sábado, 30 de março de 2013

Uma Pilha de Jornais de Herança

Arte de Augusto Amato Neto



Na minha família, existe uma forma muito particular de pais e filhos trocarem afeto. É a entrega de artigos, o receber recortes de jornal, o ganhar alguma matéria selecionada.

Meu avô Tino, 93 anos, diz que sua bagagem intelectual saiu dos jornais. Apesar de ter  concluído o curso de contabilidade antes de se casar e ter feito faculdade de economia quando já tinha dois filhos, foi debruçado nas páginas do jornal que ele descobriu oportunidades de negócios, de trocar seus carros e esteve por dentro dos assuntos mais importantes de cada época.

Desde que começou a trabalhar, antes de fazer carreira como industrial, foi ajudante de barbeiro. Foi nessa época, aproveitando o tempo livre no salão, que aprendeu a abrir os braços para as notícias e se tornou um hábil espiador de manchetes e letras miúdas. Quando não havia tempo, levava o jornal da véspera para casa e o lia de cabo a rabo.

Quando arrumou seu primeiro emprego assalariado, tornou-se assinante de um importante jornal, sendo hoje um de seus mais antigos leitores.

Nessas décadas, cada notícia lida que remetia a algum de seus filhos ou netos, ele fazia o recorte. Muito antes de eu ter nascido, seu Tino percorre os quatro cantos da notícia com a tesoura para fazer o assunto chegar a quem interessa. Um cuidado para que nós não fiquemos por fora da última notícia.

Quando eu ingressei no curso de psicologia, passou a separar artigos de terapeutas, resenhas de novas obras publicadas, notas elucidando a tradução de um clássico da área.

Mais adiante, depois de treinar minhas habilidades de cozinhar, quando tive a coragem de apresentar algum prato à família, ele passou a guardar o caderno culinário do jornal para que eu pudesse aprimorar os modos de preparo e descobrir novos ingredientes.

E ele fez o mesmo com com os filhos engenheiros, com os netos que estudaram medicina, com o neto publicitário. E teria feito se na família tivesse um advogado, um físico ou um dentista.

O meu pai mantêm a mesma tradição, só que de uma maneira um pouco diferente. Ele é assinante de revistas especializadas na área de gestão de negócios e recursos humanos. Durante as suas leituras assíduas, faz uma clipagem dos artigos que são mais interessantes. Ele grifa os trechos mais importantes da matéria e faz um índice de assuntos em um papel preso na capa. Oportuno para mim, que tenho uma vida corrida e agitada.

Com todo este cuidado, fica difícil recusar a informação. Recortes do meu avô e as revistas encaminhadas pelo meu pai são minhas leituras obrigatórias, o resto é bibliografia complementar.

Trata-se de um compartilhar de informação como se fosse uma troca de bilhetes, um recado de preocupação.

Esse hábito que nasceu com meu avô e já atravessou duas gerações é a versão paterna do lembrete da mãe para levar a blusa de frio ou o guarda-chuva.

Implícito nas entrelinhas das reportagens da vida estão duas máximas em matéria de afeto masculino. Os homens se protegem da chuva com o conhecimento. Os homens se aquecem sabendo da última notícia da sua área de atuação. Meu guarda-chuva e minha colcha são feitos de retalhos de jornal. 

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Um filho meu, ao chegar em casa, não me verá sentado na poltrona com as páginas abertas. Que pena. Na sua memória eu estarei fazendo o mesmo dando piparotes na tela de um tablet.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 30/03/2013, Edição Nº 1245. 

sábado, 16 de março de 2013

Se Meu Espelho Falasse

Arte de Weberson Santiago



Se meu espelho falasse, não aceitaria apenas assistir ao entra e sai todos os dias.

Se meu espelho falasse, conversaria comigo durante todo o tempo que passo no banheiro. Iria querer saber exatamente o que eu faço durante o período que estou fora de casa. Tentaria entender porque eu saio renovado da ducha e volto cansado, precisando de um bom banho.

Se o espelho falasse, mostraria o quanto eu estou diferente a cada dia. Provaria que, seguindo o mesmo ritual todas as manhãs, o resultado nunca é o mesmo. E insistiria até me mostrar que o resultado é diferente de como eu imagino que estou.

Se meu espelho falasse perguntaria por que, logo depois de acordar, fico alguns minutos olhando para meu reflexo. Questionaria se eu demoro a me reconhecer ou se estou dormindo de olhos abertos.

Se meu espelho falasse, pediria para que eu tentasse mais uma vez. Me aconselharia a diminuir o tempo que eu passo tentando entender tudo o que acontece. Tudo, tanto, o tempo todo. Apenas tente mais um vez, diria ele.

Se meu espelho falasse, alguns dias meu reflexo pediria para que eu saísse da sua frente. Sai da frente que eu quero ficar aqui, já que não posso passar. Cansei de você. Cansei do quanto você se habituou a me ver sem me olhar. Será que percebe como o tempo passou? Ele questionaria.

Se meu espelho falasse, jogaria na minha cara que não é possível dormir com medo e acordar de cara com a coragem. Que quando eu escovo preocupado os dentes pra dormir, é impossível escovar despreocupado os dentes pela manhã. Escancararia que nenhum problema se resolve por si só, depende de esforço.

Se meu espelho falasse, daria gargalhadas comigo. Choraria no meu ombro amigo. E tentaria me convencer a pensar apenas no meu umbigo.

Se o espelho falasse, pediria que eu diminuísse as comparações. Deixe de olhar para o que os outros são e preste mais atenção no que você é, falaria ele. Esqueça o que os outros têm e pense apenas em como você vai fazer para conquistar.

Se meu espelho falasse, um dia ficaria rouco. Perderia a voz e emudeceria de vez em quando. Por vezes ficaria de queixo caído.

E quando ele parasse de falar comigo, me deixaria pensando, até que eu concluísse:

Quando olhamos no espelho, não buscamos encontrar um estado excelente de aparência. Estamos tentando evitar qualquer detalhe estranho que prejudique nossa aceitação.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Se meu espelho falasse não seria mais o meu reflexo, seria o oposto de mim mesmo a me completar.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, Caderno Dois, p. 4, 16/03/2013, Edição Nº 1243. 

sábado, 2 de março de 2013

O Colecionador de Chapéus

Arte de Augusto Amato Neto




Gustavo, 42 anos, é gerente administrativo de uma empresa. Casado com Tatiana, 39, há 18 anos. O casal tem dois filhos. Luciana, de 15 anos, e Vítor, de 6.

Há dois anos, Gustavo chegou em casa após o expediente de trabalho carregando uma caixa. Curiosa, Tatiana questionou o conteúdo. “Comprei um chapéu Panamá, igual ao do Tom Jobim”, disse. Ela gostou da novidade, sempre achou um charme homem de chapéu.

Na semana seguinte, Gustavo trouxe para casa uma sacola. Tatiana encontrou-a na sala quando chegava com os filhos. Entreabriu a boca do saco plástico e encontrou outro chapéu, diferente do primeiro. Achou estranho o marido repetindo a compra sem sequer ter usado o outro. Gustavo costumava levar a esposa quando saia para comprar roupas e consultava sua opinião a cada troca no provador. Ficou encafifada com a independência repentina, mas acabou esquecendo a atitude incomum do marido.

Passados dez dias, a família toda passeava num shopping. Passando em frente a uma vitrine, Gustavo avisou que iria entrar na loja. Foi direto à prateleira de chapéus e começou a analisar os modelos. Escolheu um exemplar de estampa xadrez pequena, sóbrio. Tatiana ficou sem graça de questionar a compra na frente das vendedoras e dos clientes. Saindo da loja, ela não se conteve:

— Guto, que mania é essa agora de ficar comprando chapéus? Já levou três para casa!

— Não posso mais comprar o que eu quero? – retrucou.

— Só não estou entendendo o motivo da coleção. Você compra o chapéu mas não o usa. Semana passada, fomos no churrasco na casa do Arthur e você não usou o chapéu. No dia seguinte, fomos ao clube e você também não usou.

Ele se calou, não apresentou um motivo sequer. Não justificou as aquisições. As compras continuaram a se repetir. Em um ano, Gustavo juntou dezoito chapéus. Tatiana questionou cada uma das compras. E ele sempre devolveu respostas evasivas. Ficou preocupada, chegou a pensar que o marido estava ficando doido. Consultou um psiquiatra para investigar a possibilidade de Gustavo estar com TOC, Transtorno Obsessivo-Compulsivo, mas ele não se enquadrava no transtorno, já que sua mania se resumia a colecionar chapéus sem usá-los, sem prejuízo algum nas demais atividades.

No fim da tarde de uma quarta-feira, Gustavo e Tatiana receberam uma ligação dos pais de Tatiana pedindo que eles fossem até lá para uma conversa urgente. Preocupados, deixaram o que faziam em casa e foram ao encontro do casal. Sebastião, o pai de Tatiana, descobriu naquele dia que estava com câncer de próstata. Seria operado ainda naquela semana e depois passaria por sessões de quimioterapia.
Após a cirurgia, quando Sebastião havia tido alta para o quarto, Gustavo e Tatiana se dirigiram ao hospital para uma visita. Foi quando Gustavo desceu do carro, abriu o porta-malas e retirou uma caixa.

— O que é isso, Guto? – questionou surpresa.

— Você vai ver.

Entraram no hospital e foram em direção ao quarto onde Sebastião se recuperava. Entregou a caixa ao sogro. Era o primeiro chapéu que Gustavo havia comprado, entregue para que ele usasse quando o seu cabelo caísse após a quimioterapia.

Ao assistir a cena, Tatiana suspeitou entender, ainda que vagamente, o motivo da coleção. Saindo de lá, Gustavo lhe explicou que a palavra câncer era proibida na casa de seus pais. Quando a doença foi descoberta e divulgada, os motivos do seu aparecimento eram pouco claros. Evitar falar o nome da doença, naquela época, era tentar que ela passasse longe dos entes queridos. Ouvia seus pais se referindo ao câncer como “aquilo” ou “a coisa”.

Gustavo percebeu que deixar de falar não evitava um câncer ao observar a perda de alguns amigos e colegas. Passou a se preocupar com a doença e se deparou com sua origem silenciosa e imprevisível. Não conseguia falar sobre o assunto com a esposa, tão forte era a regra que vigorou na sua infância. Foi aí que decidiu colecionar chapéus. Se ele viesse a descobrir uma neoplasia em seu corpo, quando enfrentasse o tratamento, queria ter uma coleção de chapéus para usar a cada dia, uma tentativa de manter viva a esperança.

Se fosse agraciado de não passar por um câncer, entregaria os chapéus para os que tivessem de enfrentar a doença. Não escolheria o doente, poderiam ser pessoas que ama ou até um desconhecido que cruzasse seus caminhos e ele soubesse que lutava pela vida.

A partir do dia que descobriu isso, Tatiana começou a colecionar lenços sem usá-los. Passaram, os dois, a proteger a cabeça e a fazer um carinho no cocuruto dos bravos que enfrentam um câncer.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| O melhor analgésico é se sentir cuidado.



Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 02/03/2013, Edição Nº 1241.