sábado, 18 de agosto de 2012

Sala de Espera

Arte de Weberson Santiago



Basta ficar doente. Não é preciso agendar um atendimento médico, nem chegar no consultório para descobrir o que lhe aguarda. Andei protelando algumas consultas de rotina e exames periódicos para fugir da realidade.

Não era medo do resultado da consulta. Não temia o pedido de um exame invasivo. Não desviava do encontro com o médico ou do receituário com um remédio novo e caro. O que me assusta não é o diagnóstico, é a sala de espera.

Quem já frequentou consultórios médicos sabe do que estou falando. A aglomeração é regra. As interações são exceções para uma boa saúde.

A consulta começa com a secretária. Para agendar um horário, ela tem que listar os sintomas para ver em qual mês ela fará um encaixe. Deve-se convencer a moça da doença, expor um bom motivo além de uma dorzinha. Não serve buscar uma segunda opinião, pra isso servem os melhores amigos ou os vizinhos. É uma escolha. Deixar a vergonha de lado e expor a fragilidade. Se preservar a intimidade não será atendido.

Dia e horário marcados, apresente-se no consultório. O problema de saúde dissolve qualquer timidez. Busca-se uma cumplicidade na doença. É preciso dividir os sintomas, diluir a preocupação com a sua saúde ao compartilhar a doença com o outro.

O problema é que não termina no relato dos sintomas, quem ouve a queixa quer receitar uma solução. Deu certo com ela, há de funcionar com você. Vale de tudo: remédios controlados, receitas caseiras, tratamento alternativo, oração, patuá e por aí vai. Às vezes, o paciente entra na sala do médico só pra não ficar chato. 
Foi atendido enquanto esperava, já lhe prescreveram o tratamento e receitaram o medicamento.

A sala de espera do ortopedista é a minha preferida. Gosto de acompanhar a disputa para ver quem teve mais problemas de articulação. É cirurgia de ombro pra cá, rompimento do ligamento do joelho pra lá. Ganha a competição quem tiver operado mais, com direito a pontos extras no jogo por tempo de recuperação.

Toda esse esbanjamento não se encontra na sala de espera do ginecologista e do urologista. Nestas especialidades clínicas, reina o clima de velório. O silêncio denuncia a tensão da espera. O  retraimento disfarça o medo do que lhe espera lá dentro.

A mulher irá fazer posição de parto sem direito a nenhuma pontinha de prazer, muito pelo contrário, será vasculhada como se fosse uma gruta de mineração.

O homem terá de fazer aquilo que ele passou a vida inteira ouvindo que não deveria fazer. Não sabe o que é pior. Nunca será capaz de escolher entre mostrar o órgão genital ao médico ou levar a temida dedada. Não é uma questão de não contar para ninguém. É uma crise consigo mesmo, um medo da masculinidade ficar na consulta e não cruzar a sala de espera na saída.

A sala de espera do endocrinologista é o confessionário das farras alimentares. A descrição dos excessos cabem na sala de espera, mas serão todos omitidos na consulta. Entre o pecado da gula e o da mentira, o obeso não consegue se livrar do primeiro e acaba tendo que recorrer ao segundo. Desconfie da gentileza de trocas de revista entre os pacientes. Tem anotado na contracapa a indicação de um inibidor de apetite.

Todo consultório de pediatra deveria ter uma daquelas babás de reality show. Não falo somente das mimadas, toda criança doente fica manhosa. Não adianta oferecer um brinquedo, uma balinha ou pirulito. Contratar um palhaço será em vão. O malabarismo ficará por conta dos pais. Criança doente tem urgência de pronto socorro.

A dor é como um talento que se recusa em ficar no anonimato. Quer ser reconhecida por todos em cima do palco. Não aceita contracenar com outras dores, precisa do holofote só sobre ela. A dor é uma atriz que só é capaz de encenar monólogos. O texto da dor é um drama, não cabe como assunto de stand up comedy. A sala de espera sufoca a voz da dor, amordaça sua importância, ignora seus sinais. O filme da dor é um filme de ação. A dor não aceita suspense, por isso não sabe esperar.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Difícil não é ficar doente, é aguentar a fila dos atendimentos. Abrir o resultado do exame fica sem graça perto do teste de paciência pro impaciente.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, Capa do Caderno Dois, 18/08/2012, Edição Nº 1213. 

sábado, 4 de agosto de 2012

Telejornal é Tortura

Arte de Weberson Santiago



Já faz algum tempo que eu não consigo assistir aos telejornais. Não me sinto capaz de suportar algumas reportagens mostradas nas pautas. Fujo quando vejo a manchete. A preferência que dão a tragédia,  o quanto priorizam a capacidade do ser humano em ser cruel me embrulha o estômago. Se antes zapeava pelos canais para encontrar algum assunto interessante, agora reviro o edredom em busca do controle remoto para não encarar a brutalidade.

Não é porque eu evito o conteúdo da manchete que eu escapo de minhas responsabilidades na vida. Faço malabarismo para atender todas as demandas. Todo dia é um dia de superação. Tive de aprender a sofrer menos com as pendências e a encarar a rotina de uma maneira diferente.

Passei a aceitar que um dia começa com os problemas deixados na véspera, que se somarão aos que surgirem durante o dia e que eu não vou dar conta de todos eles até o final daquele expediente. Concluí que preciso olhar para os que eu consegui resolver ou fazer andar, e não para os que estão parados, pendentes.

O que acontece a minha volta na vida já é o suficiente para eu ter de lidar. Encarar a realidade que está longe de mim no telejornal, sem poder fazer nada, é um fardo pesado demais.

Quando fujo do telejornal não busco o isolamento do mundo, resguardo a minha vida e quem a habita. Ignoro a notícia para salvar a esperança. É uma tática para preservar a minha motivação, para não contaminar minhas ideias, não sujar de sangue meus pensamentos e não retorcer meus sentimentos. A criatividade depende da inspiração e a inspiração não sobrevive se não estiver bem protegida, ou melhor, se não for bem agasalhada.

Lidar com as aversividades da vida é como encarar as noites frias do inverno. É preciso saber como se proteger do que faz mal. Se demorar pra se esconder do vento frio, terá de enfrentar um excesso de incomodo. E, ao mesmo tempo, se ficar escondido com medo do frio, deixará de se expor ao sol do inverno no dia seguinte. Evitar sair de casa após o gélido amanhecer nos faz passar mais frio, já que se perde o calor do sol quando ele já esquentou a rua. Para saber qual é a quantidade ideal de roupa para enfrentar a temperatura, é preciso abrir a janela ou a porta e sentir o clima. Enfrentar as adversidades é saber a hora de se expor, a hora de se esconder e como vai se proteger. 

Por isso optei por me informar pelo jornal escrito. Se o título denota uma tragédia, encerro minha leitura no subtítulo, no máximo passo o olhar pela figura explicativa. Não posso descuidar do meu equilíbrio, preciso dele para terminar o dia satisfatoriamente.

A minha profissão me obriga a ser informado. Sempre sou questionado sobre o comportamento do criminoso, da frieza do assassino, do ponto em que chegou a sociedade. Tudo isso com uma única função. Querem desesperadamente que eu, como psicólogo, garanta que aquilo não vai acontecer com elas ou, pelo menos, ajude a prever algo que permita evitar que aconteça com elas.

Infelizmente eu não posso. Não tenho esse poder. Não está no meu alcance. E se formos olhar de perto, esmiuçar as provas da tragédia da vez, buscar evidências na história de vida, medir a quantidade do sofrimento do ser humano, chegaremos à conclusão de que aquele seria o único comportamento que poderia acontecer, dadas aquelas circunstâncias.

Fico sabendo de tudo pelo comentário de corredor, pela opinião de quem assistiu a notícia e só me informo profundamente se tiver de dar uma entrevista sobre o caso. Se não é essa a situação, assumo aqui que eu prefiro não saber dos detalhes. Gosto de ler artigos opinativos de especialistas que comentam e analisam estes casos, mas fujo do boletim de ocorrência ou do inquérito de investigação.

Quando as mazelas dos outros atraem mais que a poesia, a fotografia ou a música, alguma coisa está errada. Buscar na vida dos outros problemas maiores que os nossos pode até trazer alívio na comparação com as nossas dificuldades. Mas isso é perigoso. Gastar a sensibilidade com a tragédia alheia é desperdiçar aquilo que nós temos de melhor em sermos humanos. Pode custar uma felicidade que está disponível ao nosso lado. Ela esteve ali, disponível, mas deixou de estar enquanto você estava preso à notícia sangrenta do telejornal.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Experimente mudar de canal quando a notícia é pesada. Tem curiosidade que não precisa ser satisfeita. O melhor cego é o que não quer assistir.


Publicado no 
Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do Caderno Dois, 04/08/2012, Edição Nº 1211.