sábado, 25 de maio de 2013

Alface Lisa em Crise

Arte de Augusto Amato Neto



A Alface Lisa está deprimida. Sua autoestima está mais baixa que pluviômetro na seca.

Perde-se em seu próprio pensamento lembrando-se de como eram as coisas há um século. A nostalgia de um passado em que ela era o único tipo de alface servida nas mesas brasileiras.

Durante os seus primeiros cinquenta anos reinou absoluta. Não sabia o que era a concorrência. Dividia o espaço nos canteiros com a acelga e a escarola, mas era a única que podia ser comida crua. Eleita a exclusividade em leveza e refrescância na salada servida nos trópicos.

Seu pesadelo começou na meia idade, quando chegou a Alface Crespa. Uma alface com estilo de cabelo de negão. Foi difícil aceitar o black power da hortense vizinha. A Alface Lisa não se conformava com o estilo crespo da prima distante. Era a novidade que toda dona de casa procurava para variar a entrada.

O incômodo nunca passou, mas o desespero veio depois da chegada da Alface Americana. Não teria como competir com a crocância da gringa. Nunca poderia fazer parte de uma Salada Ceasar, combinando com queijo, frango e molho da mesma forma que a Americana.

A Alface Lisa desejava ardentemente que o tempo voltasse. Queria que o Conga e o Bamba fossem os únicos tênis a serem vendidos nas lojas. Maldita globalização, pensava ela.

Tinha saudade de quando decorava o frango assado na prenda da quermesse. Impiedosa essa tal industrialização, comentava.

A desistência em forma de depressão tomou conta quando tomou conhecimento da Alface Romana, da Alface Mimosa e daquela Alface Roxa, que a Lisa apelidou de “tingida”. Não suportava cada vez que um consumidor analisava as variedades e escolhia outro tipo.

Sonhava com o dia em que alguma pesquisa científica descobrisse que todo tipo de Alface, com exceção da Lisa, fariam mal como a gordura trans. Assim, reconquistaria o lugar de outrora nos carrinhos de supermercado.

Para evitar chegar ao fundo do poço, pesou em fazer uma lipo para eliminar a flacidez. Doeu constatar que nem isso poderia, já que Alface não tem gordura. Pensou com uma amiga Lisa na ideia de fazer botox, para ver se ficava parecida com a americana. A amiga fez primeiro e ficou parecendo planta artificial. Achavam que ela era de plástico e também passavam reto.

Amargurada, a Alface Lisa pensou em suicídio. Iria se atirar ao sol do meio dia e murchar até morrer. Ficaria mais mole do que já é até secar. Quem sabe o sofrimento terminasse.

Faltou-lhe coragem.

Até que um dia, algum consumidor de gosto tradicional escolheu uma Alface Lisa e um pé de Almeirão e os colocou lado a lado no carrinho. Então, a Lisa descobriu que o Almeirão sentia a mesma coisa que ela em relação à Couve e à Escarola.

O sentimento de rejeição uniu a Alface Lisa ao Almeirão. Tendo um ao outro e dividindo os sentimentos, passaram a sofrer menos com a escolha do consumidor e a se comparar menos com as outras verduras.

Tranquilizador mesmo é descobrir que existe alguém que passa pela mesma coisa que a gente.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Se você descobrisse que os vegetais tem sentimento, continuaria a comê-los?

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, Caderno Dois, p.4, 22/05/2013, Edição Nº 1253. 

sábado, 11 de maio de 2013

Onde Está Doendo?

Arte de Weberson Santiago


Meu amigo Paulo reclamou de ter pegado um resfriado e, de brinde, uma dor de garganta. Disse que ficar doente atrapalha o cumprimento das obrigações do dia-a-dia, mas que o pior foi que adoeceu justamente quando chegou o fim de semana da sua viagem.

Adoecer, na maioria dos casos, é o resultado de ser exigido ao extremo, sem ter um tempo de recuperação entre as exigências.

Como um carro depois de percorrer um longo e sinuoso trajeto, com direito e subidas e descidas até o seu destino. Quando é que o carro dá sinais de desgaste?

Quando ele estaciona na garagem. É quando ele para que a ventoinha começa a girar para remediar o superaquecimento.

Não é durante o percurso por entre as adversidades que aparece a doença. Ainda que tenhamos que nos manter em primeira e segunda marcha por um bom tempo, ignoramos os primeiros sinais de desgaste para dar conta da jornada até o fim.

Assim aconteceu com o Paulo, que teve de lidar com muitas situações estressantes, e a oportunidade de descanso e lazer pareciam não chegar nunca. Como as contingências da sua vida não o permitiram parar, só pôde se contentar com a contagem regressiva para a viagem.

Quando as coisas se acalmaram e a viagem chegou, o organismo do Paulo arregou, superaqueceu. E seres-humanos não vêm com ventoinha de série.

Ninguém gosta de ficar doente, salvo alguém que apela para a barganha ou quer tirar alguma vantagem. A doença é um impedimento, um lembrete para mostrar que temos limites. Por outro lado, a doença é também uma proteção, um sinal que chegou a hora de parar e se cuidar.

Não é todo mundo que consegue identificar os motivos do adoecimento. É preciso de um bocado de sensibilidade, tempo e disposição para isso. A maioria prefere aliviar os sintomas com a medicação a entender os mecanismos e as causas do seu aparecimento.

Uma dor-de-cabeça pode ser dor-de-pensar. Pode ter a função de esquiva de alguns problemas nos dias em que estamos sem disposição para encará-los de frente. A cabeça dói.

Uma dor-de-barriga pode ser resultado de um forte medo do que esta por vir. Uma diarreia pode ser uma dificuldade em aceitar que não se tem controle do que acontece ao redor.

Uma dor-de-estômago pode ser dificuldade de digerir os acontecimentos. Repare como é difícil comer quando estamos brigados com quem estamos acostumados a tomar as refeições. É preciso estar relaxado para digerir. Caso contrário, a comida não desce, ou desce causando incômodo.

Uma dor nas costas pode ser falta de jogo de cintura. Travar as costas pode ser falta de flexibilidade. Sempre acompanhados por uma tensão muscular anterior ignorada. Na hora de um esforço de alongamento ou agachamento além dos limites do corpo, a lesão acontece.

A insônia pode ser uma compensação da inércia. Uma recusa do corpo em relaxar e descansar, resultado de ter se comportado ao contrário do contexto. Explico. Na hora de agir, ficou paralisado. De tanto esperar que as coisas se resolvessem por si só e, sabendo da própria responsabilidade, obriga-se a remoer os problemas na hora de repousar.

A doença, quando está nos outros, é o que de mais poético existe. A doença, da parte do doente, não é dele e não deveria estar nele.

 UM CAFÉ E A CONTA!
| Ignore a dor e espere que ela irá gritar.


Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, Caderno Dois, p.4, 08/05/2013, Edição Nº 1251.