sábado, 27 de abril de 2013

Vide a Vida

Arte de Weberson Santiago



Viver é nascer. Ser expelido no mundo e lutar para preservar seu lugar nele.

Viver é se alimentar. É comer demais para sentir saudade da fome. É ficar um tempo sem comer para recuperar a vontade.

Viver é ser satisfeito para ficar mal acostumado. É ficar insatisfeito para correr atrás.

Viver é ir soltando a ingenuidade para abraçar a maturidade.

Viver é conquistar a autonomia e deixar a liberdade.

Viver é enterrar alguns ideais para tropeçar numa nova forma de ver o mundo.

Viver é ter mais sonhos do que comporta a realidade.

Viver é escolher um ritmo principal para a trilha sonora da sua vida.

Viver é a eterna busca pela intensidade adequada. E viver é oscilar entre a moderação e o exagero.

Viver é deixar a roupa da atividade física no fundo da gaveta para redescobrir o prazer de se exercitar.

Viver é arranhar e amassar o carro pra ele ficar velho e ser trocado.

Viver é ganhar dinheiro e pagar contas. E ter que ganhar de novo para pagar mais uma vez.

Viver é ter paciência de banho-maria quando se está dentro da panela de pressão.

Viver é enrugar e manchar a pele. Viver é esculpir uma corcunda, enferrujar as articulações, enumerar dores.

Viver é colecionar machucados e cicatrizes.

Para os homens, viver é prolongar a testa em direção à nuca.

Para as mulheres, viver é o exercício eterno de arrumar os cabelos enquanto se aceita que os peitos e as nádegas cedem à gravidade.

Viver é sonegar fraqueza e esbanjar disposição.

Viver é despistar a morte a cada dia, querendo empurra-la pra frente para adiar o fim.

Viver é abrir mão sem ficar de mãos vazias. É conceder sem sentir que perdeu.

Viver é ficar amigo da solidão estando sempre acompanhado.

Viver é ter vergonha de não ser feliz.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Vide a vida para vir a viver de verdade.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, Caderno Dois, p.4, 27/04/2013, Edição Nº 1249. 

quarta-feira, 17 de abril de 2013

MATHEUS INCLUIU O VIVER EM TODA A SUA VIDA

Matheus Braga




Eu tenho um lindo exemplo na minha família do que hoje as pessoas chamam de inclusão.

Meu tio Paulo Braga é casado há muitos anos com a tia Denise. Tiveram três filhos: Vinicius, Matheus e Lucas. Matheus, o do meio, nasceu com paralisia cerebral devido à falta de oxigênio durante o parto. O diagnóstico inicial foi definido, mas o prognóstico era dolorosamente indefinido. As sequelas só seriam descobertas durante seu desenvolvimento.

Buscaram tratamento para que ele se desenvolvesse o máximo que pudesse, mas o grande acerto do tio Paulo e da tia Denise foi dar a mesma educação que deram ao Vinícius e ao Lucas para o Matheus. Eles nunca o trataram como incapaz ou inferior. Com isto, se recusaram a ensinar que ele deveria se excluir por suas limitações.

Talvez esse seja o erro da nossa sociedade. Criamos e mantemos todas as condições que excluem quem tem algum tipo de deficiência para depois ficar tentando consertar com a inclusão. Aí já é tarde. Se sentir excluído dói demais. Ser considerado e tratado como capaz é o que faz desenvolver. O Matheus é a prova disso.

Matheus foi criado com os mesmos limites e os mesmos deveres que seus irmãos. Mesmo com um déficit na perna que dificultava um pouco o andar, nunca foi poupado das tarefas de casa, igualmente distribuídas. Os irmãos é que às vezes o protegiam, em tom de cumplicidade e lhe poupavam oferecendo ajuda nos deveres. Naturalmente, o Vinicius e o Lucas continuaram a ajudar o Matheus também na vida adulta. Recentemente, o Vinicius e sua esposa Ellen, nas últimas férias, o levaram para passear em Buenos Aires, na Argentina.

Na adolescência, onde um dos irmãos ia, lá estavam os três. Eu que tinha vergonha de sair com meus irmãos na adolescência, ficava constrangido quando encontrava os três, sempre tão unidos. Embora a vida tenha levado a família do tio Paulo e a tia Denise para São José dos Campos, encontrar com eles sempre foi divertido. Os três irmãos são donos de uma risada única e marcante, um riso exagerado e contagiante. São bonachões, falam alto.

Nossas famílias sempre se identificaram. Talvez porque as duas têm três filhos homens. Foi com o tio Paulo que meu pai aprendeu um método de resolver conflitos entre filhos. O tio Paulo sentava os dois que estavam brigando e perguntava o motivo da briga. Vinha uma lista de coisas que um fez pro outro até que ele apartasse. Então ele falava: “você não está com raiva do seu irmão? Então bate nele! Vai, vamos resolver isso agora!”. Os dois choravam e não tinham coragem de se bater. Aí ele fazia dar um abraço. Mandava repetir até que tivesse o mínimo de carinho. Quando meu pai aplicou o tal método, foi tão incômodo que eu passei a economizar nas provocações com os meus irmãos.

O Matheus sempre foi um exemplo de superação e contou com seus pais que puderam proporcionar tudo, mas não tudo aquilo que o dinheiro compra e sim o que o amor pode construir. Falando assim, parece uma família perfeita. A deles não é, como a minha e a sua que me lê também não são.

Eu só conheço um ponto em que os irmãos se divergem drasticamente. É no futebol. Desde pequeno, o Vô Mauro foi convencendo o Matheus com bolas e uniformes do seu time do coração e ele se tornou um são-paulino roxo. A briga na família é porque o Vinicius, o Lucas e o tio Paulo são corintianos.

Matheus trabalha há sete anos na loja de construção Leroy Merlin. Calmo e tranquilo, sempre disposto a ajudar, assim Matheus é descrito por seus colegas de trabalho. Leitor voraz de revistas e jornais, gosta de dar notícias de tudo e entende de todos assuntos: política, economia e, principalmente, de esportes.

O trabalho permitiu acumular um dinheiro na poupança. Com a ajuda dos irmãos e do Vô Mauro, na última terça, Matheus fechou a compra de um apartamento. Estava tão emocionado, tão feliz.

Quando acordou na quarta-feira para ir ao trabalho, Matheus começou a passar mal e teve um infarto fulminante.

Assim como toda a família e os seus colegas de trabalho, ainda está difícil aceitar o que aconteceu. Eu mesmo não consegui contar essa história no tempo passado, resistindo ao fato de termos perdido o Matheus. A minha vontade é de que tudo isso continue no presente e no futuro.

Todos nós escolheríamos a continuidade. Quem sabe ele pudesse realizar o sonho de fazer faculdade de jornalismo. Queríamos que ele pudesse encarar os desafios do novo apartamento, as situações do seu trabalho que surgiriam e o que mais a vida lhe pudesse oferecer.

É duro aceitar esta imposição. Para nos ajudar a processar a perda, resolvi tornar pública a história do Matheus e do amor que o tio Paulo, a tia Denise, o Vinicius e o Lucas, seus avós, tios e primos tinham por ele. O que ele viveu estará sempre na nossa memória como sinônimo de superação e, agora, fará parte das lembranças de quem leu e conheceu o quanto especial o Matheus foi para nós.


sábado, 13 de abril de 2013

E Se... Eu Deixasse os Dilemas de Lado?

Arte de Weberson Santiago



Todo dilema é seguido por uma justificativa. “E se...” tem como sequência um “É que...”.

E se eu tivesse nascido em outra família?

É que me incomodo com a minha história de vida. Não aceito os meus pais, meus irmãos me irritam. Queria ter tido outros modelos, outros exemplos. Talvez assim não tivesse as dificuldades que me perseguem, nem as falhas que me pego repetindo e que aprendi com eles. Penso que as coisas poderiam ter sido diferentes se eu não tivesse nascido nessa família.

E se eu tivesse feito outra faculdade?

É que eu tenho tido tantas dificuldades para me colocar no mercado de trabalho. Se eu tivesse optado por outro curso, talvez o meu salário fosse melhor. Quando me comparo com outros profissionais, parece que para mim as coisas são mais difíceis.

E se eu tivesse aberto um negócio ao invés de ser empregado?

É que estou canelando muito nesse meu emprego. Se eu tivesse meu próprio negócio, trabalharia para o que é meu e poderia ter ganho mais dinheiro. Ou talvez estivesse endividado.

E se eu tivesse comprado um carro ao invés de uma moto?

É que se eu tivesse um carro, não teria tomado chuva de manhã e nem na hora do almoço. Gastaria mais gasolina e ainda estaria pagando o financiamento, mas chegaria seco no serviço.

E se eu tivesse aprendido a dizer não? A falar o que eu penso?

É que desta forma eu poderia me sentir respeitado. Mas é provável que eu tivesse agredido demais meus familiares e eles tivessem se afastado. Estaria desempregado se me negasse no trabalho como queria poder discordar.

E se eu não tivesse casado e tido filhos?

É que assim eu teria viajado, conhecido mais parceiros antes de me prender. Teria mais dinheiro para gastar e ter prazer.

O “E se...” é uma ilusão que nasce morta. Ninguém garante que qualquer uma dessas coisas teria acontecido se a escolha tivesse sido a outra. “E se...” é uma forma de justificar a impotência e a impossibilidade de fuga, uma estratégia para enganar a si mesmo e se esquivar das responsabilidades da situação atual.

O passado é como um tanque de água que represa todas as nossas experiências. As novidades que nos fazem felizes são como a chuva. A chuva cai em diferentes intensidades, quando cai. De vez em quando se retira e dá lugar a estiagem. A felicidade é mais ocasional do que gostaríamos. E quando ela cai, logo se mistura às águas passadas. A novidade se dilui rapidamente e passa a ser parte da rotina.

O problema é que passamos boa parte do tempo tentando baldear o passado com uma caneca de dilemas (E se...) e uma concha de justificativas (É que...), na esperança de que, tendo esvaziado uma boa parte do tanque, uma grande quantidade de novidade venha a cair do céu.

Ledo engano. Doce ilusão. O negócio é desfazer a miragem e aceitar a sua origem, o percurso da sua vida, o trabalho e o meio de transporte disponível, os sapos engolidos e aprender a lidar com a família que constituiu.

É mais fácil se perder entre dilemas e justificativas do que partir para a ação diante das coisas do jeito que são (ou estão).

 UM CAFÉ E A CONTA!
|Em vez de tentar eliminar o passado, agarre-o. É a sua história. Abrace-o como irreversível que é e estará pronto para as novidades.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, Caderno Dois, p. 3, 09/04/2013, Edição Nº 1247.