sábado, 24 de dezembro de 2011

O Natal Sempre Presente

Arte de Weberson Santiago



Outubro de 1955. A família acompanhava Bernardo Agnelli em uma viagem de trabalho pelo interior do Estado de São Paulo. Passavam por Santo André para uma visita ao compadre Anselmo e a comadre Bibiana. Após o amoço, saíram do restaurante caminhando quando passaram diante de uma grande Relojoaria, localizada na Rua Barão de Rio Branco, ponto forte do comércio local.

Vicenzo, então com sete anos, apontou para o interior da loja, chamando a atenção de sua mãe, Giuditte. “Olha mãe, o passarinho que fala a hora!”, disse ele. A parede repleta de Cucos era fascinante. Os entalhes de madeira, esculpidas à mão, em diversos tamanhos e formas arrebatou a todos. Vecenzo fez com que entrassem na loja.

Bernardo pôs-se a explicar: “É um cuco, bambino! Um pássaro chamado  Cuco Canoro, que canta em duas notas que soam como ‘Cu-co!’ Ele avisa quando as horas se completam. Essa raça não sabe fazer ninho, Vicenzo, por isso ocupa o ninho de outros pássaros ou escolhe morar no relógio. Nas redondezas da casa do seu avô Luigi, na Itália, haviam muitos Cucos. Eles apareciam de março a junho e depois migravam para procriar”. Mariana, a caçula de três anos, pediu para subir no colo do pai para ver de perto. Giuditte ficou encantada.

Bernardo precisava continuar a viagem de trabalho e todos saíram em direção à casa do compadre para a despedida. No caminho, quando já estavam acomodados na locomotiva maria-fumaça, Bernardo pensava na imagem de alegria de sua família diante dos relógios.

A viagem terminou, o tempo passou e a véspera de Natal chegou. Bernardo e sua família sempre ceavam na casa do seu pai. O avô Luigi começava a preparar os mantimentos para o Natal no final de novembro. Pegava o trem até a cidade vizinha para encher os balaios da dispensa com as melhores frutas. Queria fartura para as festas e não economizava na comida. Respeitava a tradição italiana. Na véspera, comia-se peixe. Tinha Bacalhau à Escabeche, Dourada assada, tudo regado a azeite importado de perfume marcante.


No dia 25, o almoço costumava se emendar ao jantar e ninguém queria sair da mesa. A avó Nena fazia a comida. Carne de porco, frango assado. O cabrito cozido em molho vermelho com azeitonas pretas ficava apurando por horas a fio. Tinha pão de tudo que era tipo para passar no molho. Castanhas e nozes, frutas secas. Tudo regado a um bom vinho. Giuditte preparava a sobremesa, sua especialidade era a Caçarola. A falação típica de uma reunião de família italiana. As risadas das histórias contadas pelos tios. Eram momentos felizes.

A ceia começava cedo e ainda faltava meia hora para a meia noite quando o jantar acabou. Bernardo sugeriu à sua família que fossem dar uma volta na praça quando deixaram a casa do vô Luigi. “Vamos fazer a digestão”, sugeriu o pai. E depois de uma rodadela calculada partiram em direção a casa da família.

Quando colocou a chave na fechadura e girou duas vezes a tranca Vicenzo, Marina e Giuditte ouviram um barulho: “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”, “Cu-co!”. Assim que chegou da viagem de Santo André, Bernardo foi à central telefônica e ligou para o Padrinho Anselmo. Pediu que comprasse o Cuco e o remetesse pela Linha Mogiana. Na véspera de Natal, combinou com o Argemiro que pendurasse o Cuco e acertasse a hora enquanto estivessem na casa do Vô Luigi. Queria fazer uma surpresa. Só que precisaria chegar em casa à meia noite em ponto.

E na décima segunda badalada estavam todos à frente do Cuco, alegres e surpresos, contemplando o novo morador. Bernardo havia arrancado sorrisos de todos que, encantados com a surpresa, se colocaram a sua volta, quando Vicenzo perguntou:

Papá, em junho ele vai embora pra procriar?

Não, Vicenzo, ele ficará para nos avisar cada hora que passar.

O Natal é a oportunidade de trazer o encantamento para dentro de casa. É renovar a expectativa de que o encantamento dure o ano todo, até o próximo Natal. E ainda que não dure, que ao menos permaneça a esperança de que algo melhor virá. E o melhor não vem embrulhado para presente, no saco vermelho carregado pelo bom velhinho, apenas uma vez ao ano. O melhor vem entregue a cada dia, pelas mãos de quem amamos.

O Natal de 2011 será o primeiro em que a Giulia, neta de Vicenzo, ouvirá o Cuco cantar.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Pra você que toma este cafezinho comigo há quarenta semanas, desejo que o seu Natal seja um momento de paz!


sábado, 17 de dezembro de 2011

O Que o Homem Não Descobre no Namoro

Arte de Weberson Santiago



Existem duas questões que parecem banais, mas que são grandes imbróglios para a relação  do homem com a mulher. Parecem apenas perguntas que a mulher faz para o homem, mas disfarçam importantes dilemas:

1. Com qual vestido você acha que eu devo sair hoje? O verde estampado ou o bege com renda?

2. Pronta para sair ela pergunta: Você acha que essa roupa ficou boa?

Não se trata de uma simples consulta de opinião, escondem uma armadilha. Elas já escolheram, mas querem apenas a confirmação. Se pudessem, tirariam de suas bolsas um pacotinho que, diluído em água, virasse uma amiga pra acalmar as suas dúvidas. Como ainda não inventaram este recurso, são obrigadas a apelar para o homem que já está pronto, há uma hora sentado esperando no sofá. Se ele não estivesse vestindo uma cara feia, ela pegaria o celular e ligaria para uma amiga. Acaba por fazer a pergunta para ele para demonstrar o motivo da demora, justificar a enrolação.

Quando ela pede uma decisão sobre qual vestido usar, espera que nós tenhamos conhecimento de todo seu guarda-roupa. Chega fazendo a pergunta sobre as duas opções sem trazer as peças no cabide. Vez por outra eu me deparo com uma camisa que eu havia esquecido que tinha. Como posso saber sobre qual vestido ela está falando? A minha sensação é que, se eu passasse uma semana conhecendo todas as peças do guarda-roupa dela, ainda não teria visto tudo.

Difícil para mim é a resposta. Não há uma vez que minha réplica agrade. Se eu escolho um dos dois, ela faz cara de decepção porque queria usar o outro. Se eu digo que gosto dos dois, ela volta vestida com um terceiro e parte para a pergunta de número dois.

É diante do “ficou bom?” que eu estrago a situação. Costumo ser sincero. Se eu não gosto, acabo falando. E ela sai brava, bufando. Pego o jornal, vejo se tem alguma atualização na rede social, enquanto tento despistar a espera. A longa espera de um homem para ter ao seu lado a mulher amada, no condição que ela considera seu estado impecável de beleza.

Para mim, tudo poderia ser rápido e simples. Quando eu questiono o motivo de toda a indecisão, ela justifica que para as mulheres é diferente. É preciso casar a roupa com o humor do dia, se meter em um processo de provador para atingir um resultado satisfatório, às custas de uma sequência de tentativas. Eu argumento que toda roupa que eu experimento e compro é porque acho que me cai bem. Ela fica sem argumento, mas não consegue mudar a técnica.

O ato de se arrumar é, para a mulher, como o ato de organizar o churrasco para o homem. Ele passa a semana pensando em qual carne ele irá comprar, qual a melhor hora para a cerveja ficar gelada a tempo, calcula a quantidade de pãezinhos por número de convidados e usa todos os segredos na hora de assar a carne. Quando ela vai sair, passa dias planejando a roupa, combinando peças e acessórios no seu pensamento.

Só que a expectativa do churrasco pode não se concretizar na hora de mandar brasa na carne. Acontece do fogo não querer pegar, da cerveja ficar quente e a carne assada sem sal. Quando a mulher vai se vestir, ao juntar as peças e parar diante do espelho, a imagem não confere com o reflexo da sua imaginação. Esta é a primeira frustração. Quando ela vai tentar uma segunda opção, já está desanimada. Põe a roupa e imagina como as mulheres presentes no compromisso a teriam visto vestida desta forma. A segunda vestimenta não passa no crivo e a irritação atinge um nível gritante. Ela já espera que a terceira troca não dê certo e, nessa hora, o homem chega e começa a apressar. É quando ela tem vontade de lhe matar.

Depois que eu percebi tudo isso, passei a tentar que ela apressasse o banho quando temos uma festa, para ver se ela termina mais cedo, mas só consegui mudar a hora que começo a apressar. Fiquei escolado diante daquelas duas perguntas chaves. Passei a fazer sugestões de roupas que eu gosto antes do compromisso para ver se ela desempacava diante da infinidade de opções, mas ela desanimou porque tirei sua oportunidade de escolha.

Foi aí que eu encontrei a solução. Achei a minha parceira de espera. Pego um brinquedo, sento com a pequena e esqueço que estou esperando. Torço pra adolescência da Anelise demorar a chegar. Não sei o que eu vou fazer quando tiver de esperar as duas ficarem prontas.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Depois da escolha da roupa, falta arrumar o cabelo e fazer a maquiagem. Amar é não ter pressa para sair.


Publicado no Jornal Democratacoluna Crônicas de Padaria

Publicado no Caderno Cultura, p. 3, 17/12/2011, Edição Nº 1178.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Sequelas de Um Quase Assalto

Arte de Weberson Santiago




Ao chegar em casa, parei o carro em frente a garagem para abrir o portão. Estranhei uma planta do jardim pisada. Do lado de fora da grade, me aproximei da muda. Ela não estava assim há cinco horas antes, quando saímos.

Chegávamos em casa depois de uma noite muito agradável. Fazia tempo que não reencontravamos aquela amiga e sua família. Comíamos comida mexicana enquanto contávamos as novidades e relembrávamos as histórias da infância e do passado. Pouco antes da meia noite, a chuva começou a cair. Meia hora depois da meia noite, resolvemos ir embora.

A Natália, que estava dentro do carro com a Anelise, avistou alguém escondido atrás da mureta da varanda, espiando quem chegava. Quando voltei intrigado para dentro do carro, já com o portão aberto, ela alertou: “Tem alguém lá dentro. Não entra!”. A evidência no jardim confirmava a possibilidade. Dei ré, buzinei na esperança de afugentar o meliante, mas ele não saiu. Acionei a polícia e fiquei dando voltas no bairro até que chegassem. Quando os dois carros e oito policiais entraram, já não havia mais ninguém. O portão aberto facilitou a fuga.

O assaltante havia feito uma visita à minha casa na véspera, quando fugiu pelo quintal da vizinha e foi visto. Voltou para realizar o crime durante a nossa chegada na casa. Não foi eficiente, deixou vestígios na primeira e na segunda invasões. A muda que eu mesmo plantara uma semana antes foi o aviso.

Fiquei pensando no motivo desta tentativa. Havia trocado meu carro por um  modelo esportivo do ano na cor vermelha alguns dias antes do ocorrido. Talvez isso dê a impressão de que minha casa está repleta de tecnologia. Se ele tivesse entrado, teria se decepcionado. A televisão é antiga, de vinte polegadas. A geladeira já tem mais de cinco anos. O único item mais novo é o notebook. Como poderia explicar que o mais valioso que eu tenho aqui dentro são os objetos baratos que comprei em minhas andanças por aí, minha coleção de tartarugas, a máquina de escrever da adolescência e as heranças de valor afetivo?

Meu medo não é de que levem qualquer uma dessas coisas que eu disse aí em cima. Fico mais preocupado com o que teriam passado a Natália e a Anelise com o assédio moral característico deste tipo de criminoso. Eles costumam descontar as privações de que foram vítimas em suas vidas naqueles em que escolhem como suas vítimas. Levam o que serve como adornos em nossas casas, mas precisam exercer um domínio sem escrúpulos sobre quem é assaltado. É a única oportunidade de serem mais fortes, de provocarem medo, de serem notados e não passarem despercebidos. Não economizam em tapas, beliscões e no jargão ameaçador típico (como no filme “Cidade de Deus”). Seu prazer é criar o clima terrorista.

Das suas tentativas de nos roubar me deixou o medo. A semana que se seguiu teve o sono prejudicado. A sensação de vulnerabilidade é como andar na corda bamba. A ameaça de cair é grande e o caminho seguro parece ser muito pequeno. Não foi preciso ter sido de fato assaltado para ficar com a eminente sensação de invasão, de ser observado em meus passos cotidianos, de ter alguém me seguindo por todo o tempo.

Desta situação, descobri onde meu lar é frágil. Cerquei a frente com rolos de arame farpado. Mandei instalar uma câmera para assistir minha chegada em casa, coloquei iluminação com sensor de presença para mostrar a quem passa na calçada que eu estou vendo. Novos artifícios foram somados à grade em todas as janelas, ao alarme monitorado vinte e quatro horas, ao botão de pânico e as várias trancas nas portas.

E com tudo isso ainda não me sinto seguro. Me sinto um refém. Seguro eu me sentiria se todo este investimento pudesse ser feito em algo que deixasse minha casa mais bonita. Tão bonita que quem passasse na porta teria vontade de entrar e me fazer um visita.

Difícil é explicar pra Anelise porque nós estamos tentando espantar as pessoas da nossa casa, confundindo a sua fachada com a de um presídio. Somos os detentos de um mundo em que os culpados são absolvidos e os inocentes são encarcerados.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Não se cercar de cuidados é ingenuidade. Sentir-se seguro é uma meia verdade. A pior arma é a boca.
Publicado no Jornal Democratacoluna Crônicas de Padaria

Publicado no Caderno Cultura, p. 3, 10/12/2011, Edição Nº 1177.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Criatividade na Culinária

Arte de Weberson Santiago



Cheguei à conclusão que minha criatividade é arrogante. Metida a besta mesmo. Ela se antecipa em querer descobrir como se faz toda e qualquer coisa que observo. Inspeciona o que está na minha frente até descrever os materiais ou ingredientes. Antes parasse por aí. Que nada. A arrogância faz questão de mostrar que sabe fazer igual, e tem o péssimo hábito de tentar fazer melhor.

Sempre foi assim. Quase que um vício em aprender a fazer. Começou com a culinária. Se engana quem pensa que foi uma tentativa de impressionar. Necessidade mesmo. Estava cansado de me deparar com o hambúrguer no final do dia. Já na adolescência testava o molho bechamel (ou molho branco) no macarrão. Consultava uma coleção de livros de receitas da minha mãe, assinada junto com o  jornal.

Ela nunca foi de cozinhar durante a semana, mas manteve os livros de todas as culinárias do mundo e a dispensa para que eu pudesse driblar a fome e me fazer cozinheiro. No livro, encontrava o passo a passo com foto. A invenção de novas combinações foi uma questão de tempo e de preguiça, e não de segurança. Na hora de repetir a receita, a moleza de subir na grande estante de ferro para pegar o livro me levava à variação nas quantidades e ingredientes.

Quando fui morar em São Paulo durante a faculdade, meus principais problemas eram a falta de dinheiro, o preço do aluguel e da comida. Quando abriu a barraca de sanduíche na rua de casa, encontrei o meu Mc Donalds. Foi comendo o Misto Quente de café da manhã até o X-Tudo do jantar que descobri que tinha o mesmo atendimento do Burger King, podia pedir o lanche da minha maneira. Da saída do funcionário do caixa do carrinho me restou o convite para meu primeiro emprego.

O dono era um migrante analfabeto, que havia feito o recrutamento e a seleção ao me observar. Viu minhas habilidades para fazer contas enquanto comprava dele e teve como prova de minha honestidade o dia em que lhe falei o erro do Banner/Cardápio de seu estabelecimento móvel: Lanches do Pedrininho (se bateu o olho e leu Pedrinho, leia novamente). O caixa e as compras eram fechados por sua mulher, que tinha curso técnico em contabilidade.

Meu papel se resumia a entregar o refrigerante e a cobrar o cliente. Muitos eu já conhecia de dividir as cadeiras na calçada durante as refeições. O Pedro se deu bem ao achar um espaço perto de um shopping onde os próprios vendedores evitavam a praça de alimentação para economizar. Nos finais de semana era o dia todo de pé, mas a movimentação da rua compensava. Se eu fosse cronista naquela época, hoje seria pós-graduado em filosofia do cotidiano.

Para minha criatividade, dar o troco e pegar a lata certa de refrigerante era pouco. Não cansava de notar o trabalho do chapeiro. Em uma hora de pouco movimento, resolvi me arriscar, fiz um sanduba completo para mim mesmo. Numa dessas, chegou um cliente e fez o pedido. Eu mandei o lanche. E de vez em quando trocava de posto com o amigo da chapa. Quando percebi, me gabava de quebrar os ovos com apenas uma mão. O ápice da função do chapeiro é jogar o ovo e o hambúrguer pra cima e ele cair do lado oposto, mas quebrar o ovo com uma mão já impressiona e demonstra aptidão para o posto.

Na minha primeira experiência em trocar minha mão de obra por dinheiro, descobri que posso fazer carreira no ramo alimentício. Brinco com a mulher que nunca passaremos fome. Se ficar sem emprego, trabalharemos com comida. Ela gosta da ideia e dá o aval toda vez que cozinho em casa.

Dizem que não existe erro em investir em comida, mas essa regra não se aplica quando não há alvará de funcionamento e a lanchonete funciona na calçada. A fiscalização da prefeitura terminou com a minha carreira no ramo do fast-food.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Receitas são regras e fugir da regra também pode terminar em prazer na degustação.


Publicado no Jornal Democratacoluna Crônicas de Padaria

Publicado no Caderno Cultura, p. 3, 03/12/2011, Edição Nº 1176.