sábado, 23 de agosto de 2014

O Perfume do Marcelo

Arte de Weberson Santiago


Meu amigo Marcelo era o cara tímido da turma. Vivia sendo chamado de nerd pelos meninos mais velhos da escola. No intervalo sentava sempre no mesmo lugar do banco que ficava no corredor entre as portas das salas de aula. Por lá passavam todos os alunos rumo ao pátio, mas Marcelo conversava sempre com os mesmos colegas durante o recreio.
Quando chegamos à idade mínima permitida para frequentar as boates do clube, passava pela casa do Marcelo e descíamos a pé até lá. Foi num dia desses que descobri uma mania do meu amigo. Já tínhamos caminhado duas quadras da casa dele quando ele me fez voltar, dizendo que havia esquecido o dinheiro. Pediu que eu o esperasse na porta, mas tive vontade de ir ao banheiro e entrei logo depois. Quando passei na porta do seu quarto, Marcelo estava passando perfume.
Ele não havia esquecido o dinheiro, havia esquecido de passar o perfume. Sabia que meu amigo nunca havia beijado uma garota – ou como diziam os garotos naquela época, nunca tinha “ficado ou pegado uma mulher”. O perfume era o ritual que mostrava que a cada sábado Marcelo renovava a esperança que de aquele seria o dia especial. O dia em que ele teria a sorte de ser escolhido por uma garota, com alguma característica que ele achasse interessante. Sua mão transpirava e o coração disparava só de imaginar. Tinha medo de não saber o que fazer, da garota perceber a sua inexperiência. Usava aquele perfume, presente de Natal de seu padrinho, apenas para sair à noite. Economizava para que não acabasse logo, mas usava quando tinha alguma ocasião especial.
Quando o primeiro beijo aconteceu – e ele me confessou que tinha sido o primeiro – aquele frasco de perfume já havia acabado. Marcelo era estagiário em uma loja de informática no período depois da escola e tinha juntado dinheiro para escolher o seu cheiro. E foi o cheiro escolhido que atraiu a morena de lábios vermelhos, quatro anos mais velha, que lhe ensinou não só a beijar aos dezoito anos.
Os anos se passaram e ele ganhou dinheiro dando cursos de informática para iniciantes, depois montou sua própria loja de produtos de tecnologia e de manutenção de computadores. Mais adiante, viu na ineficiência da banda larga a oportunidade de oferecer serviço de internet em de alta velocidade. Cobriu o bairro que cresceu de fibra ótica, depois a cidade toda.
Hoje ele leva uma vida típica de empresário, mas mantem a mesma timidez e simplicidade. Ironicamente, Marcelo está muito melhor do que aqueles que se gabavam de ser “pegadores”, o chamavam de nerd e aplicavam um pescotapa na nuca quando passavam por ele no corredor da escola. Casou-se com Débora, a segunda mulher de sua vida, e tiveram dois meninos.
Mesmo com tanta mudança, Marcelo mantem o ritual do perfume. A função e a frequência são diferentes daquelas. Todo dia de manhã escolhe entre meia dúzia de perfumes importados o que usará naquele dia. Com as responsabilidades de sua vida profissional e familiar, Marcelo me confessou na última vez que estivemos em sua casa que tem a sensação de que mata alguns leões por dia. Agora e função do perfume é manter a disposição diante dos desafios diários. Marcelo se apronta hoje para o trabalho como se preparava para sair no sábado. O perfume ainda é a esperança de que tudo vai dar certo naquele dia. O perfume é sua proteção, o perfume é sua única superstição. Ele espera que a fragrância espante os problemas, os empecilhos e os obstáculos.
Na adolescência Marcelo passava seu único perfume para tentar atrair a sorte. Na vida adulta, Marcelo passa um dos seus perfumes como repelente de azar.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Sorte daquele que tem um ritual para manter viva a esperança. O ritual é a disciplina da espera de quem alcança.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 23/08/2014, Edição Nº 1319.

sábado, 9 de agosto de 2014

Meu Pai e O Seu Sax

Arte de Augusto Amato Neto


Tenho a sorte de ter um pai músico. Minha infância foi embalada por uma coleção de discos de vinil com clássicos do jazz e do blues e pelo som dos seus saxofones, o tenor e o soprano.
Em casa, rolavam alguns dos ensaios. Os meus ensaios preferidos eram os do meu pai com o Kiko Zamarian de noite no quarto de som, cômodo da casa com uma estante de ferro que ocupa toda a parede e que abriga seus discos numerados e catalogados, cada um em um saco plástico transparente. Prateleiras que abrigam seus aparelhos de som e caixas acústicas, onde ele guarda, na parte de baixo com portas, seus saxofones e sua intocável caixa de ferramentas – aquela que eu sempre soube onde ele escondia as chaves e que ele sempre soube que eu usava e tentava parecer que não tinha usado.
Ali tinha um sofá cheio de almofadas, em que meu pai e o Kiko sentavam na ponta para ensaiar. Eu chegava de mansinho, passava por trás do meu pai e deitava no meio das almofadas. Foram as melhores músicas de dormir que uma infância poderia ter. Ao vivo, dentro de casa, meus sonhos como plateia. Não gostava quando o som parava, o silêncio voltava e quando eu ouvia o som dos fechos de metal dos cases dos instrumentos.
À noite ou aos finais de semana, meu pai recebia em casa um casal apaixonado com casamento marcado. Para complementar a renda familiar ele tocava sax em casamentos. O primeiro desafio era conciliar o gosto do casal com o seu bom gosto musical. Eliminar músicas bregas ou clichês do Kenny G, sem causar descontentamento nos contratantes. Se fosse necessário, ele tirava a música no sax para agradar a noiva no seu dia especial.
E quando chegava o grande dia, lá ia eu acompanhar meu pai, às vezes o Kiko também tocava violão, às vezes ele segurava sozinho a trilha sonora da cerimônia inteira. Me lembro do frio na barriga que sentia ao esperar a hora certa da música começar, eu não sabia qual era, mas ele acertava a hora exata e mandava seus improvisos. Aliás, a sua grande qualidade como saxofonista é improvisar e o som parecer ensaiado de tanto que encaixa no contexto.
Eu assistia a reação da família e dos convidados lá daquele mezanino que tem nas igrejas. Via a cerimônia de cima, mas achava que a benção do casamento era dada também pelo meu pai e pelo som forte e emocionado de seu saxofone.
A única coisa que eu não gostava eram das noitadas que eu ainda não conseguia acompanhar. Quando eles faziam shows em bares da região e eu ia junto, não conseguia aproveitar porque era muito pequeno. Logo já me dava sono e eu ia pro carro dormir. Queria que essa fase tivesse ido até a minha adolescência para que eu pudesse ter aproveitado mais.

UM CAFÉ E A CONTA!
| Pela minha formação musical, sertanejo universitário não consegue tirar o diploma.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 09/08/2014, Edição Nº 1317.