sábado, 26 de maio de 2012

O Dia-a-dia em 4 Fotos

Arte de Weberson Santiago



Parei para observar quatro partes do dia que são como surtos. Pessoas cruzam a cidade para chegar ao seu destino e cumprir seus compromissos. Tive de me obrigar a parar para observar, porque na maioria das vezes faço parte do impulso repentino da correria. Estou me deslocando de um lugar para o outro enquanto todo mundo está indo de um lugar para o outro. Tirei uma foto de cada surto da coletividade para tentar mostrar o que acontece com as pessoas.

A primeira foto é o surto da manhã. Falo da transição entre a noite e o dia, da alvorada. O dia amanhece e obriga a cair da cama. A Lúcia programa o despertador para às seis horas da manhã, mas se acostumou a acordar às quatro e meia só para confirmar que tem mais de uma hora de sono. Isto porque às seis da manhã começa a correria. Preparar o café da manhã, trocar as crianças, leva-las pra escola e ir trabalhar. Quando Lúcia está dentro do carro com os meninos e da ré na garagem ela é engolida pelo surto. Só pra sair da garagem é uma novela. Quando não são os carros passando em ritmo de corrida, é a bicicleta na contramão ou o transeunte cruzando a garagem fora da calçada. Interessante observar que, pela velocidade, ninguém parece recém-acordado, e sim muito atrasado.

A segunda foto é o surto do almoço. É quando a gente se pega incomodado de ter de deixar o que estava fazendo por uma hora, ainda que seja para satisfazer uma necessidade primordial: a fome. Você descobre que trabalha demais quando já não é capaz de perceber, pelas reações do seu corpo, a hora de se alimentar. Neste segundo momento de desespero do dia, é preciso buscar as crianças na escola e levar para almoçar. Toda semana o André fica bravo com seu filho porque ele vive a convidar algum amigo para ir brincar em casa sem a sua permissão. O André precisa reverter o combinado, apressadamente, na porta da escola e depois dá uma bronca no menino no caminho para casa. Mastigar fica incompatível com a correria, a gente engole a comida para arrumar tempo para digerir mais algumas pendências. O André aproveita a volta do almoço pra passar no banco antes de deixar seu filho no primeiro compromisso da tarde. O problema é enfrentar o pequeno congestionamento nas esquinas do centro da cidade, já que ele não é o único que se desloca nesse horário.

O lusco-fusco marca a terceira foto do anoitecer. Para alguns é o fim da jornada de trabalho, para outros o início. Para a maioria, o fim de um dia produtivo e a hora de cuidar da casa ou de ir estudar. Mariana trabalha todos os dias das sete às dezessete horas. Para ela, no intervalo da saída do serviço até o início das aulas na faculdade, cabe um banho e um lanche rápido. Ela estuda em outra cidade e a van sai uma hora antes da aula começar. Lucas aproveita esse intervalo para para passar no supermercado. O fim de tarde é o horário de pico para fazer as compras. Este terceiro surto do dia é definido pela certeza de pegar fila no caixa do supermercado ou no posto de gasolina para abastecer o carro.  

Na quarta foto, o vai-e-vem cai pela metade. Depois das dez da noite, uma parte das pessoas já se recolheu em sua casa e não pretende por os pés pra fora até que um novo dia comece. Dentre essas, uma parte está jogada na cama ou no sofá, enquanto a outra parte ainda está correndo, só que dentro de casa para terminar o que falta antes do dia chegar ao fim. E é nesse momento, que os estudantes do período noturno saem aos bandos das escolas da cidade, que as vans de universitários devolvem os futuros profissionais em suas casas.

Um curto período de tempo de silêncio até que este álbum recomece na primeira foto.

Num dia tão fragmentado, o complexo  é fazer uma coisa de cada vez pensando naquilo que  está fazendo, e não no que se tem pra fazer depois. Difícil também é ocupar todos os nossos papeis na hora certa – o do pai, o do chefe, o do trabalhador, o do marido, o do amigo ou os outros papeis que vamos ocupando vida afora – ao invés de ser uma média de todos esses, sem ser nenhum. Há o risco de trocar o papel da situação – ser pai do amigo, o chefe da mulher e o funcionário da filha e por aí vai. Em cada parte do dia, o difícil mesmo é ser inteiro.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| As cenas não fotografadas são mais definitivas para a nossa vida do que as que encontramos em nossos álbuns. O que se repete todos os dias é o que constrói o futuro.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, Caderno Dois, p. 5, 26/05/2012, Edição Nº 1201. 

sábado, 12 de maio de 2012

A Lembrancinha da Viagem

Arte de Weberson Santiago



Fui dar uma aula de pós-graduação em São Paulo e descobri que não sei mais ser sozinho. Saí numa sexta-feira de manhã rumo à capital e, à medida que eu me distanciava do meu lar, um sentimento de ausência me ocupou o peito.

Já na lanchonete do posto que eu sempre paro pra tomar um café, lembrei que a Anelise adora o leite com chocolate que fazem por lá. Continuando na estrada, por vezes minha mão procurava a perna macia da Natália para descansar da aspereza do volante, mas encontrava o vazio.

Para consolar o sentimento, marquei com os amigos que não via há tempos alguns encontros antes e depois da aula, que aconteceu na noite daquele dia. No dia seguinte, depois de um bom banho, fui pra Galeria dos Pães. É uma padaria gigante onde os sanduíches recebem o nome de grandes pintores como Van Gogh, Da Vinci, Rodin, Salvador Dali e por aí vai.

Foi inevitável pensar que a Natália adora comer o Portinari, pão francês com queijo branco, tomate e orégano, mas não estava ali para degustar seu preferido. Foi então que percebi que eu não sei mais ser sozinho, funciono somente com ou outros dois terços, a Natália e Anelise. A saudade ganha cara de preocupação. A carência só pode ser disfarçada por meio de alguma compensação. Ao terminar o café da manhã, parti pro paraíso de pães e doces pra escolher um quitute para trazer para as duas. Era o que eu podia fazer.

O Mateus, 19 anos, havia conhecido a Carol, 17, há dois meses. Ficaram naquele passo a passo de aproximação, em que se buscam coincidências de gostos e datas, com direito a frases de dupla interpretação nas suas páginas do Facebook. Depois passaram a trocar mensagens diárias por SMS, até que marcaram um encontro. E depois dos primeiros beijos estavam os dois apaixonados. Os pais de Mateus estranharam a motivação triplicada, enquanto a mãe da Carol estava notando ela avoada.

Acontece que o Mateus tinha marcado uma viagem pelas cidades históricas de Minas Gerais com seus amigos, o que interrompeu o curso do seu envolvimento amoroso. O amor sempre entra na agenda sem planejamento, ao contrário das viagens com os amigos.

Enquanto descobria as igrejas de Ouro Preto, passeava pela praça de Tiradentes, apreciava os artesanatos de Mariana e conhecia os doze profetas de Aleijadinho em Congonhas do Campo, os seus pensamentos vagavam em busca da Carol.

Em cada lugar que passou, comprou um presente para a amada. Miniatura dos profetas em pedra sabão, tapete de tear manual pra ela colocar no quarto, pedras retiradas das grutas e outras coisas até encher a sua mochila. Quando ele voltou, a Carol ficou surpresa com a quantidade de mimos que recebeu, mas ouviu feliz a história de cada coisa que tirava da sacola.

Quando nós não podemos levar quem amamos até um lugar, roubamos um pedaço do lugar e levamos a quem amamos. O presente de viagem é uma evidência que mostra a nossa dependência. E entre todos os tipos de dependência que existem, prefiro a que surge do amor. Como toda dependência tem um pouco de loucura, justificar racionalmente o incômodo de estar sozinho soa como fragilidade. Uma loucura chamada insuficiência, que se torna saudável quando começa em uma falta percebida e termina em um sorriso diante das lembranças trazidas.

  UM CAFÉ E A CONTA!
| Demonstre a saudade quando ainda conta com a presença. Diante da ausência, é preciso ser professor da saudade e ensiná-la a se contentar apenas com a lembrança.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 12/05/2012, Edição Nº 1199.