sábado, 20 de julho de 2013

Faço Bico Como Repositor

Arte de Weberson Santiago



Vivo fazendo um malabarismo para que os alimentos nunca acabem na hora errada. Não gosto de ser pego de surpresa descobrindo, na hora que eu iria comer, que alguma coisa acabou.

Se tenho pouco tempo disponível para ir ao supermercado, as poucas vezes que eu vou tem de garantir que nada vai faltar.

Menos do que meia caixa de litros de leite, e isso significa 6 litros, é a mesma coisa do que não ter leite. Um bocado para mim já é nada. Dois potes de iogurte é não ter iogurte. Três fatias de presunto é não ter frios na geladeira. Um naco de queijo fresco é o mesmo que não ter queijo.

Fico antecipando o fim, por medo de realmente faltar. Depois que substituí o que está acabando, aí sim me permito terminar com o resto.

Tem gente que acha que geladeira é um livro. Fica folheando as prateleiras para ver se encontra alguma vírgula para dar um tempo no que tem pra fazer. Eu não. Ao invés de procurar um lanche, percorro as páginas da geladeira procurando um espaço vazio entre os alimentos para preencher, uma reticência em três últimos grãos de uva passa que me suscite comprar mais uvas passas.

Busco inspiração nas lacunas da geladeira e procuro logo um bloquinho para fazer uma lista de compras poética e partir a preencher os vazios.

- 1 Kg de tomates desesperadamente vermelhos para virar molho.

- Um pedaço de queijo chique ou metido a besta para beliscar enquanto o jantar de sábado termina de se arrumar.

Alimentos mutilados em nome de uma vida saudável:

- 1 pacote de pão de forma integral light, 1 bandeja de iogurtes desnatados, 2 litros de leite de baixa lactose, 1 pacote de café descafeinado, 1 pacote de sal light que não salga.

Alimento saudável tem que sofrer da falta de algum ingrediente.

Se me incomodo com o que pode acabar, também fico impaciente com o excesso. Não gosto de ver restos de comida espalhados em potinhos plásticos pelos cantos do refrigerador. Por isso, vivo em busca da porção ideal para não sobrar, ou se a comida for muito gostosa, para servir duas refeições sem resto. O desperdício dói.

Conheço geladeiras que mais parecem uma reserva de mantimentos, pronta para enfrentar qualquer tipo de catástrofe. Se um meteoro cair na terra agora e a distribuição de alimentos cessar totalmente, este tipo de família sobrevive três meses com a comida acumulada no refrigerador.

Minha obsessão é evitar o fim e o excesso. A desculpa é manter o essencial.

Ter na geladeira o suficiente de cada coisa sem deixar faltar nada. Eu sei que ter escolhido essa missão não me faz o melhor provedor, nem é isso que me faz ser o marido mais fiel. Também não me torna o mais gentil dos cavalheiros ao respeitar o gosto das minhas meninas nas compras.

E por mais que eu tente não ser insosso trazendo uma coisa gostosa e diferente de vez em quando, pode ser que a mania da reposição seja cansativa, já que desde que eu me casei não permiti a solidão da margarina fazendo companhia à indiferença da água gelada.

De uma coisa eu não tenho dúvida. Se um dia a minha geladeira ficar vazia é porque eu desaprendi a ser família.

 UM CAFÉ E A CONTA!
|Mostre-me o conteúdo de sua geladeira e eu te direi quem você é.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 20/07/2013, Edição Nº 1261. 

sábado, 6 de julho de 2013

Amor de Circo

Arte de Augusto Amato Neto



João, o avô do Ricardo vivia repetindo a história de como começou seu casamento.

João conheceu Doralice quando tinha dez anos, nos idos dos anos 20. Ela tinha onze. Era a terceira vez que visitava o circo, mas no registro de sua memória aquela sempre foi a primeira. Na tradicional visita anual do Circo Ciconelli à cidadezinha do interior, João estava sentado na arquibancada de madeira com sua família, longe do picadeiro.

Foi quando Doralice e sua irmã Dorotéia foram anunciadas como malabaristas mirins que João ficou enfeitiçado pela menina de nariz e queixo finos e cabelos claros acinzentados, presos em um rabo de cavalo. Nem prestou atenção na habilidade de Doralice com as argolas, não conseguiu desviar do seu rosto nem quando o reflexo dos brilhantes do collant ofuscou sua vista.

João não esqueceu aquela cena, sonhava com a volta do circo, imaginava o reencontro. Só queria olhar para ela mais de perto. Passado um ano, quando soube que o Circo Ciconelli estava na cidade vizinha, João não conseguiu mais dormir, sonhava acordado.

No dia do espetáculo, colocou sua melhor roupa e saiu com o coração palpitando. O palhaço parecia sem graça, nem se impressionou com o domador brincando na boca do leão. Na hora que Doralice foi anunciada no tecido acrobático João chegou a se levantar. “Senta, João!” – disse a mãe – “Vai atrapalhar as pessoas da fileira de trás”. Os rendimentos da família haviam sido bons naquele ano, estavam todos nas cadeiras, na turma do gargarejo.

João ficou encantado ao vê-la entrar. Doralice, concentrada em seu número, dependurou no tecido e correu em volta do picadeiro até ser levantada. Em uma das decidas tecido abaixo, Doralice parou de ponta cabeça e levantou o tronco e o rosto contra a gravidade. Seu olhar se cruzou com o de João pela primeira vez, por dois segundos, e foi interrompido pelo próximo movimento.

No intervalo que divide o espetáculo na metade ela botou reparo no menino. Doralice ajudava os primos a vender pipoca. Zeca estourava o milho, Juca recebia e dava o troco, Dora enxia e entregava o saquinho. João e seu irmão, que haviam ganhado umas moedas da tia-avó, foram buscar pipoca para toda a família.

Pediram oito pacotes e o irmão de João deu o dinheiro. Dora entregou quatro pacotes para o irmão. João parou na frente dela e ela entregou o primeiro. João colocou junto à barriga, próximo ao cotovelo. Ao receber o segundo saquinho de Dora, tentou segurá-lo com o braço ao lado do primeiro, e acabou deixando-o cair no chão. Ela sorriu discretamente. João ficou sem pipoca, o irmão se recusou a dar-lhe um punhado. Nem se importou, tanta era a sua emoção de ter ficado frente a frente com Dora que a pipoca foi o de menos.

No ano seguinte, João ficou amigo dos primos de Doralice e conseguiu conversar com a menina. Ao mesmo tempo em que reencontrou o que sentia quando estava perto dela, descobriu o quanto a partida era doída. Um ano era tempo demais para rever o seu amor. Nem cartas podiam trocar, pois Dora não tinha endereço fixo. A única opção era esperar as quatro estações passarem.

Dora guardava numa caixinha o papel da bala que ganhou de João no segundo encontro. Para não perder a lembrança, revisitava em pensamento o dia em que ele derrubou a pipoca. Doralice se apaixonou por um detalhe do colarinho da camisa de João. A mãe dele havia bordado uma dupla de raquetes de tênis e uma bolinha na cor azul marinho. Enxergou naquilo uma promessa de virilidade.

Aos quatorze anos, João fugiu com o circo. Queria inverter. Achou melhor visitar a família uma vez por ano a ficar contando 364 dias para rever Doralice. Constituiu uma família circense com Dora.

Nos anos 60, viver do circo começou a ficar complicado. A televisão começou a se popularizar, as pessoas se tornaram mais caseiras e os circos mais vazios. O Circo Ciconelli entrou em decadência, parou de viajar e seus artistas ficaram desempregados em 1964.

João, que havia feito muitos amigos nas cidades onde passou, logo arrumou emprego na indústria e manteve a arte na vida de sua família se apresentando em um teatro da cidade.

Seu neto Ricardo nasceu quando a família já estava fixada na cidade. Na infância, ao ouvir a história de seus avós, pensava que teria sido mais feliz se vivesse viajando com o circo. Na adolescência, passou a achar a repetição da história de amor dos avós nas festas da família uma chatice.

Ricardo não acredita neste tipo de amor. Quando João e Dora resgatam sua história, Ricardo pega seu celular e entra na rede social. Cada perfil de mulher para ele é como um DVD na prateleira da locadora. Merece ocupar apenas algumas horas de seu final de semana. Cada aniversário está com uma namorada diferente. Um namoro começa no final do ano e termina antes do Carnaval.

No fundo, João e Dora repetem incansavelmente sua história porque não aceitam que os amores de uma vida inteira tenham morrido junto com o circo.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Antes de ser circo, é uma família. Antes de ser um espetáculo, é a vida.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, Caderno Dois, p.4, 06/07/2013, Edição Nº 1259.