sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Caminhão da Mudança

Arte de Weberson Santiago




Mudança de moradia, seja lá por qual motivo, é um longo caminho. De tão laborioso, o percurso da mudança é um caminhão. Pode ser de cidade, de um bairro para o outro, de um andar do prédio para três andares abaixo. Nem se aliando à força da gravidade a mudança é capaz de ficar leve.

A mais modesta pode ser chamada de mudança universitária. Uma cama, um guarda-roupa ou cômoda, uma escrivaninha. Se tem geladeira, não tem fogão. Se tem microondas, não tem máquina de lavar. A de maior proporção é a mudança de uma família. Caminhão baú parece pequeno.

Quem já teve de encaixotar a vida, rapidamente me compreende. Desmontar uma casa e encaixar. Descobrir todos os objetos que foram se acumulando e que nunca terão uma utilidade. A loucura é encaixotar tudo para desencaixotar em seguida.

Meu desapego anda precisando de uma academia. O meu apego está precisando fazer um regime. Não consegui aproveitar a mudança para jogar fora o óculos escuro da época da faculdade. Riscado e com uma das perna presa com fio de naylon. Os riscos ficam bem no meio da lente, passo a enxergar como idoso quando ponho estes óculos, porém me sinto dez anos mais jovem, exatamente na época que o usava. Achei um canto numa caixa para não jogar fora. Agora procuro um fundo de gaveta na nova casa pra guardar as lentes do passado.

Queria ser capaz de fazer o que um amigo de um amigo meu fez. Morando em outro país há vários anos, quando resolveu voltar ao Brasil vendeu todos os seus bens. Manteve apenas algumas trocas de roupa. Trouxe de volta apenas a experiência.

Há alguns dias, Letícia, minha secretária, perguntou se eu conhecia algum exercício para a memória. Recomendei palavra-cruzada ou sudoku, mas pedi que ela observasse o sono, o estresse e o cansaço para avaliar a dificuldade em se lembrar de algumas coisas.

Se a Letícia me perguntasse isso hoje, responderia que o melhor exercício para a memória é se mudar de casa. Tudo bem que se você já não está dando conta do bombardeio de informações, a mudança só vai bagunçar mais a sua vida. Mas é justamente o esforço para se organizar no novo lugar o fabuloso exercício para a memória.

Então você vai descobrir o quanto seu cérebro se acomoda nos esquemas de sempre, como se ligasse o piloto automático para cumprir a rotina. Depois de um longo tempo no mesmo lugar, por economia de energia, pouco precisamos pensar para executar o ritual matinal, por exemplo. É possível que você se sinta capaz de fazer a sequência de tarefas de olhos vendados.

Após a mudança é preciso se localizar no espaço novo. Nos primeiros dias, fiquei como uma  múmia perambulando pela casa em busca das coisas de sempre. Uma árdua empreitada, que depois de muito trabalho de organização permite atingir a mesma acomodação de sempre.

E tudo fica na mesma? Claro que não, a mudança sempre estimula a criatividade. Há três anos, quando terminei o mestrado, comprei um painel para pintar um quadro, achando que o término da pós-graduação garantiria tempo de sobra. A ilusão fez com que ele ficasse guardado esses anos todos na antiga casa. Agora ele já não é mais branco, ganhou cores com a nova casa.

Cada casa que a gente mora tem um tempo. Cada lugar que a gente vive tem um sentido na vida. Não que a vida em uma única casa não tenha sentido. É que, de repente, uma casa não tem mais sentido. A gente se cansa da rua, de passar sempre no mesmo lugar. É quando a necessidade de mudar ganha espaço.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| A mudança é o caminho ou o caminho é a mudança?



Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 24/11/2012, Edição Nº 1227. 

sábado, 10 de novembro de 2012

Educar é Desaprender

Arte de Weberson Santiago


Educar uma criança sempre é um desafio. Precisamos dedicar tempo para ensinar, corrigir, mostrar como se faz, explicar o que não se deve fazer na esperança que a lição seja entendida e que o comportamento futuro seja adequado.

A Anelise é uma criança que conquista facilmente a simpatia de quem a conhece. Sua espontaneidade é envolvente, suas percepções contadas são interessantes para uma menina de quatro anos. Apesar de não passar indiferente em qualquer ambiente, andei preocupado com o fato dela fugir de cumprimentar as pessoas quando nós chegamos em algum lugar.

Preocupado com a questão, resolvi recorrer a minha tia Egle. Me lembrava que ela usava um procedimento interessante quando a minha prima Ana Helena era criança. Ela se destacava por cumprimentar todas as pessoas quando chegava em um aniversário ou reunião de família. Sabia que a minha tia teria o passo a passo para que eu pudesse ensinar este novo comportamento à pequena.

Como eu já desconfiava, ela me disse que o maior erro é forçar a aproximação, empurrar a criança para beijar o parente. Forçar a aproximação pode incitar aquele comportamento de esconder atrás do pai ou da mãe, de grudar na perna feito um macaquinho. Ela explicou que adultos estranhos, mesmo que em meio a conhecidos, parecem ameaçadores para a criança. Pode ser pior coagir do que não cumprimentar. Quando se obriga, corre-se o risco dela explicar porque não quer dar um beijo na tia Cacilda e gerar aquele tipo de constrangimento:

Vai, Anelise, dá um beijo na tia Cacilda!

— Eu não quero, ela tem bigode e parece uma bruxa...

O procedimento bem sucedido da tia Egle começava dentro de casa. Ela explicava pra Ana Helena aonde eles iriam e quem estaria lá. Especificava os convidados da festa, citava seus nomes e dizia que teria mais algumas pessoas que ela não conhecia, mas que eram amigos dos conhecidos. No percurso de carro, relembrava a Ana Helena de cumprimentar cada um dos presentes porque eles ficariam felizes com a sua educação.

A Natália e eu registramos todos os detalhes e colocamos o plano em prática. E não é que funcionou? A Anelise deixou de se retrair e passou a saudar as pessoas quando chegamos nalgum lugar. Animado, voltei para contar o resultado para minha tia.

Ela ficou satisfeita com os primeiros passos, mas, como boa professora, resolveu contar o que aconteceu em uma determinada ocasião. Sua família chegava a uma festa acompanhada dos meus avós. Na porta da casa estava sentado um morador de rua conhecido na cidade. Minha prima Ana Helena não hesitou em pôr em prática o costume de sempre. Deu a mão ao pedinte para lhe cumprimentar. Minha avó já queria interceder e impedir o contato quando minha tia pediu que ela deixasse. E a Ana Helena tascou um beijo no rosto do mendigo.

Ela disse que deixou para me contar esta parte de sua experiência depois que eu acreditasse e testasse a técnica que ela me ensinou, pois só assim ela poderia funcionar. A segunda parte da lição consistia em entender que eu não deveria desdizer uma regra que eu mesmo criara, mesmo numa situação difícil como aquela que aconteceu com a minha prima. “Foi só levar ela pra lavar a mão depois”, contou.

Para educar é preciso ser coerente naquilo que anunciamos e naquilo que fazemos. A criança não aceita exceções que partam do adulto que a ensinou como deve fazer. Ao descumprir a regra, jogamos fora todo o esforço de proporcionar a aprendizagem.

É quando a gente acha que está ensinando que descobrimos quem tomou a lição. Educar é desaprender o que a gente acha que sabe para ensinar o que a gente ainda não aprendeu.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Desaprender é tão importante quanto estar disposto aprender. Há quem passe uma vida achando que sabe.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, Caderno Dois, p. 3, 10/11/2012, Edição Nº 1225.