segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

De moradora a visitante

Estou sem televisão há dias, e não tenho sentido a menor falta. Culpa da mudança para a casa sem antena. Somos bons em plugar tudo aquilo que está pronto para ser plugado. Se falta um dos extremos é um problema. Esperamos que o buraco dos pinos seja o suficiente para funcionar o que precisamos.

O maior medo de viver sem a televisão não é ausência de barulho. O barulho oferece conforto, mas é facilmente substituído pelo rádio. Hoje, aparelho sonoro que se preze vem com dispositivo USB, o que gera certos percalços. O pendrive pifa, é fácil de perder e não é lido se houver arquivos que não são de música. Isso não é problema para quem gosta de viver com trilha sonora. Afinal, poucos gigas de música tocam por um bom tempo.

Ficar alienado aos acontecimentos do mundo é o maior medo de viver sem a televisão. Como participar de conversas informais sem saber qual a tragédia da vez? Não seria o caso de assistir o jornal e ver como anda a economia? Seria, se as manchetes fossem menos repetitivas.

Quem quer ver as compras de última hora na rua com nome de data? Dar uma espiada no movimento no litoral ou acompanhar a conta dos acidentes nas principais rodovias? Que tal assistir um especial de ano novo gravado logo depois do carnaval? Sem contar as reprises que enchem a programação com os melhores (onde?) momentos do ano.

O dia que a televisão puder deixar de ser uma moradora, a casa se tornará mais espaçosa e confortável, o que não impede que ela faça algumas visitas. A vida passa enquanto estamos diante dela.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Camadas de Tinta


Camadas de tinta recobriam toda a porta e o batente, de modo que a porta não fechava e sobrava alguma fresta. Uma camada de látex e sabe-se lá quantas de tinta a óleo. Dispostas sucessivamente com a displicência grosseira de emperrar a fechadura. Uma camada de tinta protege, um monte delas sufoca. Dois corpos não ocupam o mesmo lugar, e não seriam as camadas de tinta as primeiras capazes de tal façanha.

Como será que uma porta se sente impossibilitada de sê-la? Ela está lá para, no mínimo, fechar. Quando não para trancar. De repente ela não fecha, não tranca e está engessada por um monte de camadas de tinta.

Foi preciso olho clínico para encontrar os pontos de atrito. Os lugares que o excesso de tinta impedia o fechamento. É como uma relação e seus conflitos. No abrir e fechar da porta eles pegam, machucam, deixam marcas na tinta.

Encontradas as marcas, foi preciso uma lixa para remover a tinta acumulada. Uma tarefa nada fácil, a lixa produz atrito e esquenta. Incomoda! Cada camada vai sendo removida até chegar à madeira. Só é possível descobrir se lixou o suficiente com o teste se a porta fecha. Nestes testes, é preciso ter cuidado. Se for insuficiente ainda produz atrito. Mas o pior é se a porta emperra! Um sufoco!

Por vezes porta e batente precisam ser lixados. Então, quando feito, a porta volta a se fechar e trancar. Aqueles pontos lixados agora são como cicatrizes...

A.A.N.

27.12.2009

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Carta de Despedida

Meu bem,

Tenho documentado meus pensamentos desde o princípio do nosso relacionamento, e por isso lhe escrevo, um final precisa deixar claro alguns sentimentos. Sinto-me sufocado pela sua presença ausente dos últimos meses, que agora se tornou ausência presente. Como não recordar aqueles momentos em que tudo parava no mundo para que nosso encontro acontecesse? E veja como nos incomodamos hoje...

Incrível ver o rumo que as coisas tomaram, como seria se tivéssemos aceitado aquela proposta de trabalho na Costa Rica? Será que seríamos um pouco mais felizes, mesmo que tudo acabasse como agora? Estou me sentindo como se não fosse dono de minha história. Quando foi que o que era firme se tornou essa casa de ribanceira em dia de chuva?

O fato é que você me fez relembrar como me sentia bem sozinho. Você sabe que a liberdade no tempo me deixa mais produtivo. E nestes últimos tempos sempre fez questão de se agendar de forma a minar minha criatividade. Lembro-me do que diz o Fernando: “todo relacionamento deveria durar seis meses menos do que a data em que definitivamente terminou”.

Não importa. Desses nove anos devo levar boas lembranças, os verões na praia, os invernos no interior. A Luiza será feliz crescendo comigo. Fica melhor assim.

Com carinho,

Lu.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Traidor

Quão intrigante é a figura do traidor, cujo comportamento promove inúmeros efeitos sobre o traído. Até aqui não se falou em infidelidade, mas o leitor provavelmente levou-se ao relacionamento conjugal. Está aí uma característica injustamente atribuída ao traidor: é tido como infiel. E se a fidelidade é para consigo mesmo?

Esta não seria a hora de discutir ética e moral (onde a resposta a pergunta acima certamente iria desaguar), mas de discutir comportamento. O traído, cuja posição só vem a ser ocupada caso tenha conhecimento do fato, é ambíguo: fica em dúvida se carrega o fardo da insuficiência ou da ingenuidade, mas tem o poder de levantar a bandeira contra a leviandade do traidor.

Partindo desta confusão, o traído cai na besteira de investigar qual o pivô. E se depara com a questão “porque ele/a?”. Nada é mais deplorável do que a comparação entre si mesmo e o pivô. A resposta para o motivo da traição não se encontra aí, ou pelo menos, não só aí. Daí a razão para o traído de hoje ser o traidor de amanhã. Continuará na busca da resposta, agora do outro lado.

Passemos para a posição do traidor. Este, por mais que se esforce em disfarçar, sempre sai por cima. Sua posição de agente tem o álibi do “impulso”, além de levar os louros em meio à competitividade de seu grupo. Chato mesmo é o momento, sempre existente, do inquérito de justificativa. O traído faz questão. Não importa a justificativa.

O número de especulações despertadas no traído é o maior efeito gerado pelo traidor: Será que...? Qual o motivo? E se eu tivesse...? E se não...? Mas como...? Parecia que... Talvez seja...

Então, o interesse soa como culpa, a saudade vira raiva, palavras como armas, a lembrança como tolice e a história não tem mais sentido. Sonhos que continuarão nesta mesma categoria. E perguntas seguem não respondidas, a serem respondidas. Em nome do que age o traidor?

A.A.N.

20.12.2009

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

PRESENTE COMPRADO

- Sabe o que é Doutor, estou com um problema! Estou estranhando o que vem acontecendo...

- Conte-me o que está acontecendo.

- Eu gosto muito de presentear as pessoas que fazem parte da minha vida. Sempre que me deparava com uma coisa que era a cara da pessoa, levava e a presenteava. E meus presentes sempre agradavam. Nos aniversários ou amigos secretos, havia uma curiosidade maior, uma expectativa na hora de abrir o que eu havia dado. Algumas amigas comentavam: “nossa, como você é criativa!”. Por que às vezes o presente que eu dava era simples, mas fazia muito sentido para aquela pessoa ou tinha uma utilidade interessante para a vida dela.

- Entendo – diz enquanto assente com a cabeça.

- Mas de um tempo pra cá não tenho conseguido presentear. Quando as datas especiais se aproximavam, já matutava o que iria dar, planejava onde comprar... Mas agora eu não consigo mais fazer isso. A data vai chegando, eu até recordo da necessidade de comprar o presente, porém permaneço sem saber o que dar. Outro dia me obriguei a entrar na loja para escolher um presente de casamento, fiquei três horas naquela loja imensa e saí de mãos abanando...

- O que você sentiu na loja?

- Uma insegurança muito grande! Qualquer escolha do presente parecia ser inadequada...

- Por qual razão?

- Talvez os noivos já tivessem ganhado um daqueles... Ou o achariam inútil e não o usariam... Quem sabe até dessem pra outra pessoa...

- Qual seu maior medo em relação ao que vem acontecendo? – explora.

- Como não consegui dar nada, que pensem que sou sovina, mão de vaca, mal educada, indelicada. E se acharem que queria aproveitar a festa sem dar presente?

- Acredita que seus amigos a veriam desta forma?

- Você sabe como são as pessoas, Doutor, sempre comentam, maldizem, julgam...

- Dar o presente então tinha a função de evitar julgamentos e comentários, além de agradar e fazer o presenteado se sentir bem?

A.A.N.

Dezembro/2009

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Pegadoras

As mulheres chegam a 2010 ocupando um espaço diferente na sociedade daquele ocupado nos últimos séculos, não há dúvida. É dito à exaustão que sua participação no mercado de trabalho só vem aumentando, e mais, muitos ousam dizer que elas cumprem seus deveres de forma mais eficiente do que os businessmen. A comparação facilmente pode ser deixada de lado, mas a constatação do que vem acontecendo não.

“Durante o século XXI, a mulher emancipou-se” – diz-se inclusive na psicologia. Emancipar-se, segundo o dicionário Houaiss, é tornar-se independente, libertar-se, eximir-se de pátrio poder. Tenho cá minhas dúvidas desta tal emancipação. Calejadas com a espera do príncipe no cavalo branco, quase sempre frustrada, elas resolveram agir à galope. As mulheres estão “pegadoras” e andam se orgulhando disso. Nada possível se ela estivesse sozinha, e é aí que entram as amigas, para reforçar socialmente suas “novas” atitudes e encobrir algum comportamento sempre que for necessário. Essa mudança de comportamento seria a tal liberdade que não existia no tempo passado? Uma independência do machismo ou um feminismo machista?

Afinal, agora é a vez delas de não ligar ou sequer atender o telefone no dia seguinte de uma noite lasciva e pretensa. Descobriram que também tem o que bater na mesa para dizer quem manda. E sem truculência alguma. Com a sutileza de uma folha que cai da árvore. Aquela típica cruzada de pernas é coisa do passado, elas vão muito além.

Em nome de poder estudar, votar, igualizar os seus direitos, trabalhar, pensar, decidir o seu destino, gostar, gozar da sua sexualidade, julgar e tomar decisões sobre a sua vida e o seu ambiente elas parecem ter perdido a medida. Testam seu poder sobre os homens em situações das mais diversas. Na tentativa de estabelecer uma maior independência e autonomia, houve uma perda da feminilidade, ou melhor, o estabelecimento de uma feminilidade padrão, expressa gritantemente na aparência física de quem compra a fachada de bem suscedida.

O discurso feminista anti-pátrio-poder levantou o ataque ao machismo e acabou por elevar o feminismo ao mesmo status. A admiração a mulher multiprofissional que é capaz de lidar com diferentes demandas com sucesso é a conseqüência de tal discurso.

Analisemos uma máxima deste movimento: “A mulher assumiu poder, em casa, no trabalho, na política, na sociedade com o compromisso, a carga e a exigência que isso implica. Estas mudanças em um dos dois pilares da espécie exigiram reajustamentos em seu companheiro, o homem, ele, teve de se adaptar à concorrência em espaços que ele ocupava por ‘direito’”.

Volto a questionar: será que as mulheres sabem mesmo qual a carga e as exigências do lugar que ocupam hoje na sociedade? Penso que não. É a pretensão de quem profere tal discurso, que faz minha tataravó parecer uma fracassada e sem papel no mundo, o que me incomoda, por implicitamente considerar o pioneirismo feminino como se ocorresse apenas na atualidade. As matriarcas sempre souberam fazer valer sua opinião de forma indireta via persuasão, e isto é constatado inclusive em diferentes culturas.

A segunda afirmação toca na repercussão das mudanças para o homem. Não vejo no discurso deles indícios de medo de ultrapassagem ou necessidade de brigar por espaço, já que aprenderam os benefícios de exercitar a sensibilidade, mesmo que com limites, e a participar de forma mais ativa da vida familiar. A crise masculina se dá mais com a rotina do que com relação ao papel ocupado pela mulher na sociedade e na família.

Hoje em dia, a sensação de que no estádio da vida as cadeiras não são numeradas ou cativas independe do gênero. A dificuldade com as mudanças rápidas e com as incertezas do panorama mundial repercutiu na diminuição da função integradora feminina. O poder da soma parece ter sido esquecido pelas mulheres. É aguardar as cenas do próximo capítulo, cuja tendência é sair dos extremos e encontrar um equilíbrio.

A.A.N.

Dezembro/2009

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A arte é uma peça publicitária da marca Diesel, cujo slogan é live fast ("viva depressa") .

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Figura de Linguagem

Jogar conversa fora,

E levar ao pé da letra.

Pensar alto, e dizer sem meias palavras.

Sussurrar ao pé do ouvido para dizer por alto,

O jogo de palavras ao mergulhar num livro,

A frase sem pé nem cabeça. Falando grego.

Da cabeça da matéria à nota de rodapé,

Entre aspas, com sentido figurado.

Subentendido nas entrelinhas...

Em termos de escrita, a figura de linguagem segue metáfora afora.