domingo, 26 de setembro de 2010

O AMOR É POUPANÇA E NÃO JOGO DE AZAR

Durante algum tempo pensei que amor era jogo de azar. Vivia esperando a grande oportunidade. A cartada certeira na rodada que me garantiria uma relação feliz e duradoura. Quando percebia a oportunidade fazia um baita investimento, punha largas expectativas e me enganava acreditando que a minha vontade era mais do que o suficiente para provar o quando meus sentimentos eram fortes e para convencê-la de que estar ao meu lado era esbanjar alegrias no futuro.

Tudo isso até aprender, à duras penas, que o amor não é investimento de risco. Não é o tamanho do montante que dispomos inicialmente que determinará seu lugar no infinito. Amor é como poupança. Começa sem exigir valor mínimo de depósito e não promete facilidades em multiplicar a moeda. Quem poupa esperando rendimento se decepciona. Acompanhar obsessivamente os ganhos é garantia de frustração. É preciso dar espaço e tempo para poder render. O sentimento do encontro deve ser vivido, as lembranças das sutilezas merecem ocupar espaço nos devaneios, mas o amor não suporta viver de débitos e sobrevive com a concessão de créditos. Os juros desta conta estão no futuro, o investimento está no presente.

Chegava para mais uma sessão da terapia. Adentrava a sala de espera com as mãos ocupadas com papéis, carteira, chave do carro e celular. O velho hábito de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Fui pegar um café e perdi o equilíbrio como um malabarista iniciante. O café caiu na minha camisa e no chão com os objetos, evento seguido pelos olhares dos pacientes que aguardavam.

Saí em direção ao banheiro, peguei papel para limpar o chão e molhei a camisa na esperança de amenizar a mancha. Olho no espelho e vejo que, além da mancha, minha camisa estava com problema de alagamento. “Seca” - pensei. Voltei pro meu lugar no sofá como se nada tivesse acontecido, quando olhei e a peguei sorrindo. Ela tratou de disfarçar. O interesse não combina com olhar fixo, mas o olhar desviado é reincidente. Não era um sorriso de chacota, mas de quem havia acompanhado toda a cena e concluía algo a meu respeito. Foi ao vê-la ser chamada que descobri que ela buscava alívio para o desconforto na fisioterapia, enquanto eu buscava o conforto na psicoterapia.

Naquele dia tratei de outros assuntos com o terapeuta, mas aquele sorriso não saía da minha cabeça. Não saiu durante a semana inteira, assim como a ideia de encontrá-la na sessão seguinte e do medo da não repetição do encontro. Chegado o dia, não a vejo ao entrar e a decepção toma conta. De repente havia mudado de horário ou recebido alta. Para minha surpresa, ela chega após alguns minutos, mas ao mesmo tempo em que eu sou chamado para entrar. E ali, durante alguns segundos a gente se olhou com o interesse de algumas horas, sem que ninguém percebesse. Com algumas desviadas de olhar demonstramos alegria e constrangimento.

Na semana seguinte, nos encontramos chegando do lado de fora, quando nos apresentamos e começamos a conversar. Este passou a ser também o espaço para nossas esbarradas semanais. Passamos a chegar mais cedo para um pouco de papo, descobrindo um pouco mais um do outro. Queríamos a conversa e a disponibilidade para o encontro foi sendo naturalmente maior. Lembrávamos-nos da história do café e caíamos na risada. Ela se apaixonou pela minha disposição para consertar a besteira e pela minha indiferença com uma tentativa frustrada. Eu me apaixonei pelo seu sorriso divertido diante das minhas trapalhadas e pela ingenuidade madura de seu olhar.

Ensaiei algumas sessões para contar ao meu terapeuta esta história até o dia em que percebi o detalhe ignorado durante um ano frequentando o consultório. Uma frase do Mario Quintana em adesivo acima do batente da porta de saída do corredor. “O segredo não é correr atrás das borboletas. É cuidar do jardim para que elas venham até você”. Concluí que tem questões pessoais que não precisam ser abordadas em terapia para serem trabalhadas.

Continuamos adeptos da fisioterapia e da psicoterapia, mas o alívio para o desconforto dela e para a minha necessidade de conforto foram resolvidos na sala de espera.


domingo, 19 de setembro de 2010

O Diário do Joelho

Nada como usar o nosso assento de fábrica para sentar. Sem cadeira, sem banco e nem mureta. Sentar no chão é uma prova do despojamento do objeto, um sinal de displicência. Hábito que deixamos na infância, nas rodas que a professora organizava sinalizando a forma geométrica com fita crepe até que as crianças aprendessem seu formato.

Eu gosto de sentar em roda no chão e aprendi com a professora a geometria da interação. Não aceito círculo oval e muito menos outro formato que me lembre de algum polígono. Peço pra acertar. Com crianças ou adolescentes dispenso logo a mesa e as cadeiras e faço o convite para ocupar o lugar das solas.

Dia desses, ao terminar a atividade em roda no chão, apoiei a mão e girei o corpo para levantar. “Trec!”, fez meu joelho no exato momento em que levantava. Não conseguia colocar a perna direita sem muita dor no chão e fui em direção à mesa. A dor parecia se estender da batata da perna até a parte de trás da coxa. Seria uma distensão muscular? Ou pior, uma lesão no joelho?

Sentado, aguardava um pouco e nada de melhora. Não conseguia esticar completamente a perna e pensava: e a viagem da próxima semana? Eu vou dirigindo. E se tiver que operar o joelho, a defesa do mestrado está chegando! Me bateu um desespero. Medo dos empecilhos. O que eu fiz? Liguei para minha mãe!

Antes que o leitor dê risada da atitude do marmanjo beirando trinta anos, explico que ela é enfermeira. Praticamente um pronto socorro dentro de casa e recomendou que marcasse uma consulta de urgência no ortopedista. Liguei em seguida e agendei para o final da tarde, enquanto cruzava a perna, mudando de posição. Levantei e para minha surpresa a perna sem qualquer problema. Pisava normalmente, sem nenhuma sensação de dor.

Teria minha ansiedade antecipatória perante o mês abarrotado de compromissos importantes me pregado uma peça? Será que me tornaria uma vítima da somatização? O cara com uma década de terapia se comportando com a função de chamar a atenção? Me vi sem graça para desmarcar a consulta, mas me peguei sem motivo para mantê-la. No final da tarde do mesmo dia, a mania de sentar sobre a perna direita me repetiu a mesma situação. Testava movimentos para encontrar a solução até que um estalo terminou com a dor. Pronto, psicossomático não era. Com uma tremenda vergonha da secretária, remarquei a consulta para a manhã seguinte, torcendo para a perna funcionar até a última aula da noite.

Fiquei mais tranquilo na sala de espera que exibia os diplomas do médico formado e residente pela USP de Ribeirão Preto. Me recebeu com simpatia perguntando o motivo da consulta. Relatei as marcações e desmarcações e ele sorriu, atento ao desaparecimento do sintoma. Pediu que eu fosse para a maca para examinar. Apalpou o joelho até o lado de fora para localizar algum ponto dolorido e eu dando as coordenadas das sensações. Achamos o lugar lateral do joelho que estava dolorido. Ele levantou minha perna e flexionou em diversas direções até que um estalo instalou a dor, que sinalizei imediatamente.

Ele demonstrou espanto. Com mais rapidez fazia os movimentos contrários na tentativa de voltar ao lugar. E propôs que eu esticasse a perna já me levando ao movimento e eu estrilei de dor. Pedi que ele me deixasse cruzar a perna sozinho e descruzar e mais um pouco de movimento o estalo do alívio. Levantei da maca após o sufoco com a testa igual a um copo de refrigerante gelado. Ele foi em direção a sua mesa dando risada e soltou:

- É muito interessante! – e eu de supetão respondi:

- Como isso é novo pra mim, eu estou achando tudo muito interessante. Mas se para você que é especialista, essa história está curiosa, deve ser interessante mesmo. Mas o que afinal é isso?

- Provavelmente uma lesão do menisco externo direito. Primeiro você termina seu mestrado, resolve seus compromissos urgentes e depois faz um exame de ressonância pra gente ter certeza. Ele pode passar a travar ocasionalmente ou até diariamente. Se começar a restringir muito seus movimentos é o caso de operar e retirar a parte doente, mas vamos tentar evitar a cirurgia.

- Certo, e o que eu não posso fazer? – perguntei temendo grandes impedimentos.

- Principalmente agachar.

- E caminhar, eu posso?

- Deve evitar. O melhor seria fazer bicicleta.

- Eu gosto de nadar! – disse metralhando todas as possibilidades.

- Pode nadar, mas cuidado com a pernada de peito que pode travar seu joelho.

- E musculação, pode?

- Qual a carga que você faz?

- Eu não faço!

- Não faz há muito tempo e vai resolver começar a fazer agora que suspeitamos de uma lesão recente no seu joelho. Nada disso!

Ele tinha razão, mas eu queria saber todos os limites impostos pela falha da articulação. O que significa sair de uma consulta sabendo que seu joelho tem um botão on e um off para a dor? Pensava nas rodas que iria fazer e ter de sentar na cadeira em um nível superior ao restante. Não gosto da diferença imposta pelo pedestal. O problema, ou a idade, me obrigavam a assumir certa arrogância para aceitar o estorvo. Acho que andei carregando muito peso e meu corpo não aguentou sustentar sem sofrer um dano.

Para compensar tal constatação, resolvi cuidar muito bem dele. Sim, meu joelho tem quase vida própria. Tenho sempre à mão uma caderneta de anotações para não desperdiçar ideias. Agora, acabo de comprar um diário para o meu joelho. Registro cada vez que ele apresentou um problema e o que eu estava fazendo naquela hora. De manhã, pergunto como ele acordou e anoto. À noite, faço o mesmo antes de dormir.

Anda chamando a minha atenção nas horas mais impróprias: durante um atendimento de uma mãe, quando pedi licença para o contorcionismo do destravamento; ou no sofá com a namorada ainda muito distante de qualquer preliminar. Vamos ver se ele melhora com os trinta minutos de gelo diários, divididos em duas sessões. Adaptações são necessárias. Não posso perder a articulação.


domingo, 12 de setembro de 2010

De cara com o boi

Costumo falar em aulas ou palestras de nossas reações de alarme diante de ameaças e explicar os efeitos psicofisiológicos do sinal de perigo com o exemplo de um homem das cavernas diante de uma onça pintada. Vou descrevendo cada reação de luta ou fuga possível e supondo reações físicas. Olhos arregalados permitindo uma ampliação do campo visual, aceleração cardíaca bombeando sangue para as extremidades do corpo, descargas de hormônios e assim vai.

Considerava, deixando claro para os ouvintes, que a probabilidade de dar de cara com um animal de grande porte pela manhã ao sair para o compromisso era baixa e que as reações de alarme atualmente são diante de provas, avaliações, competições, apresentação de trabalhos, etc. Depois dessa manhã, preciso rever minhas ideias sobre os perigos possíveis numa rua pacata do interior de São Paulo.

Mais um sábado de sol. Acordo e caio na piscina do clube, ainda vazio naquela hora. Escolhi uma das sete raias, fiz meus metros e na saída resolvi tomar café com meus avós, que aos sábados levantam um pouco mais tarde. Parti ao encontro deles. Junto a casa funciona uma loja de decoração, onde trabalham minha avó, minha tia e a Lenita, a vendedora. Uma loja com mais de trinta anos, com os objetos milimetricamente dispostos para compor um visual estético agradável que definimos como bom gosto.

Tendo acabado de abrir a porta e a vitrine, Lenita resolveu dar baixa nas vendas do dia anterior e sentou a mesa no fundo da loja. Meus avós estavam há alguns cômodos de distância tomando o café da manhã na copa quando, de repente, ouvem um estardalhaço como se o telhado da loja tivesse caído. A Lenita concentrada no caderno reagiu assustada ao barulho levantando rapidamente da cadeira e deu de cara com um boi preto entrando e atropelando cristais, vasos, lanternas, gaiolas, porta-retratos, abajures, e tudo o mais que estava pela frente. Pegou o embalo da descida da rua e entrou com tudo, não se contentando com o estrago foi entrando como convidado, demonstrando intimidade.

A Lenita acuada no fundo, tentando fugir do macho bovino que havia parado no arranjo imitando folhagem para mascar um capim de plástico. Nesse momento chega o meu avô para ver o que havia acontecido, enquanto minha avó, na copa, imaginava logo uma tragédia que não teria coragem de confirmar com os próprios olhos.

“Tem um boi aqui!” – gritou ele lá de cima – e ela já entendeu que meu avô usava algum tipo de gíria para dizer que um assaltante tinha pegado a Lenita como refém.

Enquanto isso, a Lenita usava a cadeira como escudo e meu avô com um rodo encontrado no caminho como instrumento para colocar o boi pra fora. Como minha avó acreditaria que literalmente era um boi desgovernado?

E foi depois de várias tentativas de colocá-lo pra fora que os dois o levaram para a porta de loja, e eu que chegava topei com o boi preto depois que tranquei o carro e me virei rumo à loja. Ele tomou um susto e empacou, logo vi os dois atrás dele e saí da frente. Enquanto eles gritavam, o boi pacientemente se abaixou e abocanhou uma maça de isopor que enfeitava alguma coisa e que agora estava em meio aos estilhaços no chão. Cuspiu decepcionado e saiu descendo a rua e os dois respiraram aliviados. Foi preciso chamar a polícia, listar os prejuízos.

A Lenita, muito eficiente, localizou o dono do boi. Havia dado conta do sumiço do animal pela manhã e estava a sua procura. Prometeu pagar o prejuízo resultante da falta de delicadeza e rebeldia do boi. As infelizes queimadas botaram a cerca abaixo e ele apenas fugiu do fogo. Já que não podia ficar em paz no pasto, procurava uma sombra. E eu que pensava ter feito estragos na loja quando fuçava em algo que quebrava durante a minha infância.


domingo, 5 de setembro de 2010

Lado Feminino

Ando investigando o funcionamento do meu lado feminino. Descobrindo alguns dos meus comportamentos que compartilho com as mulheres. Tenho feito descobertas interessantíssimas.

Meu lado feminino para namoradas de amigos ou namorados de amigas funciona como sogra. Encaro a nova companhia como o que vem para roubar o amigo de mim. Recebo o anúncio do namoro com resistência e começo a procurar uma característica para implicar, um traço de incompatibilidade para me justificar o incômodo. Isso porque não gosto de dividir a atenção ou de ter menos disponibilidade para mim.

Mau lado feminino tem sensibilidade de mãe. Sinto o sofrimento de quem eu gosto à distância. Percebo o nascimento do conflito nas mais sutis demonstrações de preocupação, desconforto, estranhamento e dificuldade. E, como uma mãe, não me conformo em perceber, preciso participar. Ouvir o que está acontecendo para entender o problema e não ser pego de surpresa com uma dificuldade maior amanhã. Classifico os suspiros em perda de fôlego de apaixonado, cansaço transbordando ou paciência em falta.

Meu lado feminino para comprar cuecas é igual a avó. Faço questão de comprar. Vou direto ao pacote com três e prefiro as cores branca, preta e o tradicional azul claro. Não vejo necessidade de estampas, cores berrantes e nem mesmo de elástico na cintura. Levo vários pacotes pra não ter que voltar tão cedo. O hábito de avó de fazer estoque, de planejar a substituição caso apareça um furo em uma peça.

Meu lado feminino adora receber visita como se fosse balconista de padaria. Café com bolo é o mínimo para uma boa conversa, mesmo que rápida. Se temos mais tempo, pão fresco e broa de fubá. Se marco uma refeição, meu lado feminino é como cozinheira de refeitório querendo matar a fome de toda a árvore genealógica. Sirvo comida para um batalhão mesmo que seja um encontro de dois casais para um jantar.

Meu lado feminino cultiva ervas. Sabe a diferença do tempero. Conhece o benefício do chá. Gosta de espalhar o aroma do café. Meu lado feminino cria expectativa para ver uma flor do jardim se abrir. Não gosta de ver os móveis sempre no mesmo lugar. Compra objetos para decorar e depois conta a sua história diante de um elogio.

Meu lado feminino faz testes com a namorada. Primeiro avalia a companhia durante uma noite de sono para depois explorar o sexo. Questiona o sentimento para sentir segurança. Aproveita o café da manhã para prolongar a noite. Meu lado feminino não é de falar, mas é todo ouvidos. É sensível como um quindim, mas não chora pra cortar cebolas.