sábado, 20 de março de 2010

O reencontro resgata o esquecimento

Estava em São Paulo, no caminho da casa do meu irmão para a casa de um amigo, quando o vi de bengala. Trabalhamos juntos na mesma empresa de 2003 a 2005.

Quando consegui a vaga de estágio na empresa pública aeroportuária, a primeira lição foi o funcionamento do ônibus fretado. Sim, teria o conforto de um ônibus que me pegaria na porta de casa, ou melhor, a uma esquina de casa. O amigo que já estagiava lá há alguns meses me orientou o local da parada do ônibus. Tratava-se da Consolação com a Caio Prado, em frente a uma loja de discos de vinil. Durante a explicação, Lucas disse que a melhor referência para achar o lugar eram dois funcionários que também embarcavam naquele ponto.

“Você vai ver um velho, mas é velho mesmo, e uma garota de cabelo vermelho que embarcarão com você” – descreveu. Ansioso, não achei a dupla, mas percebi a aproximação do ônibus da Viação Santo Inácio com uma placa com o nome da empresa e pude embarcar para o meu primeiro dia de trabalho institucionalizado na vida.

Quando o ônibus parou, vi os dois se preparando para entrar. Eram o Seu Arildo e a Talita, que foram companheiros de espera do fretado todas as manhãs durante esses dois anos. Seu Arildo era um velho solteiro, esquentado e melancólico, empunhava um guarda-chuva como se fosse uma arma e já tinha alguns problemas sérios de saúde. O primeiro deles foi pouco depois de chegar a São Paulo aos 15 anos, quando teve uma úlcera estomacal que precisou de três cirurgias para ser resolvida. Acabou com um estômago tão pequeno e sem o duodeno quanto os obesos mórbidos que os reduzem para emagrecer.

Isso fez com que perdesse peso involuntariamente, já que a capacidade de ingestão de comida era pequena. Acabou por ficar franzino e com um semblante de mais idade. Na empresa, era visto como funcionário oneroso, pois sempre estava com algum problema físico que acarretava em certo afastamento do trabalho.

Talita era uma jovem filha de pais separados, cujos 30 anos vividos lhe faziam urgência de um namorado para casar, já que o emprego estável ela já tinha. Durante o tempo que convivemos, passou em um concurso para professora e conciliava os dois empregos.

Quando me deparei com Seu Arildo hoje, tive que me apresentar novamente, achei que seria difícil que ele me reconhecesse com os quilos a menos, o cabelo grande e os óculos escuros. Foi abordá-lo pra ver que sua memória continuava afiada, ainda que a aparente debilidade do corpo fosse a mesma, agora exigia uma bengala para andar. Segundo a Cardiologista, a retração muscular foi efeito colateral de um remédio para arritmia que tomou durante quatro anos. Acredito que possa ter relação com falta de nutrientes básicos que não foram repostos depois das mutilações no aparelho gastrointestinal.

Nós três assistíamos, na espera do fretado, cada estação de um Ipê Roxo que fica no canteiro central da Rua da Consolação. Contemplávamos a árvore pouco percebida no meio de tráfico de veículos e pessoas, sobretudo quando florida. Seu Arildo era o único que permitiam que abrisse a janela do fretado, pois respondia a quem reclamasse do vento. Foi aí que percebi que trabalhar em uma organização exigia muito jogo de cintura e observação para saber como se impor. Se tivesse dificuldade, poderia apelar ao guarda-chuva.

Seu Arildo contou que aderiu a um plano de demissão voluntária, já aposentado há mais de dez anos, disse que não se via mais útil no setor que trabalhava e que estava cansado com a forma que os colegas o poupavam do trabalho mais pesado. A aposentadoria representava apenas um quarto do que ganhava trabalhando, mas decidiu que era a hora de parar de se deslocar de São Paulo para Guarulhos todos os dias.

Sua saúde ainda exige muitos cuidados. Pensou em se mudar para o interior para perto de parentes, mas se vê plenamente adaptado a solidão dentre a multidão paulistana. Nos encontramos justamente quando ele ia para o restaurante que almoça todos os sábados, localizado a poucos metros de sua casa. Disse que seu maior medo seria depender de alguém, sempre resolveu tudo sozinho. Quis saber como ia minha vida profissional e contou que a Talita havia se mudado pra morar com um namorado.

O encontro me trouxe lembranças de um período muito importante da minha vida, o do primeiro emprego na grande cidade. Longos deslocamentos, jornada dupla no Mackenzie e na Infraero, o programa de estágios que coordenava no RH, os amigos que fiz e que me ligam até hoje e as mudanças que fomentei no departamento e que ainda vejo funcionar quando passo por lá. Geralmente quando parto de avião de São Paulo, prefiro embarcar em Guarulhos e aproveitar a oportunidade da visita.

Foi bom poder ser um em mais de 1300 empregados. Experimentar o lado do trabalhador anônimo, conhecer o funcionalismo público sem ser um funcionário concursado. O mesmo prazo de validade do contrato de estágio, que me deixou chateado em ter que partir no auge da aceitação do trabalho, foi minha alforria para abrir as novas oportunidades que são as minhas especialidades profissionais atuais.

Espero cruzar novamente pelas ruas de São Paulo com Seu Arildo, que nos seus 76 anos, contraria as expectativas dos médicos. Reencontrá-lo resgata o esquecimento resultante da urgência das novas responsabilidades e me recorda as histórias fundamentais na minha vida, transformando o que foi vivido em lembrança.

A equipe do RH que deixei tinha um senso de humor excepcional, que compensava o amplo e equipado escritório sem nenhuma janela. Era composta desde aquele que administrou o alicerce da construção do aeroporto há 25 anos atrás e que continua na empresa, até as psicólogas que foram aprovadas nos primeiros concursos e que foram pioneiras no setor aeroportuário, sem contar o contingente administrativo dos mais diversos cantos do Brasil.

Claro que tinha problemas, como toda equipe tem, mas nossas estratégias para lidar com as burocracias típicas do funcionalismo público e com as pessoas com longo tempo de casa eram divertidas. Resgatamos um sino de mesa, daqueles que se toca com o dedo indicador e estava perdido em algum armário. Quando uma pessoa que só adentrava o setor para trazer problemas ou problematizar os processos, tocávamos o sino, como um alerta. O sino foi apelidado de “aziômetro”, pois alguns processos eram uma verdadeira azia, aquele incomodo leve porém persistente. O problema era quando ele tocava muito em pouco tempo ou quando quem entrava queria saber o significado do toque.

A expansão da área proibida à circulação de ônibus no governo Kassab impediu que o fretado continuasse a passar nas esquinas de quem mora no centro de São Paulo. Mudanças na gestão promoveram a divisão dos 1300 funcionários em dois grupos, um passou a trabalhar em São Paulo e o outro continua no aeroporto de Guarulhos. A última ligação que recebi de lá foi há um ano e relatava as inseguranças decorrentes desta mudança recém anunciada.







Para os amigos da Infraero, que trabalham para as pessoas experimentarem voar.

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