sábado, 21 de março de 2015

De Vendedora à Psicóloga

Arte de Weberson Santiago


Ela trabalha há doze anos nas Lojas Pernambucanas. Começou aos dezessete anos vendendo celulares, até ser contratada para trabalhar vendendo eletrodomésticos. Nestes doze anos, trabalhou de pé de segunda a sábado e por muitos domingos. Quando trabalhava aos domingos, recebia uma folga as terças, quartas ou quintas. Passou doze anos entendendo o que é fim de semana inteiro de folga apenas durante o mês de férias de cada ano.
Na venda, sempre teve destaque no desempenho. Encarava as metas e buscava superá-las. Conseguiu a proeza de bater as suas metas de venda individuais em todos os meses trabalhados nestes doze anos.  Quando atingia a sua cota, ajudava os colegas a atingir as suas, passando as vendas seguintes para eles. Fidelizou uma enorme quantidade de pessoas na loja e muitos deles passaram a querer comprar apenas com ela, mas nem por isso ficou imune a aguentar clientes grosseiros e insatisfeitos com os resultados de suas compras.
Acontece que há cinco anos atrás ela se matriculou na faculdade. Era mãe de uma criança de dois anos quando começou a fazer Psicologia. Durante os últimos cinco anos conciliou a pesada jornada de trabalho com um curso noturno repleto de trabalhos e provas. Arrumou tempo para acompanhar da melhor forma possível o crescimento da filha, participando de todas as reuniões da escola. E passou pelos cinco anos sem pegar nenhuma dependência nas matérias, sem deixar de entregar nenhum trabalho e sem deixar de fazer nenhuma prova, mesmo com a possibilidade de fazer provas substitutivas quando não tinha folga para estudar antes da prova. Quando isso acontecia, estudava no horário de almoço. Quando a filha chegou ao primeiro ano e também passou a fazer provas, estudava com ela quando chegava da faculdade, tarde da noite, ou lhe tomava as matérias da prova do dia seguinte com a filha sentada na tampa da privada enquanto tomava seu banho antes de ir pra faculdade.
Mesmo com todo o excesso de demandas ela deu conta. Deu conta de vender. Deu conta de acompanhar a filha. Deu conta de cuidar da casa. Deu conta de estar presente na vida do marido.
Agora ela é Psicóloga. Ser vendedora de eletrodomésticos não faz mais sentido em sua vida. Vendedora de eletrodomésticos acompanha a vida das pessoas, faz a lista de casamento e também fica sabendo quando a pessoa se separa e precisa repor o que ficou com o marido ou com a esposa na separação. Vendedora de eletrodomésticos entra na intimidade das pessoas, ajuda a decidir o que ela vai levar para dentro de casa e o quanto isso vai representar dentro do orçamento do cliente.
Mas vendedor de eletrodomésticos não é Psicólogo e ela quer trabalhar com a Psicologia. Ela quer tirar o produto do meio da sua relação com seus clientes. Ela quer a calma de ouvir o cliente sentado em poltronas confortáveis, escutando com toda a atenção um único cliente, ajudando a pensar nos seus sentimentos e a tomar decisões que não sejam as decisões de uma compra. Ela quer trabalhar amenizando sofrimentos, encorajando iniciativas, acompanhando processos de mudança e de transformação.
Chegou a hora de encaixotar as calças pretas, as camisetas azuis. Chegou a hora de parar de comprar tênis pretos a cada seis meses para aposentar o velho surrado. Chegou a hora de sair da rotina pesada, mas confortavelmente conhecida e previsível. Chegou a hora de deixar o trabalho que lhe permitiu conquistar tudo o que ela já conquistou até agora, inclusive o diploma de Psicóloga. Chegou a hora de pendurar o uniforme. Chegou a hora de deixar de ser a Natália da Pernambucanas.
É preciso aguentar passar pela situação de ficar sem um emprego para que surjam novas oportunidade de trabalho na área da Psicologia. É preciso encontrar uma instituição que precise de uma Psicóloga. É preciso montar um consultório, comprar uma agenda vazia e construir uma nova carteira de clientes. Está na hora de recomeçar, de começar do zero. Está na hora de fazer uma coisa que ela nunca fez, mas que está se preparando há cinco anos para fazer e que é o que ela um dia sonhou que estaria fazendo.
Ela agradece às Casas Pernambucanas por ter aquecido o seu lar durante esses doze anos, mas ela escolheu deixar a segurança das flanelas, lãs e cobertores sempre por perto.
Da última vez, quando o frio bateu à porta, não precisou que ele batesse duas vezes. Ela deixou o frio entrar.
UM CAFÉ E A CONTA!
| É por isso, e por outras coisas mais, que eu me orgulho dela e da sua trajetória.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 21/03/2015, Edição Nº 1347.

sábado, 7 de março de 2015

Coceira de Comprar

Arte de Weberson Santiago


— Amor, olha o que eu trouxe? – abrindo a sacola.
— Outro pote, Dulce?
— Mas não é lindo, amor?
— Dulce, nossos armários estão cheios de potes para guardar mantimentos!
— É que eles estavam em promoção: paguei R$ 29,90 pelos três potes. E eles têm tampa que fecha sob pressão. Assim nossos alimentos não irão estragar como estragam quando ficam dentro do saquinho com um prendedor na ponta.
— Olha aqui Dulce, todos os alimentos que temos na dispensa já estão dentro de potes como estes!
— É que eles combinavam com o restante nossa cozinha. Você reparou que eles têm galinhas? Combinam com a lixeira e com o porta-detergente, Marcos Roberto! Ah, e com o pano de prato que minha mãe me deu, olha!
— Quer dizer que tudo o que você encontrar pela frente e que tiver uma galinha você irá trazer para casa? Você já deu uma olhada aqui dentro, não tem mais espaço em nossos armários pra mais nenhum objeto. Desse jeito vamos ter que guardar coisas de cozinha no nosso guarda-roupa!
— Você não me entende, Marcos Roberto! – diz ela já em prantos – Eu me mato de trabalhar, cuido dessa casa de noite e aos finais de semana, me desdobro em dez para dar conta das coisas do Robertinho e não posso nem comprar um pote novo que você acaba comigo?
— Mas toda semana você vem com alguma coisa nova. Nunca tá bom, nunca tem fim essa sua vontade de comprar?
— Você não me entende! – chorando mais ainda – Sempre me critica! Alguma vez eu não dei conta de pagar as coisas que eu compro? Se eu trabalho, eu posso gastar com o que eu bem entender!
— Ah, Dulce, vamos parar de discutir, vai! Não adianta nada. Toda vez é isso, eu implico e você continua comprando mesmo...
— É que quando eu passo na frente da loja e vejo uma coisa legal, me dá uma coceirinha de comprar... Aí eu penso: eu mereço me dar de presente!
— Eu não acho que você está certa de ficar compensando as dificuldades da sua vida comprando, mas como você disse, faz o que bem entender com o seu dinheiro. Eu não quero ficar brigando, afinal hoje é sexta-feira e está começando o nosso final de semana. Vou arrumar minhas coisas que amanhã cedo vou pra pescaria com os meus amigos.
Quinze minutos depois, com a parafernália de pesca espalhada na mesa da cozinha.
— Marcos Roberto, que molinete dourado é este aí? E essas iscas imitando peixes? Eu não conhecia esses seus apetrechos...
— Eu comprei agora saindo do trabalho. Estava precisando. Estas iscas são pra pescar durante a noite, brilham no escuro. Apaga a luz pra você ver.
— Mas você tem três caixas cheias de coisas de pescar. Não tem mais onde colocar essas suas coisas de pescaria naquele quartinho do fundo...
UM CAFÉ E A CONTA!
| O que você não deixa de comprar mesmo quando não tem mais necessidade?

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 07/03/2015, Edição Nº 1345.