sábado, 27 de junho de 2015

O Menino que se Tornou Olhos e Ouvidos - Parte 2

Arte de Weberson Santiago


Continuação do conto publicado na edição 1.359. A primeira parte está disponível clicando aqui.
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Vitor atravessou a rua correndo e tocou a campainha da casa do seu Arthur. Alguns minutos depois saiu dona Olímpia. Vitor contou que seu pássaro havia fugido e que viu ele pousando na goiabeira da frente da casa deles. Seu Arthur, que viu a mulher indo em direção ao portão, interrompeu a conversa lá de dentro perguntando: “Quem é, mulher?”. Ela se virou de costas e, olhando no rosto do marido, disse: “É o menino que mora aí na frente. O canário dele fugiu e ele acha que está aqui na nossa árvore”. “Manda ele esperar aí que eu vou pegar meus óculos e uma ferramenta pra ajudar” – respondeu o dono da casa.
Vitor sentiu um enorme frio na barriga. Começou a imaginar que seu Arthur traria alguma ferramenta para lhe punir por alguma daquelas vezes que aprontou com seus amigos. Suas pernas finas começaram a tremer e ele sentiu uma enorme vontade de sair correndo e voltar pra casa. Foi quando avistou o velho Arthur, que saiu pelos fundos da casa até sua oficina e deu a volta pelo quintal, empunhando uma vara. Em pensamento Vitor já tinha atravessado a rua, fechado o portão da sua casa quando a parte final da vara chegou a seu campo de visão e ele viu um aro e um saco de tule. “Uso isso pra apanhar manga lá no fundo, acho que pode nos ajudar a pegar seu canário” – disse o senhor – “vamos lá, me mostra onde ele está, menino”.
“Eu não sei direito, mas fiquei de olho e ele não saiu daqui” – respondeu Vitor enquanto dava voltas no pé de goiaba. Dona Olímpia, sentada na varanda, interrompeu: “Você tem que falar com o meu marido com a boca voltada para os olhos dele. Ele perdeu a audição no tempo em que trabalhou na mineração, mas consegue ler o movimento do seu lábio.” Vitor enxergou o canário bem no alto e apontou o dedo em sua direção, sem lembrar da instrução que havia acabado de receber. “Olímpia, busca uma caixa de sapato”, disse o velho à esposa. Em seguida, combinou com Vitor: “Temos de agir rápido pro seu canário não escapar. Eu vou dar o bote com a rede e trazer em sua direção, você vai estar com a caixa e vai tampar o aro pra ele não escapar, depois eu te ajudo a colocar ele dentro da caixa”. “Tá certo” – respondeu o menino.
O velho partiu para a captura empunhando a ferramenta e foi em direção ao topo da árvore, onde estava o canário. Vitor se posiciona a distância exata do comprimento da vara para que seu Arthur pudesse descer a rede diretamente na direção da caixa. Quando balançou a rede pelas costas do canário, o pássaro voou. Embora Arthur dispusesse de grande vigor físico, os 77 anos lhe trouxeram como consequência alguma lentidão nos movimentos, tempo suficiente para o pássaro escapar, sabe-se lá pra onde.
O velho ficou decepcionado e pediu desculpas por não ter conseguido. O menino ficou dividido entre a tristeza de ter perdido seu canário e a pena do velho que teve tão boa vontade. Os dois estavam cabisbaixos quando o velho disse: “Tive uma ideia! Venha aqui que eu quero te mostrar uma coisa”.
Vitor seguiu Arthur pelo quintal até a área coberta do fundo, onde também havia um cômodo. Lá estavam diversas ferramentas, madeiras, troncos, móveis. “O senhor é que fez isso aqui?” – perguntou apontando as pequenas esculturas de madeira. “Sim, desde que me aposentei da mineração, trabalho como marceneiro, mas não é isso que eu queria te mostrar”.
E continuou: “Olha aqui, eu tenho esse casal de Diamante de Gould. A fêmea botou quatro ovos anteontem. Daqui a 16 dias eles vão nascer e um deles será seu. Volte daqui a duas semanas para ver se a cria vingou e quando tiver com três semanas de vida você já pode levar pra sua casa. Vitor saiu de lá empolgado. Nunca tinha visto um pássaro daquele, com cores tão diferentes. Entrou em casa correndo, contando pra mãe que iria ganhar um pássaro do vizinho e só se lembrou da perda do canário quando viu a gaiola vazia. A mãe ficou preocupada com a aproximação dos dois, já que a fama do vizinho não era boa, mas pensou que a história acabaria quando o pássaro viesse pra casa. Para Vitor, duas semanas pareciam uma eternidade.
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Este conto chega ao fim daqui a duas edições do Democrata, em 15 dias.

UM CAFÉ E A CONTA!
| O que causa estranheza de longe pode causar uma agradável surpresa quando nos aproximamos.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 27/06/2015, Edição Nº 1361.

sábado, 13 de junho de 2015

O Menino que se Tornou Olhos e Ouvidos

Arte de Weberson Santiago



Vitor tinha quatro anos quando o Sr. Arthur se mudou para a casa do outro lado da rua com sua esposa, dona Olímpia. O casal não era de conversa e ninguém da rua sabia de onde tinham vindo. Pouco tempo depois da mudança, a vizinha fofoqueira, dona Elvira, procurou sua mãe para lhe contar o boato que corria na vizinhança. Diziam que o novo morador havia saído fugido de uma cidade do interior de Minas onde morava por ter matado um homem.
A vizinhança cultivou uma distância. Os homens acenavam ou diziam bom dia quando abriam o portão da garagem e encontravam seu Arthur na frente de casa. As mulheres sequer cumprimentavam dona Olímpia. O casal nunca tomou iniciativa para o entrosamento e manteve-se, de certo modo, isolado dos vizinhos.
De ouvir os comentários dos pais, as crianças cresceram com medo do casal. A partir dos sete anos, Vitor e seus amigos passaram a ir pra escola a pé e toda manhã de dia de aula tinham de passar pela calçada da casa de seu Arthur e dona Olímpia para chegar até a escola. Jorjão apertava a campainha da casa deles sem avisar os outros dois amigos e saia correndo na frente, seguido pelos dois. Remela jurava de pé junto que tinha visto um dia, pela fresta entre o portão e o muro, seu Arthur cortando um cadáver com o serrote no fundo do terreno. Todos da rua ouviam barulhos de ferramentas diariamente vindos de lá.
Depois dos sete anos de idade, Vitor perdeu um pouco do medo e passou a se interessar pelo que lhe causava estranheza. Um dia saiu pra escola sozinho e viu seu Arthur na porta. Desejou-lhe bom dia. Ouviu como resposta um murmúrio seguido de um bom dia mais pra dentro do que pra fora. Na semana seguinte, acompanhado de Jorjão e Remela, viu o seu Arthur de costas, recolhendo as folhas que varreu na calçada. Disse-lhe bom dia e teve o silêncio como resposta. Virando a esquina, os amigos lhe repreenderam:
— Tá louco, Vitor? – perguntou o Remela.
— Você não sabe que ele é um assassino? Não viu a enxada na calçada? Vai que ele resolve arrancar a sua cabeça fora! – emendou o Jorjão.
Vocês são dois cagões! – respondeu.
Num dia qualquer, após o almoço, a mãe de Vitor foi limpar a gaiola do canário de estimação do menino – batizado por ele de Falcão – quando, sem querer, o deixou escapar. Vitor, que estava por perto, viu que o canário pousou na cadeira da sala de jantar. Na ponta dos pés, se aproximou para tentar capturar o pássaro, mas ele percebeu sua aproximação e bateu asas, deu um rasante na sala de estar e escapou pela janela da frente, para fora da casa. Vitor, que seguiu o pássaro até a sala, subiu na mesa de centro e acompanhou a trajetória do pássaro. Ele foi na direção da casa do seu Arthur e pousou na goiabeira plantada na frente da casa.
Sua mãe, sentindo-se culpada, disse que lhe compraria outro. Mas ele não queria outro. Nenhum canário cantaria tão bonito quanto o Falcão. Se ele quisesse recuperar seu pássaro teria de pedir ajuda para o vizinho enfezado. A goiabeira ficava do lado de dentro da casa, atrás do muro, em frente da varanda da porta de entrada, onde o casal costumava ficar sentado algumas horas do dia.
Vitor não hesitou, atravessou e tocou a campainha.
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Este conto continua na edição do Democrata daqui a 15 dias.
UM CAFÉ E A CONTA!
| Às vezes a vida nos impõe mudar de direção. Somos obrigados a ir de encontro ao que evitávamos manter contato.

Publicado no Jornal Democrata, coluna Crônicas de Padaria, capa do caderno Dois, 13/06/2015, Edição Nº 1359.