sábado, 22 de dezembro de 2018

Como Sobreviver Ao Final do Ano?

Arte de Weberson Santiago



É quase impossível sobreviver e sair ileso ao período de festas de final de ano.

Partimos do cansaço acumulado no decorrer do ano e nos deparamos com uma série de compromissos típicos: confraternizações, amigos secretos e as ceias e almoços de Natal e Ano Novo.

O que mais queremos nessa época é finalizar, é chegar ao fim dos compromissos que perduraram todo o ano. Não vemos a hora de parar para descansar, para pensar, para curtir e, porque não, para dedicar-se a arte de não fazer nada. Mas isso só é possível na fantasia porque na realidade é preciso encontrar forças para o milagre da multiplicação dos compromissos de final de ano.

Não há como fugir de encarar uma maratona de festas regadas a álcool e comilança. Ninguém quer ser tachado de antissocial ou de estraga prazeres do grupo. É festa da firma, amigo secreto da turma de Pilates, confraternização do curso, cerimônia de colação, festa de formatura, ceia, almoço e por aí vai.

Se as vinte quatro horas do dia parecem poucas para nossas demandas, o que é dezembro para toda essa festança? Não dá para parcelar durante o ano?

É preciso mais que disposição para as compras de final de ano.  Encarar as filas nos supermercados e nas lojas. Treinar meditação no trânsito no centro e a atenção para achar uma vaga de estacionamento. É só o início da jornada de compras.

A multidão se atracando para comprar são obstáculos obrigatórios: você estará em desvantagem na distância em comparação a outro consumidor, ambos mirando o último item de um produto essencial para a sua ceia. A disputa ocorrerá em câmera lenta e você certamente perderá. Mais um teste de paciência para ver se você será um bom menino ou uma boa menina neste Natal. Programe-se e evite as ciladas do comércio dessa época.

A família é um capítulo à parte. Há quem passe o ano brigando e depois brinde a aparente harmonia nessas festas, com direito a foto e tudo. Isso quando a própria festa que deveria ser santa não se torna palco de intrigas e discórdias que vão se desenrolar no ano seguinte.

Por isso, recomendo que você se prepare pensando em tudo o que pode dar errado na sua festa de família e tenha um plano para lidar com o que pode acontecer. Pode parecer um excesso de preocupação de alguém que só vê o lado ruim das coisas. Não penso que seja exagero. É apenas uma estratégia para que sua ceia e seu almoço não sejam indigestos. Um exercício para você se proteger.

Está cada vez mais difícil encontrar sentido para o Natal ao nosso redor. Por isso, encontre o sentido do Natal dentro de você. E se proteja do resto.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Se alguém tiver um manual de sobrevivência para as festas de fim de ano, por favor me empreste.

 Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 21/12/2018, Edição Nº 1543.



sábado, 1 de dezembro de 2018

A Felicidade Pode Ser Uma Fuga da Dor

Arte de Weberson Santiago




Lucas era um cara feliz. O sorriso parecia ter sido carimbado na sua cara. Estava sempre brincando com aqueles que estavam ao seu redor.

Não eram brincadeiras inconvenientes, mas piadas divertidas. Aproveitava toda oportunidade que tinha de deixar a vida mais leve.

Ninguém lhe passava despercebido, o cumprimento era sempre acompanhado de um sorriso e uma tirada. Parecia que Lucas acordava todos os dias para espalhar a felicidade por onde passasse.

Por conta deste comportamento, era visto como alguém legal e espontâneo para a maioria das pessoas. Não tinha inimigos, raramente incomodava alguém.

Um dia, numa roda de colegas da qual eu fazia parte, surgiu o comentário de que alguém na cidade havia se suicidado. Foi quando Lucas fez uma revelação que surpreendeu a todos.

A sua mãe havia se matado quando ele ainda era criança. Ele contou que ela sempre teve depressão e havia passado a vida toda entre momentos de grande tristeza e de melhora.

A separação lhe fez recair mais vezes. As primeiras tentativas foram com excesso de medicação, mas ela sempre sobreviveu.

Mais adiante ela se jogou na frente de um veículo em movimento. Não morreu na hora, ficou dias internada. Quando Lucas lhe perguntava a razão de ter feito isso durante a internação, ela mudava de assunto. A angústia era sua maior companheira, ela já havia revelado antes que queria pôr fim ao seu sofrimento.

A família já havia tentado psiquiatra e psicólogo, mas não haviam sido suficientes para lhe amenizar a dor. No hospital ela pegou uma infecção e morreu. Lucas revelou que ainda pensava que podia ter feito mais alguma coisa, apesar de eu ter observado que o seu relato todo tenha sido feito com aceitação.

A turma que o rodeava, depois da surpresa com a revelação, acolheu a história de Lucas e retribuiu com afeto a alegria que ele proporcionava na convivência. Ninguém imaginava que alguém que esbanjava tanta animação pudesse ter vivido algo tão difícil.

Para mim, ficou mais fácil entender a sua alegria. Lucas havia se proposto uma missão: a de não permitir se entregar a tristeza e de ajudar àqueles que estão ao seu redor a não sucumbir a dor.

Desta maneira, evitaria que outros filhos perdessem uma mãe ou um pai, um irmão ou um filho. Com isso, curaria a sua própria dor enquanto ajudava os outros a deixar a sua de lado.

As situações mais difíceis sempre têm muitas saídas. Algumas nobres e honrosas. Outras atalhos perigosos. Na minha opinião, Lucas havia transformado seu sofrimento em algo produtivo, havia encontrado uma saída honrosa para lidar com a sua perda.

Mais vale lutar para manter a felicidade do que se entregar resignado a dor.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Por trás da alegria abundante pode existir uma boa dose de tristeza.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 30/11/2018, Edição Nº 1540.

sábado, 10 de novembro de 2018

A Ausência de Limites é a Base da Insegurança

Arte de Weberson Santiago




Fazíamos uma caminhada quando a Natália resolveu dividir uma reflexão a partir da sua prática clínica psicológica. Ela me disse que havia pensado sobre como estamos o tempo todo extrapolando os limites e necessitando que alguém nos coloque de volta no lugar que corresponde ao nosso naquele momento.

Ela me dizia que é assim desde a gestação quando não nos contentamos com os limites do útero e tentamos ganhar espaço com chutes e movimentos. Pensei que aqueles chutes que comemoramos talvez não deveriam ser tão festejados se considerarmos como uma forma precoce de extrapolar os limites levemente agressiva. Difícil é não se derreter com a mágica da vida tomando forma.

Naquele momento, involuntariamente a mãe está ponto limite com seu útero. Mas não demora muito para o bebê querer ficar sentado o tempo todo e termos de deita-lo, para ele querer ficar de pé no berço, nos obrigando a descer o estrado, dele engatinhar e andar, querendo explorar mais espaço do que sua segurança permite e lá vamos nós correndo atrás para mostrar até onde ele pode ir.

E isso não termina com a infância. A adolescência é a extrapolação dos limites de dentro e de fora de casa, quando pedimos para ser contidos nessa busca por liberdade. É provável que até na vida adulta busquemos este limite em uma relação estável que freie uma vida desregrada e promíscua, um trabalho que me ponha horários e regras e não me permita viver de qualquer jeito.

Alguém poderia questionar o quanto o limite é uma necessidade. A necessidade do limite fica evidente quando ele não existe. Se o limite fosse algo restritivamente ruim, sua ausência deveria trazer felicidade. Na psicologia clínica vemos o contrário.

Quando há ausência de limites, a pessoa se sente negligenciada, como se fosse pouco importante para que os próximos se preocupassem com ela. A falta de alguém que me proteja me faz experimentar sentimentos de solidão e tristeza. Esta ausência pode fazer inclusive com que eu me sinta invisível. Vemos que é esta ausência – muitas vezes uma ausência presente – que está por trás de automutilação e tentativas de suicídio em adolescentes, por exemplo.

Como suas necessidades afetivas não são percebidas e uma série de imposições que consideram o desejo dos pais se sobrepõe, o comportamento autolesivo de um adolescente pode ser uma forma – ainda que drástica – de pedir amor na forma de compreensão e na forma de limites.

A reflexão inicial da Natália me fez pensar no momento político e social em que estamos vivendo e o comportamento das pessoas, sobretudo nas redes sociais. Acredito que o comportamento intolerante e agressivo que temos visto tem muito a ver com a ausência de limites. Tenho a sensação que vejo pessoas desesperadas por atenção e para que alguém venha, ainda que sobre a forma de conflito, e lhe ponha limites. Todo mundo é extremamente corajoso atrás de um computador ou celular porque não tem o semblante e o olhar – e as vezes a mão – do outro lhe pondo limites.

Não acredito que as pessoas postem suas posições com o intuito de instruir os desinformados. Também não acredito que o propagador de fake news o faça por ignorância. Ele está desesperadamente pedindo que alguém o corrija e prolongará o máximo da atenção que puder obter “resistindo” a ceder para se certificar que não pode tudo e que não está sozinho neste mundo. A insegurança que sentimos neste momento é por vivermos em um mundo em que tudo pode. E poder tudo é não ter limites.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| O limite não limita, dá segurança.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 10/11/2018, Edição Nº 1537.

sábado, 20 de outubro de 2018

As Flores Não Mentem

Arte de Weberson Santiago



As flores nunca mentem. Posso lhe dar um ramalhete de exemplos para comprovar.

As flores nunca mentem quando recebemos uma visita que parece muito feliz com nossos progressos pessoais, mas que esconde uma inveja enorme de nossas conquistas. As flores murcham pouco tempo depois para nos mostrar com quem estamos lidando.
Se ainda resta alguma dúvida de que as flores murcharam por conta da inveja elas reagem brotando ou florindo um tempo depois para nos lembrar que o motivo de ter murchado foi o sentimento da visita. As flores nunca mentem.

As flores nunca mentem quando recebemos um buquê de presente. Se retrata de um amor verdadeiro o buquê exala frescor. Se foi planejado para comemorar uma data especial, o buquê conversará com você sobre as memórias do relacionamento. Se foi um presente para compensar uma pisada de bola, as flores estarão dispostas a lhe dar um alerta sobre os perigos da sedução, mas só se você estiver disposto a ouvir. As flores nunca mentem, desde que nós mesmos não queiramos nos enganar.

As flores nunca mentem sobre o quanto as pessoas são boas em cultivar. As flores revelam se a pessoa tem “mão boa” para plantar, se a pessoa tem disponibilidade para cuidar com frequência, se a pessoa sabe perceber a necessidade da planta e dos outros, se a pessoa sabe adubar suas plantas e as pessoas de ideias.

As flores nunca mentem quando morrem e respeitam nossa dificuldade em lidar com a perda. Se nossa dificuldade é grande, a flor perde pétala por pétala para que nos acostumemos com a morte. Se já endurecemos diante de outras perdas, a flor seca por inteiro. Se são muito representativas, aceitam ser esmagadas pelas páginas de um livro para que sejam eternizadas, ainda que secas.

As flores não mentem quando estão presentes nos velórios. Há coroas que verdadeiramente homenageiam, mas há outras que revelam culpa por uma atitude com o morto ou remorso pelo abandono no final da vida. E as flores entregues no túmulo com frequência revelam a dificuldade de aceitar a perda ao tentar manter a pessoa viva dentro de si com o ritual. As flores nunca mentem.

Por isso eu não concordo com o Cartola– e não concordo só com este trecho de toda sua obra – quando ele diz que as rosas não falam. As rosas não só falam como avisam, aconselham, dão dicas e até gritam. As gérberas, petúnias, begônias, margaridas, violetas e até os cravos também. Basta querer ouvir.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Você já ouviu as verdades que as suas flores tem para lhe dizer?


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 20/10/2018, Edição Nº 1534.

sábado, 6 de outubro de 2018

A Virtude de Aprender a Lidar com as Emoções

Arte de Weberson Santiago




Uma das maiores virtudes que se pode ter nos dias de hoje é a capacidade de gerenciamento de emoções negativas.

O manejo de pensamentos desagradáveis, sentimentos ruins e memórias difíceis de lidar é fundamental para que sejamos capazes de viver.

Nossa principal tendência diante de um pensamento ou sentimento ruim é tentar fazer algo para que paremos de pensar ou de sentir. Como se a esquiva ou a fuga fossem de fato uma maneira de lidar com eles.

Na verdade, ainda que seja uma tentativa de resolução, a fuga ou a esquiva só encerram ou adiam o contato temporariamente. Com esses comportamentos apenas deixamos o problema para depois e não aprendemos a lidar com eles.

O complicado é que não percebemos que fazemos isso muitas vezes ao dia e que a longo prazo ficamos limitados na arte de fazer malabarismos com estas emoções ao viver a vida.

Os psicólogos que propões a Terapia de Aceitação e Compromisso afirmam que tentar controlar os pensamentos, sentimentos, emoções e memórias é parte do problema e não a solução.

Para eles, a saída é exatamente o contrário: para que seus pensamentos e sentimentos deixem de atrapalhar a sua vida você deve tolerar entrar em contato com eles e deixarem que eles passem.
Esses terapeutas dizem que o sentimento costuma ser evocado por uma situação, até atingir um máximo de intensidade e depois ele passa. Ou seja, para gerenciar é preciso ser capaz de sentir e deixar passar.

Para a TAC, um sentimento não é a realidade, é uma resposta do seu corpo a uma realidade, mas é só um sentimento. De maneira que suas decisões não devam ser tomadas nesse momento de maior intensidade.

O mesmo raciocínio vale para os nossos pensamentos. Eles são resultados de nossa história de vida e evocado pelas situações atuais. Muitas vezes nossos pensamentos se distanciam da realidade e são “maus conselheiros” para lidar com as situações.

A TAC diz que a direção de nossas ações não pode ser definida por aquilo que pensamos e que as vezes devemos inclusive desconfiar do quanto nossos pensamentos são precisos, de maneira a olhar nosso próprio comportamento e as situações com distanciamento.

Se eu falarei em público, por exemplo, e no caminho penso que posso falar algo errado e passar um constrangimento, se eu levar esse pensamento muito a sério eu darei meia volta e voltarei para casa, o que seria um erro.

É preciso parar de encarar os pensamentos e sentimentos negativos como problemas e compreendê-los como parte de nosso funcionamento. Aceitar e compreender lhe darão a liberdade que você busca.

 UM CAFÉ E A CONTA!
|Desejar viver somente de emoções positivas é a melhor maneira de não aprender a lidar com emoções negativas.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 06/10/2018, Edição Nº 1532.

sábado, 22 de setembro de 2018

Será Que Eu Consigo?

Arte de Weberson Santiago



Quando eu era criança, pensava que nunca seria capaz de ser bom em nenhum esporte. Isso porque não conseguia me manter praticando nenhum por muito tempo. Pensava que alguém acima do peso sempre desiste de qualquer atividade física. Cheguei a pensar que o sedentarismo seria sempre o meu destino. Quem hoje me vê madrugando para nadar ou correr, não imagina que já me faltou disposição.

Quando eu era adolescente, cheguei a pensar que não conseguiria arrumar uma namorada.  Pensei isso quando eu enfrentava a seca no campo amoroso. Me comparava com alguns colegas "pegadores" e achava que estava ficando para trás. Minha timidez não colaborava na hora de abordar as meninas. Na tentativa de me aproximar de forma indireta, acabava ficando amigo delas. Cheguei a pensar que ficaria sozinho para o resto da vida. Quem me vê hoje casado com uma linda mulher não pensa que eu passei por isso.

Quando fiquei adulto e me formei na faculdade, cheguei a pensar que não conseguiria arrumar um emprego ou encher a minha agenda de clientes como psicólogo. Pensei isso quando montei o consultório e mais esperava do que atendia, depois quando queria ser docente e não obtinha resposta ao enviar currículos. Quem me vê hoje, com a agenda do consultório cheia em duas cidades, dando aula em duas universidades e no ensino médio de dois colégios, não imagina que já me faltou trabalho.

Quando eu era criança e estava na terceira série do ensino fundamental, a professora pediu uma redação. E eu fiquei horas rabiscando primeiros parágrafos e amassando as folhas. Até que liguei para a minha avó materna, professora de português, e pedi alguma dica. Ela indicou que eu deixasse a imaginação livre para voar. Resultado: a redação foi escolhida como a melhor da sala, digitada na máquina de escrever pela professora, ilustrada por mim, e dependurada no mural da sala. Quando estava no ensino médio, tinha dificuldade na elaboração de redações e lutava para tirar a média na redação com a professora. Até que a proposta foi para um tema mais psicológico e eu escrevi sobre as escolhas e suas consequências e tirei nota máxima pela primeira e única vez com aquela professora. Mais adiante, depois de ter decidido que escreveria crônicas e que montaria meu blog, enviei os primeiros textos para um amigo médico e escritor que me disse para continuar a pintar, que eu era melhor com os pincéis do que com as palavras. Mas eu não desisti, pois sabia que o gosto dele não era o de todas as pessoas desse mundo. Quem me vê escrevendo nessa coluna de jornal há sete anos, com mais de duzentos textos publicados, não imagina que eu já tive dificuldade para escrever.

Nos deparamos com pensamentos de incapacidade quando aquilo que queremos parece estar distante do nosso alcance. Este pensamento é efeito do contexto no qual nos encontramos, que geralmente envolve a privação de algo. Se, por conta desses pensamentos, desistimos de seguir tentando, não chegamos até a conquista e não descobrimos que somos capazes. Quando alguém duvidar da sua capacidade, duvide dessa pessoa, ainda que a pessoa seja você mesmo.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Quando vemos o sucesso dos outros, não costumamos pensar em como essas pessoas chegaram ali. Exatamente como diz o ditado da pinga e do tombo.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 22/09/2018, Edição Nº 1530.

sábado, 8 de setembro de 2018

O Lugar e o Olhar





Quando a Natália e eu fomos montar a primeira sala de atendimentos de psicologia só nossa, sem compartilhar com mais nenhum outro profissional, escolhemos cada um dos móveis com muito cuidado. Cheguei até a fazer uma planta no papel e recortar os móveis em escala para ver quais combinações ocupariam melhor no espaço.

Era a primeira vez que não usaria poltronas idênticas em minha sala de atendimento, o que foi usado na minha primeira década de clínica como estratégia de promover igualdade numa relação que nunca é igual, já que somos os especialistas que supostamente sabem de tudo e até chegamos a ter, na imaginação dos clientes, a capacidade de ler seus pensamentos e sentimentos, enquanto o cliente é alguém em sofrimento e, por isso, em situação vulnerável.

A psicoterapia é uma relação humana de troca. Para que possamos ajudar alguém, precisamos nos aproximar e criar um vínculo, o que chamamos de relação terapêutica.

Como resultado de um amadurecimento profissional, havia decidido que deixaria a responsabilidade de acolher e propiciar uma boa relação terapêutica “somente” à minha postura profissional e às minhas estratégias terapêuticas ao invés de confiar na simetria das poltronas como ingrediente essencial. Escolhemos uma poltrona confortável para o terapeuta e um sofá bem espaçoso e aconchegante para os clientes.

Quando os móveis foram chegando na nova sala, constatei que a poltrona Charles Eames que escolhemos para o terapeuta era um tanto quanto mais baixa do que o sofá dos clientes. Isso me incomodou. Fiquei incomodado com a diferença de altura porque gosto de olhar de igual para igual para com meus clientes.

Após os primeiros atendimentos, comentei com a Natália que estava cogitando mandar fazer uma estrutura de MDF para colocar a poltrona em cima e elevar a sua altura.

No dia seguinte a Natália me disse que considerava que a poltrona não era menor por acaso. Que ficar em um patamar abaixo da altura do olhar de nossos clientes poderia ter algumas vantagens. Questionei quais eram. Ela me disse que as pessoas que chegam deprimidas tendem a ter um olhar mais cabisbaixo e uma perda do tônus muscular na postura. Estarmos em um nível mais baixo nos permitiria observar melhor as expressões faciais e manter contato visual com estes clientes. Além disso, defendeu ela, aquelas pessoas muito egocêntricas e arrogantes – popularmente chamadas de “nariz em pé” – seriam obrigadas a “baixar o nariz” para receber nossos feedbacks.

Refleti e dei razão a ela. Percebi que eu queria mudar, mas estava inseguro com o risco da mudança, com medo de lidar com o diferente e com dificuldade para aceitar o novo. Embora esses sentimentos nos acompanhem em qualquer situação de mudança, precisamos passar por eles para conseguir mudar.

Se eu quero que meus clientes mudem de comportamento, fico em melhor posição de ajuda-los nesse processo quando também sou capaz de mudar e lidar com as consequências da mudança.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| O autoconhecimento é uma via de mão dupla. Quando eu ajudo o outro a se conhecer, passo a conhecer melhor como posso ajudar.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 08/09/2018, Edição Nº 1528.

sábado, 25 de agosto de 2018

A Dor Fantasma da Rejeição

Arte de Weberson Santiago



Um dos sentimentos mais difíceis de se lidar é o sentimento de rejeição. A atitude mais comum que produz este sentimento é a crítica excessiva ao que o outro tem ou ao que o outro é. Por mais incrível que possa parecer, a ausência de crítica também pode ter o mesmo efeito. A indiferença constante também pode produzir sentimento de rejeição. A negligência nas relações ou a sonegação de afeto também podem produzir o sentimento de rejeição.

Apesar de ser fruto do excesso ou da falta vindos da parte do outro, aquele que é rejeitado costuma atribuir a responsabilidade da rejeição a si próprio. "Talvez eu não seja bom suficiente para ser visto". "Talvez eu não mereça mesmo o amor que não recebo". "Talvez eu não seja tão importante para ser cuidado". Muitas vezes o talvez some da frase e a pessoa tem convicção de que não é boa, não merece ou não é importante.

O sentimento de rejeição é sentido como uma dor fantasma. Como se você tivesse perdido um braço ou uma perna, mas continuasse a sentir dor naquele membro quando constatasse a sua ausência.
Perceber que me sinto rejeitado dói. Uma dor que pode vir à tona diante de qualquer situação em que eu não seja aprovado, compreendido ou reconhecido. Também pode vir à tona quando sou criticado, invalidado ou passo despercebido.

Por isso me sinto perseguido pelo fantasma da dor. Quanto mais tento fugir de me sentir rejeitado, mais me aparecem situações para me lembrar da rejeição que sinto. E aí dói.
Meu terapeuta me disse que ao invés de fugir do sentimento de rejeição, deveria encara-lo. Mas é tão difícil.

Gostaria de encarar a rejeição direta e profundamente. Olhar no fundo dos olhos dela sem me abalar. Para demonstrar que sou indiferente a ela, que sou superior a ela, que ela não me controla. Mas eu não consigo olhar. Ela parece que sempre irá ganhar, que é mais forte do que eu.

No fundo eu nem tento, porque eu tenho medo de não suportar a dor que eu sinta. Será que é possível aprender a conviver com a rejeição? – me pergunto. Será que é possível superar essa dor? – penso.

Acho que eu não percebi, mas enquanto eu escrevia essas palavras eu estava entrando em contato com o sentimento de rejeição. Eu lidei com a minha rejeição quando resolvi escrever sobre ela. E por mais difícil que tenha sido entrar em contato com ela, eu consegui.

Acho que meu terapeuta tem razão: tentar fugir do sentimento de rejeição é o problema, e não a solução. A solução é entrar em contato com o sentimento e fazer algo produtivo com isso.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Entender o que se sente é sentir o que se entende.
Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 25/08/2018, Edição Nº 1526.

sábado, 11 de agosto de 2018

Não Tenha Medo de Tirar o Celular do Seu Filho

Arte de Weberson Santiago



Aquele que nunca usou alguma forma de tecnologia para entreter o seu filho que atire a primeira pedra. Fica difícil manter as crianças longe do celular enquanto nós mesmos vivemos dependurados nos smartphones.

Defendo que o uso de celulares por crianças seja monitorado pelos pais e liberado apenas em alguns períodos, que o uso não seja livre. Ter o celular como concorrente de atividades escolares é criar uma concorrência desleal. É problema na certa.

Mas nossa falha começa bem antes da liberação da tecnologia. Quando sustentamos a tentativa de fazer com que o quarto perfeito que criamos na gestação se mantenha durante o crescimento de nossos filhos.

Queremos que nossos filhos tenham uma vida feliz, diferente da nossa, e lutamos para manter uma satisfação constante. Para que sejam felizes, multiplicamos iniciativas que lhes gerem satisfação e lhes poupamos de frustrações e esforços.

O resultado desta forma de agir? Ao invés de crianças felizes, temos nos deparado com uma fragilidade emocional enorme, uma baixíssima tolerância a frustração e uma constante angústia e infelicidade. Ou seja, produzimos o oposto.

É na infância que se aprende a lidar com o esforço, com a frustração, com os desafios, com os sentimentos negativos. Portanto, não tenha medo de tirar o celular ou tablet do seu filho. Você estará lhe ajudando a experimentar outras atividades, além de demonstrar preocupação e interesse ao colocar limites. As crianças andam muito carentes disso, pois nossa correria cotidiana lhes dá uma sensação de que não lhes damos atenção por que não são importantes.

Mas não é o suficiente retirar o celular. As crianças têm uma energia enorme e, na maioria das vezes, uma grande capacidade cognitiva que precisa ser utilizada em algo produtivo.

A energia deve ser canalizada para alguma atividade física. A tecnologia tem contribuído também para o sedentarismo precoce. Além de que a atividade física tem benefícios para a saúde física, emocional, social e até intelectual.

Para trabalhar a capacidade cognitiva, analise a capacidade do seu filho e crie “desafios” para que ele supere dentro de casa. Atribuir novas responsabilidades em tarefas domésticas, por exemplo, pode ser uma ótima maneira de ensiná-lo a lidar com esforço, a aprender cooperação e construir autonomia. Uma pesquisa no Google sobre isso pode lhe dar sugestões do que é possível fazer em cada idade.

Tem horas que precisamos parar de fazer e olhar para como a gente está fazendo o nosso papel. Só tentar fazer diferente do que fizeram com a gente pode não ser – e na maioria das vezes não é – o suficiente.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Quando o assunto é educação dos filhos, pequenos ajustes podem promover grandes resultados.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 11/08/2018, Edição Nº 1524.