sábado, 20 de agosto de 2016

Dar Um Tempo


Arte de Weberson Santiago



Todo relacionamento que se preze tem em seu histórico um conjunto de pequenos motivos para divergir, para brigar, ou para reclamar. Não me causa espanto que um casal que enfrenta um conflito venha a discutir, a se descontrolar, a agredir verbalmente o parceiro. O que eu realmente não entendo é um casal que decide, em conjunto, dar um tempo. Dar um tempo no sentido de suspender o relacionamento temporariamente, com ou sem afastamento físico.
Dar um tempo é optar pelas reticências onde não deveria ter uma vírgula ou então onde se deveria colocar um ponto final. Dar um tempo é adiar a tomada de decisão: se vai ou racha. É preferir a interrogação ao invés da exclamação.
Dar um tempo é a pior maneira que lidar com um problema na relação. Dar um tempo é fugir de enfrentar o conflito.
Dar um tempo é uma atitude que prova a incapacidade de um casal de entrar em consenso. Dar um tempo é aceitar que nenhum dos parceiros está disposto a abrir mão de seu ponto de vista.
Dar um tempo é a melhor maneira de se criar a privação. Opta-se pelo afastamento e perde-se os beijos, os abraços, os amassos, a atenção e a presença.
A privação vai se tornando maior e cada vez mais incômoda. Até que leva a atitudes desesperadas de ter tudo o que foi perdido de volta. Mas só até que se fique menos privado novamente. Ou até que os mesmos motivos anteriores levem a um novo conflito, semelhante ao anterior.
O problema é que o que gerou o conflito não foi encarado, não foi resolvido. Dar um tempo cria uma condição que desvia o foco do que precisa ser cuidado.
Dar um tempo é testar o óbvio. Se não tivessem afinidades, não teriam se aproximado. Se não tivessem química, não teriam mantido uma relação. O que motiva um conflito não é o que um casal tem de bom, o que leva a um conflito são os problemas que surgem no relacionamento.
Para mim, quem escolhe dar um tempo na relação deveria, na verdade, dar um tempo de si mesmo.
Lutar pela relação, se ainda houver amor, é munir-se de ânimo para enfrentar o caminho mais difícil. Fugir da decisão e dar um tempo é optar pelo caminho mais fácil.
Pôr um ponto final na relação, se já está fracassada, ou enfrentar o conflito é coragem. Dar um tempo é covardia.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Relacionamentos: escolhidos ou impostos impõem desafios a serem superados.
Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, caderno Dois, 20/08/2016, Edição Nº 1421.

sábado, 6 de agosto de 2016

A Primeira Pipa

Foto de Augusto Amato Neto



Anelise chegou da escola preocupada naquela segunda-feira que antecedia o Dia dos Pais. No caminho da escola para casa dividiu com a Natália a sua preocupação. Contou que a professora havia lhe dado apenas um papel para desenhar o pai e que seria entregue no dia da comemoração de dia dos pais da escola.
Ela considera que tem dois pais: o pai biológico e eu, o de consideração por estar com a Natália desde que ela era pequenininha. Mesmo que a Natália tenha enviado o valor referente ao pagamento dos dois pais cerca de dois meses antes do ocorrido, a professora não aceitou a alegação da Anelise:
- Mas eu tenho dois pais! – disse ela.
- É que só pode um! – respondeu a professora.
Anelise estava preocupada pois havia convidado os dois e um de nós ficaria sem cartão. Para acalmá-la emergencialmente enquanto a Natália e eu pensávamos em como iríamos resolver o problema, disse que poderia ficar sem, que eu não me importaria de que só o pai Alex recebesse o desenho. Não adiantou muito, ela continuou insatisfeita.
Há cinco anos estudando na mesma escola, sempre vamos os dois na festa de dia dos pais e nunca tínhamos passado por um problema deste tipo. A Natália escreveu um bilhete muito educado para a professora, mesmo que tenhamos nos sentido agredidos pela desconsideração de que nossa família é assim e funciona assim, buscando conviver em harmonia por conta da pequena.
Embora tenhamos ficado incomodados também pela frieza com que a reinvindicação da Anelise de mais um papel para desenhar o outro pai tenha sido recebida, resolvemos ser práticos e objetivos. Natália escreveu que havia mandado o dinheiro e pediu se ela poderia fazer o favor de entregar outro papel para a Anelise pintar. Na terça, a professora lhe entregou outro cartão depois de confirmar o pagamento na secretaria. A Anelise ficou tão feliz que levou uma bolinha de gude de sua coleção de presente no dia seguinte para a sua professora.
Então, chegou o sábado e a comemoração do Dia dos Pais da escola. Nos encontramos na quadra da escola às dez da manhã. Cada pai deveria trazer um brinquedo para interagir com o filho e cada pai ganhou um kit piquenique para ele e a criança. A maioria trouxe uma bola. Eu, que nunca havia empinado uma pipa na infância, providenciei uma. Assisti um tutorial no youtube sobre como fazer o cabresto e o fiz, mas não me atentei e fiz no lado contrário, verso branco do papel. O Alex corrigiu. O professor de Educação Física fez um alongamento e saímos em direção ao clube, onde poderíamos brincar.
Fomos conversando. Anelise era a única criança da escola acompanhada por dois pais. Embora muitas crianças da escola vivam a mesma coisa que a Anelise, apenas um acompanhava a criança: ou o pai biológico ou o atual marido da mãe. A Anelise quis comer assim que chegou.
Tivemos a sorte do clima ter sido favorável: um belo dia de sol e vento suficiente para empinar a pipa. Como eu nunca havia soltado uma, me coloquei na posição de aprendiz e deixei que o Alex ensinasse a técnica.
A felicidade da Ane foi a melhor parte do passeio. Como ela ficou radiante, na primeira vez que soltou uma pipa, em ver a sua lá no alto e de estar acompanhada por duas pessoas que ela ama. O passeio estava tão agradável que ela quis comer mais, sentamos no quiosque de novo e ficamos jogando conversa fora. Quando olhamos ao redor, eramos só nós três. A comemoração terminava onze e meia e já era quase meio dia.
No fim, tudo deu certo. Percebi que vale a pena deixar o orgulho, a vergonha e o medo de lado para fazer o que é melhor para a Anelise. A primeira pipa, a gente nunca esquece.

UM CAFÉ E A CONTA!
| A escola ainda tem dificuldade de aceitar o diferente, mas com jeito, o diferente cabe.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 06/08/2016, Edição Nº 1419.