sábado, 30 de maio de 2015

Descascar o Abacaxi

Arte de Augusto Amato Neto



Em nome de uma vida mais saudável, resolvemos manter um estoque de frutas e verduras em nossa cozinha. A ideia era aumentar o consumo de alimentos naturais, o que diminuiria nossa ingestão de alimentos menos saudáveis.
Me lembrei da casa da minha avó, lugar onde comi as melhores frutas da minha vida. Sempre que ela servia uma fruta, ela estava no ponto, gelada e doce. A fruteira sempre repleta de frutas em espera do ponto ideal. Se eu queria o mesmo, conclui que deveria deixar que elas chegassem ao ponto.
Também deveria saber escolher as frutas. E segredos como puxar a folha da coroa do abacaxi e ver se ela se solta com facilidade foi coisa que eu aprendi com a minha avó.
O primeiro abacaxi que comprei ficou por três dias na fruteira. Ele exalava um perfume doce quando conclui que era a hora de descascá-lo e cortá-lo. Quando dei os primeiros golpes de faca descobri que um quarto do abacaxi estava estragado. Não deu pra salvar nada, acabou inteiro no lixo.
Não quis me dar por vencido. O segundo abacaxi comprei com orientação da moça que toma conta do hortifrúti. Pedi que ela me indicasse um abacaxi que estivesse pronto para cortar. Ela utilizou o truque de puxar uma folha da coroa e foi comparando um com o outro.
Cheguei em casa e comecei a descascar. Se você passa a faca muito superficialmente, o abacaxi fica cheio de pontas de cor marrom na lateral. Se você retira uma fatia muito grossa da casca, desperdiça uma parte da polpa. E enquanto você descasca, vai escorrendo uma calda por toda a pia. Descobri que tem que ser descascado em uma vasilha depois de fazer aquela lambança.
Achei que seria fácil, mas descobri o quão difícil é descascar um abacaxi. Não estou falando de resolver os problemas da vida, mas de conseguir aproveitar o melhor da fruta.
O segundo abacaxi eu consegui comer com a Natália e a Anelise. Depois que cortei, deixei gelar. Lá em casa, deixamos a canela num saleiro. Isto eu também aprendi com a minha avó. Eu salpico a canela no abacaxi e mando ver. Fica bom demais.
O terceiro abacaxi, a Natália descascou. Ela se saiu bem, estamos começando a aprender os segredos das frutas. Mas dois dias depois de cortado, ele já começou a escurecer na geladeira. Acabamos desperdiçando uma parte do abacaxi. Deveríamos tê-lo comido mais depressa.
É preciso aprender o tempo da fruta. Conhecer seus detalhes, seus sinais. É preciso dominar a prática. Não desistir facilmente na primeira vez que deu errado. Esse segredo de puxar as folhas nem sempre dá certo. Às vezes ela está dura pra sair mas o abacaxi está doce. Passei a analisar outros fatores: a coloração e o cheiro. Se dois dos três fatores estão indicando que ele está bom, abro o abacaxi. Por exemplo: se a folha se solta com facilidade e a cor está amarelada, pode abrir; ou se o cheiro está doce e a cor amarelada, está no ponto.
Escolher abacaxi é uma ciência. Descascar abacaxi é uma arte. Saudade do tempo em que eu encontrava o abacaxi descascado, fatiado e gelado na mesa.
Amadurecer é aprender a descascar seus próprios abacaxis.
UM CAFÉ E A CONTA!
| A complexidade também está presente nas coisas simples.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 30/05/2015, Edição Nº 1357.

sábado, 16 de maio de 2015

O Primeiro e Último Voo do Teodoro

Arte de Augusto Amato Neto


Foi numa fração de segundo. Enquanto a faxineira limpava a sua gaiola, num instante em que uma fresta ficou aberta. Ele fugiu. Eu assisti a cena. Foi tão rápido que não deu tempo de fazer nada. Num segundo ele estava dentro da gaiola, no outro saiu voando sem dar tempo de enxergar pra que lado foi.
Na hora partimos para a casa dos vizinhos para ver se ele estava nalguma árvore do quintal. Nem sinal dele.
Teodoro era nossa calopsita de estimação. Veio para nossa casa ainda filhote, há mais ou menos um ano. Quando eu fui busca-lo no pet shop, o vendedor insistiu em lhe cortar as asas mesmo eu dizendo que não queria. A partir deste dia ele passou a se esquivar e temer o contato com as mãos. Eu gastei um bom tempo tentando dessensibilizá-lo deste medo, mas ainda não tinha conseguido que ele confiasse em mim a ponto de subir em meu dedo. O ponto que eu havia chegado era o de colocar meu dedo em sua cabeça e lhe fazer um cafuné. Ele adorava: andava pra trás e voltava pra ganhar outro afago.
Se a interação não envolvia a mão, fluía melhor ainda. Alguns meses após chegar, Teodoro aprendeu a piar, depois a cantar. Estava treinando-o a assoviar a música do desenho do pica pau. Ele já havia aprendido as três partes separadas da música, mas ainda não conseguia cantá-la inteira. Teodoro morava na lavanderia, do lado de fora da cozinha, de frente a pia e ao fogão.
A primeira coisa que eu faço quando acordo é tomar água. Às cinco horas da manhã, era eu acender a luz e ele começava a assoviar a música (“re-re-re-re-rê”) e eu respondia continuando a música em assovio. E ele repetia este comportamento toda vez que eu passava pela cozinha. Às vezes assoviávamos um pro outro dos extremos da casa.
Trouxe o Teodoro para casa para alegrar nossos dias e ele alegrou muito. Já tínhamos um pássaro, a periquita australiana Yvonne. Ela já é mais velha e mais pacata, mas Teodoro conseguiu alegrar até a vida dela. Ele era cativante. Tão cativante que foi difícil aceitar o seu sumiço.
A Natália quando chegou em casa e ele não estava sentou no degrau da porta da cozinha e destampou a chorar. A Anelise não se conformou:
— Não tem como a gente ensinar a Yvonne a falar pra ver se ela viu pra onde ele foi e nos dar alguma pista? – questionou a pequena.
Durante alguns dias, eu acordava e ia pro quintal. Chegava do trabalho e ia pro quintal. Dava o assovio inicial (“re-re-re-re-rê”) para ver se ele respondia, na esperança que ele estivesse por perto. O silêncio me doía. A Natália resolveu deixar a porta da gaiola aberta, caso ele encontrasse o caminho de volta. E até hoje, nada.
Como é ruim acordar sem ele do lado de fora. Cozinhar aos finais de semana sem ele dependurado de ponta cabeça na gaiola.
Teodoro deu seu primeiro e único voo de liberdade, ganhando o mundo e nos deixando a saudade.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Se não for na minha gaiola, será na de outro alguém, então que seja na minha pra que eu possa cuidar bem.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 16/05/2015, Edição Nº 1355.

sábado, 2 de maio de 2015

Imagens do Rio de Janeiro

Foto de Augusto amato Neto


Quando o avião percorre um trecho do litoral e se aproxima do Rio de Janeiro já é possível entender porque aquela paisagem encanta desde o descobrimento do país. Na descida para aterrisagem no Aeroporto Santos Dumont, ao passar ao lado do Cristo Redentor no Corcovado, da Urca e do Pão de Açúcar fica fácil compreender porque aquela cidade inspirou tantos poetas, escritores, músicos. São trezentos e sessenta graus de belezas esculpidas pela natureza.
Quando se conhece o Rio de perto, percebe-se que o Cristo Redentor só olha por metade da cidade e dá as costas à outra metade, como fala o Chico Buarque na letra da música Subúrbio. É uma cidade de contrastes: de um lado o condomínio de luxo, girando levemente o pescoço vê-se a favela. É uma cidade encantadora e incômoda ao mesmo tempo. De um lado da montanha as paisagens são bonitas de onde quer que se esteja. Do outro lado do morro tudo é cinza.
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Andando pelas ruas de diversos bairros do Rio, sentia um cheiro de esgoto ou de ralo que me fazia procurar um bueiro vazando. Não achava. De repente, meu olfato era invadido por um perfume delicioso no meio da multidão. Não sei seu nome, queria perguntar a quem estava usando, mas não tinha como identificar no meio de tanta gente. A estada oscilou entre os dois odores opostos.
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Esperando um ônibus no ponto com a Natália, vi um homem de cinquenta anos segurando na mão de filho de aparentes vinte anos. Nitidamente o garoto tinha desenvolvimento atípico, mas não sei qual transtorno ele tinha. Pararam do nosso lado, enquanto o filho batia com a unha nos dentes incisivos repetidamente. Ele se virou e questionou: - “Pai, a vida é difícil?”. Nesse entremeio o ônibus deles chegou e o pai lhe respondeu “É.” enquanto lhe pegou pela mão e entrou no ônibus.
Noutro dia, almoçávamos na Confeitaria Colombo do Forte de Copacabana quando notei uma família. Os pais de um lado da mesa e o filho, portador de Síndrome de Down, do outro lado acompanhado de sua namorada. Ela tinha a cabeça pequena em relação ao corpo, mas parecia não ter comprometimento cognitivo. A felicidade dos quatro era transbordante. Durante todo o tempo que estive lá, as risadas foram muitas. Os pais tomaram um vinho, enquanto o jovem casal competiu na hora de dividir a sobremesa. Foi a cena de convivência familiar mais leve e bonita que presenciei na minha vida, já que não era um filme ou cena de novela.
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Exatamente metade dos motoristas e cobradores de ônibus, balconistas de restaurantes, supermercados e padarias foram extremamente gentis, cordiais e solícitos em nossos pedidos mais diversos. Riram de quando eu falava o erre caipira ao perguntar ou pedir qualquer coisa, mas se contiveram por educação. A outra metade estava de muito mau humor e fazia questão de deixar claro que estava tomado pela ira. Não costumo ser maltratado pelos insatisfeitos com o trabalho ou com a vida, e fui um bom bocado maltratado no Rio. Como estava a passear, ignorei a grosseria e recorri às imagens boas que haviam passado.
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Conheci a famosa noite boêmia da Lapa. Descemos na Marina da Glória e fomos caminhando até os arcos da lapa. Nos entremeios do bairro, cruzei pontos de prostituição, feiras de objetos usados expostos em tapetes usados, muita pobreza até chegar no casarão antigo transformado em bar. No ar-condicionado, curti o som do cantor e compositor da nova geração do samba Moyseis Marques, acompanhado da Banda Joia Rara. Do meu lado esquerdo um casal de alemães, do lado direito um casal e uma mulher mais velha falavam espanhol. Passávamos frio com o ar condicionado, os gringos já haviam retirado casacos das bolsas quando pedi para diminuírem o ar condicionado. As duas mesas ao lado me agradeceram. Ficaram mais felizes com a minha atitude do que quando viram a caipirinha chegando. Ninguém vai ao Rio para passar frio.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Apesar de todas as agruras, as belezas compensam. Voltaria para ficar o dobro do tempo que passei no Rio.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 02/05/2015, Edição Nº 1353.