala, das explicações do que seria o mar e todos os pedidos de conchinhas dos familiares, o destino foi decidido pela importância do lugar na minha vida.

Santos não é o sonho de cidade de praia deserta e inexplorada, nem tem praia com areia branquinha ou mar esverdeado. Acontece que foi em Santos que eu conheci o mar, e que eu frequentei a praia durante todos os anos da minha vida.

A cidade tem seu charme. O maior jardim de praia do mundo (oito quilometros por toda a orla impecavelmente cuidados), um aquário cheio de animais marítimos, passeio de bondinho pelo centro antigo, o Museu do Café (um prédio suntuoso onde funcionava a Bolsa do Café), o Mirante de Nossa Senhora de Mont Serrat (prédio que abrigou um famoso cassino com uma vista em 360° da cidade, acessível apenas por um vagão que sobe 242 metros de morro em um trilho), um Orquidário e uma infinidade de programas a se descobrir.

Eu descobri a satisfação de percorrer com a pequena os caminhos que percorreram comigo na minha infância. Existe uma sensação prazeirosa em repetir o que vivemos, ocupando lugares diferentes, novos lugares dentro de uma família. Visitamos a estátua de leão que fica no jardim, onde meu pai tem uma foto tirada pelo meu avô, eu tenho uma foto tirada pelo meu pai e agora, a Anelise também tem.

Muita coisa mudou da infância do meu pai até a da Anelise. Quando pediram que ela levasse conchinhas para os familiares fiquei apreensivo. E se não houvessem mais conchas na praia?

Para nossa alegria elas ainda estão lá. Mas se na minha infância se espalhavam com abundância pela areia da praia, atualmente juntar conchinhas é um trabalho de garimpo. É preciso separar as tampinhas de garrafa pet, os pedaços de plástico e muitos outros lixos. Estão raras, é preciso procurar um tanto até achar. O importante é que elas ainda aparecem na areia.

Férias são um abandono temporário do cotidiano. Quando a gente sai do interior e desce para a praia, quer experimentar a maresia para encher os pulmões de fôlego. Recolhemos as conchas para levar um pouco da calmaria do barulho do mar quando voltar pra casa, na tentativa de carregar no baldinho a esperança e a ingenuidade da infância.

Enfrentamos as ondas para não esquecer que a vida tem movimentos como o das correntes do mar. Construímos castelos de areia para que a subida da maré desfaça tudo em sinal de despretensão. Quando a gente sobe a serra, carrega uma mala de roupas sujas de areia da praia e a alma lavada para recomeçar a rotina.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| A vida é a oportunidade de sempre fazer as mesmas coisas, só que de uma forma diferente, unica.


Publicado no Jornal Democratacoluna Crônicas de Padaria

Publicado no Caderno Cultura, p. 3, 22/10/2011, Edição Nº 1170.