sábado, 19 de setembro de 2015

Memória Acorrentada

Arte de Weberson Santiago


Há alguns anos atrás, alguém se incomodou com a corrente que perfurava a grande árvore e a prendia ao muro na Ladeira da Memória, centro da cidade de São Paulo. Já se vai muito tempo desde 1888 e só agora a escravatura do espécime Ficus organensis vem a ser questionada. A princesa Isabel do século XXI a favor da liberdade da natureza foi Cristina Moreno de Castro, jornalista que questionou a corrente no impresso Folha de São Paulo.
Localizada em meio a monumentos no vale do Anhangabaú, ironicamente ninguém na Ladeira da Memória é capaz de resgatar o motivo da colocação dos grilhões que impedem, há mais de vinte anos, a fuga da árvore da Rua Xavier de Toledo. Juntamente com o obelisco, a escadaria e o chafariz, a árvore de quinze metros de altura faz parte do largo que foi inaugurado em 1814 e é patrimônio histórico tombado.
Foto: Dornicke
Caixa de texto: Foto: DornickeNem os mais antigos da região sabem da história daquela corrente, que timidamente venho contar aqui. No começo do século XIX, na Rua Palha, hoje Sete de Abril, o governo encarregou o engenheiro Daniel Pedro Müller da construção da Estrada do Piques para facilitar a comunicação de São Paulo com o Interior. Além da Estrada do Piques, Müller propôs a formação do Largo da Memória com o alargamento das ladeiras do Piques e da Palha e a construção de um chafariz, tudo complementado por um obelisco “à memória do zelo do bem público”.
Neste tempo em que a cidade era um amontoado de casas de taipa de pilão, o português Pedro Luiz de Souza Machado foi um dos que veio com o grupo dos jesuítas para desbravar as terras brasileiras. Quando passaram por São Paulo, parte do grupo se encantou com o clima fresco semelhante ao europeu e fundaram o Real Collegio, grupo do qual fazia parte Souza Machado. O engenheiro Müller contou com a disposição de nobres Senhores da época para a construção do Largo da Memória. Souza Machado inclusive cedeu escravos para trabalhar para o mestre pedreiro Vicente Gomes Pereira, subordinado de Müller.
Por decreto de 08 e carta de 13 de Fevereiro de 1812, Souza Machado teve a concessão do título de Conde de Lousada, como ficou conhecido na cidade desde então. A obra de pedra de cantaria constituía o obelisco de onde emergia de uma bacia de alvenaria com grades de ferro, que servia como reservatório da água. Muitos viajantes cruzavam a Ladeira para encher os cantis em uma bica e prosseguir o trajeto. Numa das tardes no Largo, o Conde de Lousada pressionava o lenço contra a testa enquanto avistou de longe uma jovem dimanada na lomba de um burro. Transporte típico da época, a dama de companhia que conduzia o quadrúpede parou para lhe dar água na Ladeira. Olhares tergiversos provocaram as mais sublimes sensações no Conde e na jovem. Era Leonora de Melo Guimarães, filha de portugueses que se tornaram cafeeiros e nos primeiros anos do século seguinte ocuparam a Avenida Paulista, a primeira via planejada da capital.
No fluxo das pessoas pelo Largo da Memória, galanteios e gracejos aproximaram o Conde cinquentenário da jovem Leonora. Na véspera da inauguração do alargamento da Estrada do Piques e dos monumentos de pedra que constituíram o Largo da Memória, na presença de Müller, de Gomes Pereira, do Conde de Lousada, de Leonora, de um grupo de escravos e de alguns transeuntes foi plantada a figueira. No dia seguinte, 12 de Outubro de 1814, autoridades do governo inauguraram a obra em uma solenidade oficial. O pedido de casamento do Conde para o pai de Leonora se deu alguns meses depois e o casamento foi sacramentado por Dom Mateus de Abreu Pereira em 11 de Outubro de 1815, um ano após o plantio da Ficus, na Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, localizada na Rua do Carmo. Em 1816, nasceu o primeiro filho, batizado com o nome do pai.
Foto: Felix Lima/Folhapres
Acontece que Leonora considerava enfadonha a vida de Condessa e não demorou a se envolver em um caso perigoso. Encantou-se com os rituais Iorubás, realizados pelos escravos e que frequentava quando o Conde estava fora de casa. Acabou por envolver-se com um escravo, com o qual se encontrava às escondidas. O Conde de Lousada, desconfiado, colocou um capanga no encalço da amada. Quando se percebeu na iminência de ser descoberta e sob o pretexto de sua vida monótona, lhe seduziu e partiu com o jagunço que deveria constatar a traição, tendo levado consigo parte do dinheiro do Conde.
A tardia entrega ao amor fez com que a traição consternasse a consciência de Pedro Luiz, o Conde de Lousada. Desgostoso da própria vida e da ingratidão de sua "Nôra", encaminhou o filho para estudar em um colégio interno. Sentia fortes dores de cabeça todos os dias, sem encontrar alguma maneira de se sentir melhor. Num momento de desespero, enquanto uma escrava lhe punha compressas de água morna na testa, levantou-se repentinamente, reuniu os escravos do lado de fora da casa e mandou que eles, os únicos que lhe foram fiéis, acorrentassem a figueira com os grilhões do porão, na tentativa de livrar-se das correntes de sua memória, que lhe apertavam a cabeça e foram responsáveis pelo seu adoecimento e depois pela sua morte.
Homem influente na sociedade paulistana da época, seus amigos se encarregaram de aumentar os elos da corrente a cada ano, para que a árvore pudesse crescer sadia. Durante um século e meio, o governo municipal de São Paulo interpretou as correntes como uma necessidade de segurança para que a árvore se mantivesse de pé. No meio do Regime Militar Brasileiro, por volta de 1970, a corrente parou de ser trocada e a árvore continuou a crescer em espessura, englobando internamente parte da corrente. Como num grito de liberdade da árvore, recentemente um dos lados da corrente se rompeu e perdeu a função inicial.
Após uma vistoria técnica nos primeiros dias de 2011, a figueira centenária do largo da Memória foi finalmente libertada. As correntes que a prenderam por décadas ao muro da Xavier de Toledo foram cortadas por técnicos da Prefeitura. Ela não tinha risco de cair e a corrente que a prendia não tinha mais razão de ser para os técnicos. Sabemos nós que a razão de ser era para a memória do Conde de Lousada, que talvez agora tenha sido também liberta. Apenas o pedaço que já estava dentro da árvore não foi removido, porque isso poderia causar ferimentos no tecido da figueira e deixá-la vulnerável a doenças e pragas.
No largo da memória, as correntes emocionais imperceptíveis por quem percorre o passeio são as mais difíceis de remover.

UM CAFÉ E A CONTA!
| Em tudo o que for acorrentado haverá de restar alguma cicatriz.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 19/09/2015, Edição Nº 1373.



sábado, 5 de setembro de 2015

Envelhecimento

Arte de Weberson Santiago


Ele anda com passos e movimentos mais lentos. Parece que lhe colocaram uma sola de ferro nos sapatos. A musculatura precisa fazer mais esforço para dar conta do peso das pernas. Se esforça para concatenar os passos, a posição do tronco, o movimento dos membros. Faz malabarismos com o corpo, mas se recusa a demonstrar esmorecimento nas atividades.
Os sentidos já não são mais os mesmos, falham. O labirinto não lhe garante equilíbrio. O som ouvido nunca é o suficiente para a compreensão. As mãos tremem na hora de levar a xícara aos lábios. Falta-lhe força nos punhos e coordenação nas mãos para conseguir picar a carne. Falta-lhe precisão para fincar a azeitona com o garfo. Culpa a faca e suas cerdas desgastadas.
Reclama que a comida está sem gosto. É tanto alho que ele está protegido de vampiros num raio de cinquenta quilômetros, mas ele insiste em dizer que faltam sal e tempero na comida. Os olhos não colaboram. A catarata lhe deixou com as vistas embaçadas. Onde tem frango, vê peixe. Onde tem legumes, vê massa. Diante da dificuldade de identificar a comida, pergunta para quem está do lado para descobrir o que vai comer.
Ele funciona como meu notebook. Se ninguém interage, entra em estado suspenso. Ele cochila sentado quando não tem com quem conversar. Cochila na mesa depois das refeições, cochila na sala de televisão com a tevê ligada. Ele sai do estado de hibernação como o meu notebook. Basta um toque. É um grito da novela ou uma propaganda com volume mais alto e ele acorda como se o tempo tivesse parado quando ele começou a cochilar e nada tivesse acontecido no mundo durante este intervalo. Basta que alguém pise mais firme ou abra uma gaveta e ele desperta. É um sono leve para economizar energia, como o do meu notebook. É quase uma meditação oriental. Ele despertou e já tem a consciência de um mestre capaz de distribuir conselhos.
Ela morre de medo dele morrer primeiro e dela ficar só. Ela morre de medo de um monte de coisas. Por isso, todos os dias ela pega sua caixa com dezenas de orações e novenas. Reza por uma ou duas horas, sentada na varanda. Reza pelo marido, por cada um dos filhos e pelos netos. Reza por quem ela vê sofrendo. Tem horas que ela pede, mas tem hora que ela é impositiva com os santos. Às vezes ela faz algum tipo de chantagem ou barganha com eles. Dá uma ameaçada de leve. Faz com os santos do mesmo modo que faz com o marido: ela tenta mandar neles para que eles façam o que ela quer.
Ela sofre com quem adoece e padece quando alguém morre. Sente como se a fila andasse uma posição e a vez dela ou dele se tornasse mais próxima. Ela morre de medo de ficar doente e sofrer prostrada numa cama. Morre de medo de doença. É tanto medo que quase já virou uma doença. Poucas pessoas como ela amaram tanto a vida, viveram cada dia com tanta alegria. Para ela, é difícil continuar tão feliz sabendo que a vida se aproxima do fim. Ela sempre sofreu por antecedência e quis controlar tudo. Agora está antecipando o fim, querendo controlá-lo.
Eles comem pouco. Reclamam que não tem apetite. Se depender do aviso de fome do corpo, ficam sem comer. Comem porque chega a hora, comem pelo hábito ou porque alguém fala que tem que comer. Eles bebem pouca água. Se depender do aviso de sede do corpo, se desidratam. Precisam que alguém os lembre de suas próprias necessidades básicas. Não gostam de depender, mas sentem-se felizes em ter alguém que lhes cuide.
A comunicação mudou com o tempo. Quando se conheceram e eram jovens, falavam pelos olhos, mas a rigorosidade dos pais e irmãos não lhes permitia que conversassem. Quando começaram a namorar, falavam pelo tato, conversavam pelas mãos. Na maturidade do casamento, deixavam recados junto aos objetos pela casa.
Agora, na velhice, ao invés de encontrarem os lábios, a boca vai de encontro ao ouvido do outro. Aproximam-se, pendem o tronco abaixando um dos ombros para o lado onde está o outro, para que um não precise falar muito alto e para que o outro escute o que for falado. Reclamam um do outro. Às vezes saem resmungando da conversa. Mas boa parte do que eles precisam é saber que o outro está ali, por perto. Agora, na velhice, eles aprenderam a conversar com o silêncio da presença.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Viver a decadência do corpo faz parte da vida. O desafio é envelhecer sem perder a dignidade.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 05/09/2015, Edição Nº 1371.