quarta-feira, 30 de junho de 2010

A Biblioteca

Levei um susto. Deixei a recomendação de uma limpeza profunda à faxineira e quando voltei minha estante de livros havia sido repaginada. Olhava para a seqüência de livros e não os reconhecia. Era como se não soubesse o que havia escrito nos livros já lidos. De repente sinto pânico de pensar “e se eu precisar achar um livro e não encontrar?”.

O impacto desse episódio foi estranho. Saber onde estava cada livro me dava segurança. Segurança de precisar retomar algum pensamento e encontrar onde eu o deixei. Olhava para aquela arrumação sem critérios e não conseguia ver o mesmo conjunto de livros ao me perder quando precisava de um volume.

Uma estante é uma estrutura para guardar livros. Não pode ser apenas um depositário de calhamaços de papel. Ela serve para facilitar a minha relação com os livros. A estante tem função. Posso separar por temática, pôr em ordem alfabética e de repente esconder algum volume.

Acumular livros é um comportamento altamente reforçador, eles são os documentos que marcam os caminhos da vida. São companheiros dos encontros e desencontros. Testemunhas das idas e vindas. O peso de um livro não sobrecarrega, subdivide.

Não existe um delator maior do que uma biblioteca particular. É possível reconstituir uma história de vida conhecendo apenas a coleção de livros de um indivíduo. Pelas dedicatórias descobrem-se os amores. Pelos amassos e rabiscos, as manias do dono da estante.

E foi retirando todos os livros e colocando novamente a minha maneira que redescobri meu caminho. Vivi uma retrospectiva quando me deparei com certas obras. Achei um livro emprestado que o desfecho da relação me impede de devolver e resolvi deixá-lo onde estava.

Me deparei com um livro chamado Os pais não são responsáveis pelas neuroses dos filhos e me recordei da situação em que me foi entregue. Uma matriarca se sentindo culpada querendo me convencer com o título que não era responsável por qualquer um dos problemas de sua prole.

Até que encontrei um clássico de Dale Carnegie intitulado Como fazer amigos e influenciar pessoas. Não resisti quando me deparei com este livro num sebo perto do apartamento que morava em São Paulo. Comprei. Cada vez que abro suas páginas caio na risada com os subtítulos do livro de 1936: como fazer as pessoas gostarem de você imediatamente; um modo certo de fazer inimigos e como evitá-lo; quando tudo falhar, experimente isso. O interessante é a sinceridade da autora no prefácio reconhecendo que o dono da editora a procurou para reverter os 7 fracassos a cada 8 livros lançados. Vendeu milhões de exemplares em diversos idiomas e é um dos meus livros preferidos de comédia. De tão pragmático chega a ser fútil.

Agora, a estrutura da estante cumpre sua função. Cada livro está em seu lugar na biblioteca e sou capaz de achar qualquer um que eu precise. Guardo minhas histórias na estante da imaginação. Retiro lembranças das prateleiras para ter certeza que estou vivendo. Por vezes, para falar preciso do documento na mão. A não ser quando saio para fazer amigos e influenciar pessoas. Hoje sou especialista e não preciso mais de manual.


segunda-feira, 21 de junho de 2010

Adolescente

Ouvi dizer que a adolescência se estendeu até os trinta e cinco anos. Cada vez mais filhos têm chegado a esta idade morando com seus pais, apontam as estatísticas. A emancipação é um comportamento tipicamente adolescente, como são muitos outros.

Uma experiência adolescente é a descoberta da dialética por duas categorias formais: o normal e o bizarro. Tudo o que acontece pode se encaixar nessas duas classes na descoberta da investigação racional do mundo. Explorar o mundo para obter conhecimento é adolescente.

Uma cancha de adolescente é ser desacreditado. Ser tratado como um protótipo de adulto. O que um dia virá a ser um homem ou uma mulher. Sempre há alguém para apontar os limites que a idade impõe às escolhas sob a forma de regras. Se sentir preso é adolescente.

Olhar o mundo de forma adolescente é expressar. É fazer cara de bravo pra se livrar da bronca. Arregalar o olho diante da emoção forte. É fingir que sabe se defender das pessoas atacando. Expressar para chamar a atenção é coisa de adolescente.

Uma questão adolescente é o que será que eu sou. Tantas pessoas querem por mim que eu não sei o que eu quero. É descobrir os próprios gostos e manias se preocupando com os gostos e manias dos outros. Aprender a representar. A adolescência.

Representar papéis para conseguir o que se quer. Se você observar um adolescente fazendo uma escolha aparentemente equivocada, não pense que é uma questão de ingenuidade. O ingênuo pode ser você que não percebeu que o motivo da escolha é a provocação. Adolescente descobre que seu comportamento tem função.

Adolescente é descobrir o que fazer com outra pessoa. O que se faz com uma pessoa que incomoda. Como lidar com outra que desperta sensações estranhas e fortes. O que fazer para sobreviver nas relações. Saber cativar. Saber se livrar.

Amor adolescente é saber que não é impossível, e que isso não significa que viver a relação seja possível. Brigas adolescentes mostram a gratuidade do incômodo que fustiga a troca de acusações. É a opção pelo não calar quando se poderia deixar de falar.

Sentimento adolescente é aquele que tem cara de primeira vez. Que ocupa muito tempo na tentativa da compreensão. Que de tanto evitar em pensar, acaba estampado no sonho.

Quero olhar o mundo como adolescente. Como uma pessoa normal tentando viver feliz em um mundo bizarro.


domingo, 13 de junho de 2010

Efeitos do Defeito

Insistimos em acreditar que insinuação sexy com direito a cruzada de pernas, olhada fulminante ou piscada são maneiras de sugestão, enquanto o que seduz é a imperfeição. A grande arma de sedução é o defeito. Uma mania que soa como convite. Que apela para descobrir de perto, que incita a revirar o defeito por todos os lados e confiar na sua repetição.

Tenho um amigo que se apaixonou quando assistiu uma mulher fazendo as unhas no meio do expediente. Disse que ela era tão graciosa que podia usar a reunião para cuidar de sua aparência, já que aquilo não era abuso para quem tem um dia corrido de trabalhos e estudos. Não adiantou o questionamento do lugar apropriado. Para ele, continuar mantendo sua beleza encantadora não precisava de lugar.

A mania começa a soar como persistência. O defeito que se repete passa a ser entendido como correspondência. É de um sorriso no rosto, de uma coincidência de datas, gostos e músicas que precisa a aproximação. Qualquer tipo de esbarrada é confirmação da existência do desejo. Sempre por vias tortas, numa estrada cheia de curvas, com destino incerto.

Descobri outro dia que meu caderno era cobiçado. Me ver escrevendo suscitava nela a pergunta: o que será que ele tanto escreve naquele caderno? Cada hora passada na frente dela com os olhos voltados para o bloco de papel evidenciava o quanto ela esperava a mania. Queria espiar as palavras para ver o mundo com os meus olhos. Descobrir minhas reticências, despistar algumas vírgulas. Estar escrita no amanhã. Ninguém ousa reprimir a iniciativa do diário, mas não suporta saber da existência do segredo.

O amor recomeça quando se decide trocar de defeitos. Descobrir os novos ao invés de apontar os velhos. É dar bom dia para o defeito para terminar a noite no abraço de edredom. Somos parte da mania do outro. Brincamos com os efeitos do defeito. A obsessão de querer descobrir os novos defeitos para reencontrar as velhas qualidades.


quinta-feira, 3 de junho de 2010

Férias de Mim

Vou te dar férias de mim. Um período de distância sem pensar na volta para o conhecido. É sumir e esperar que o desprendimento renove o olhar sobre a rotina.

Férias podem ter viagens. Um passeio de seus pensamentos por caminhos que minha presença impediria. Compramos a passagem para uma data futura e levamos na bagagem a necessidade de passear pelo nosso passado. Será livre para andar por aí, no destino escolhido e formar suas percepções do mundo.

Ao te dar férias de mim, viajo para ganhar distância de sua falta. Vou de barco, contemplando a calmaria do oceano e agüentando as ventanias e tempestades. Pego de surpresa pela onda, divido a responsabilidade da remada com aqueles que estão no mesmo barco.

Você vai de ônibus, olhando a velocidade da paisagem pela janela. O encargo de deslocamento atribuído ao motorista obrigando-a a perder-se em pensamentos, sem possibilidade de fugir da consciência. Conversas com passageiros na esperança de passar o tempo eterno do caminho.

Cansado, peço que alguém assuma o remo e deito ofegante no chão do barco. Sua companhia de conversa pega no sono. E o movimento do barco pelo mar e do ônibus pela estrada embalam nossos olhares para a lua. Andando em direções opostas, nossas sensações voltam a se esbarrar.

O ponto de encontro das emoções ainda não sentidas. A fuga da experiência que não fica pra trás seja qual for o caminho. O sentimento presente que dá sentido ao passado. Ao gozar férias de mim, precisou ir ao encontro da minha ausência. Ao te dar férias de mim, quis que amanhã fosse dia útil. Durante as férias que te dei de mim, cansou da conversa da poltrona ao lado.

Ao descer do ônibus, notou que seria impossível se deslocar para longe do sentimento. Eis que um distinto caminho se torna viável. Ao aceitar férias de mim, descobriu que a liberdade do amor deveria ser consentida. Ao retomar desesperadamente o barco, percebi que repetir as remadas é algo insignificante para ir contra o mar do amor.







Revisão por Maichel Satampone Farias.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Praça do Relógio

Não há desilusão sem negar a existência.

O vivido na categoria do fantasioso.

O convencimento do que já é.

Nunca quisemos ser sensações na presença.

Nem persuadidos pela ausência.

O sorriso do gesto,

Brevemente conhecido.

Casa de ribanceira na chuva e vazia.

A grama verde espessa em movimento.

Raio de sol combinado com o vento.

Isolado e distante,

Olho e não enxergo.

A polpa espremida com riso no suco.

Percorro ruas que se renovam no atalho.

É possível não deixar ser,

Quão aberto é o findar.